31.8.05

RANO RARAKU

Como o mundo é belo
A Grécia nunca existiu
Não passarão
O meu cavalo acha a ração na cratera
Homens-pássaros remadores arqueados
Voaram-me em volta da cabeça porque
Também sou eu
Quem lá está
Atolado a três quartos
A troçar dos etnólogos
Na amena noite do Sul
Não passarão
A planura não tem fim
Quem se destaca é risível
As altas imagens caíram

Tradução de Ernesto Sampaio.

Andre Breton [French Surrealist Writer, 1896-1966]

André Breton nasceu em Tinchebray em 1896. Iniciou estudos em Medicina, sem entusiasmo, apenas para contentar a família. Mobilizado para o exército, em 1916, conheceu aí Jacques Vaché, o qual viria a exercer forte influência na sua personalidade. Em 1919, fundou com Aragon e Philippe Soupault a revista Littérature. Em 1920 aderiu ao grupo Dada, mas logo se incompatibilizou com Tristan Tzara, vislumbrando no automatismo um meio de renovar toda a arte. Tornou-se assim no principal fundador e teórico do movimento surrealista francês. Em 1924, no Manifeste du Surréalisme, expôs alguns dos princípios estéticos essenciais desse movimento: escrita automática, liberdade formal, exploração literária do inconsciente. Além dos escritos teóricos, escreveu obras de poesia, ficção, etc. Animado por uma ardente vontade de acção, a sua rebeldia levou-o a aderir ao Partido Comunista em 1927. Publicou as revistas La Révolution Surrealiste e Le Surréalisme au Service de la Révolution. Em 1933, Breton foi excluido do Partido Comunista. Com Leon Trotsky, acabaria por fundar, em 1938, a Federação de Arte Revolucionária Independente. Quando os nazis ocuparam a França, Breton refugiou-se nos EUA com Duchamp e Max Ernst. Terminada a guerra, regressou a França. Morreu no dia 28 de Setembro de 1966.

Fragmentos # 12 – Para sempre

Fui num fim de tarde ao teu mar, o sol mergulhou e apagou-se. A tua mão continua em casa na minha, eu estou aqui a escrever como me pediste. A escrita é a sombra da minha mão que segue os nossos passos nas ruas estreitas da cidade. O teu corpo depois do fogo fundiu-se no mar onde te disse adeus. Agora, os nossos passos encontram-se apenas nos sonhos, onde a água corre na água que corre. A escrita é a sombra dos meus pés deixando rastros. Sem os teus passos os meus passos são apenas metáforas ou palavras que caem das minhas mãos. As pedras molhadas na calçada da noite. Todas as línguas se constróem com metáforas mortas e eu tenho de continuar com os meus pés aqui. Os pés no chão é uma bela metáfora como me mostraste e deste-me a tua mão. És a sombra das minhas mãos, sombra que toco com a ponta dos dedos escrevendo na noite. Talvez te faça sorrir agora que escrevo com a mão que foi casa na tua aqui. Quando pintaste de negro as paredes da biblioteca num ritual de iniciação à filosofia, saí do teu mundo escuro. Despejaste as latas de tinta negra numa metáfora sombria e eu continuei com os pés aqui, mas a tua mão está em casa na minha escrevendo. A escrita invadiu as paredes da minha casa, escrevo, já não aguento pensar, entendo agora o negro nas tuas paredes. As minhas são amarelas como as páginas dos livros antigos, a patine do tempo percorre-as enquanto vou caminhando. Agora sigo o som da água com a minha mão molhando palavras de pedra no chão onde piso. Escrevo como me pediste, até nos encontrarmos no cais de outro mar ou à beira-mar. Tu partiste, meu amor, só agora entendo porque te anunciaste o coração, antes de mergulhares na noite, para sempre.
Maria João

30.8.05

Tav 69 remisturado por Relação 43%

9
Deslocalização
vai macieira
vai love
vai douro
vai Leça da palmeira
drink on
bebe-o redondo
mon monke
je te adore mine pite
spain free.

10
Eu também sei falar
de cada poema meu
sei a história
os enredos
de cada um
como o vastuoso Rabda
sabe de Truffaut
j´ai fait
un public limité.

11
Para maluco
maluco e meio
ainda por cima
no feminino.

12
Metáfora
vomito-o
custou-me bebê-lo
vomito-o
o sumo com bolhinhas
a bílis espreme-se
exprelis
expreme-la
tu êxpremes bolas
do nariz
(metáfora sénior).

13
Pela calada separo-me de ti
por medo levo os poemas civis do brossa
e saio mesmo
chegados à rua
os poemas civis do brossa
respiram de alívio
mas eu preciso de casa
volto para casa.

Nuno Moura

(1-2-3-4
+
5-6-7-8)

Fragmento # 14 – Textos anónimos

Sonhei que perdia os textos da Insónia. Não tinha computador, então a minha irmã emprestara-me a máquina digital, para fotografar os textos. Assim, ela depois ligava a máquina a um computador e os textos iam directamente para o blog. Estava no meu quarto em Évora, na casa dos meus pais, a fotografar os textos, impressos em páginas de papel, dispostas em vários sítios: alguns textos estavam na prateleira debaixo de um velho armário, onde guardava antigamente as bonecas, outros na tábua de passar a ferro e outros em cima de uma mesa, no meio de um monte de roupa toda desarrumada. Eu queria começar a fotografar os que estavam no armário, mas não estavam assinados, então procurei uns pincéis e coloquei-os no local da assinatura, em cima das páginas. Assim, comecei a disparar com a máquina e passei para a tábua de passar a ferro, onde estavam outros. Quando voltei a olhar para o armário, tinham desaparecido e pensei que estavam em cima da mesa, no meio da roupa. Entretanto, os que estavam na tábua de passar a ferro também desapareceram, por isso, fui procurar por entre a roupa na mesa. Ali encontrei fotografias muito diversas, lembro-me de umas com helicópteros fotografados de perfil, que achei serem um plano do filme Apocalipse now. Mas os textos não apareciam, de maneira nenhuma. Nisto, apareceu a minha irmã a perguntar se já tinha fotografado tudo, eu muito aflita relatava-lhe o desaparecimento dos textos, que estavam mesmo agora ali ao meu lado e não sabia onde os tinha colocado. Ela acalmava-me dizendo:
- Não te preocupes, já sabes o que acontece nestas situações, é mesmo assim, eles devem estar por aqui, já os encontramos...
Foi então que acordei, apavorada.
Maria João

MORTE

A Isidoro de Blas

Que esforço!
Que esforço do cavalo
para ser cão!
Que esforço do cão para ser andorinha!
Que esforço da abelha para ser cavalo!
E o cavalo,
que flecha aguda ele exprime da rosa!
que rosa parda levanta do seu beiço!
E a rosa,
que rebanho de luzes e alaridos
ata no vivo açúcar do seu tronco!
E o açúcar,
que pequenos punhais sonha em sua vigília!
E os punhais diminutos,
que lua sem estábulos, que corpos nus,
pele eterna e rubor, andam a procurar!
E eu, pelos beirais,
que serafim de chamas busco e sou!
Mas o arco de gesso,
que grande, que invisível, que diminuto!
sem esforço.

Federico García Lorca (España, 1898-1936)
Federico García Lorca nasceu em 5 de Junho de 1898, em Fuente Vaqueros, aldeia próxima de Granada. Depois dos estudos primários feitos na aldeia, em 1908 o poeta iniciou os secundários em Almeria, durante um ano, e prosseguiu-os em Granada, até à conclusão, em 1915. Estudou música e piano, vindo a desistir desses estudos por o pai não lhe permitir que os continuasse em Paris. Na Universidade de Granada estudou Direito, cujo curso concluiu em 1923, nunca tendo exercido qualquer actividade relacionada com ele. Em 1918 publicou Impresiones y paisajes, prosas em que evoca principalmente as localidades que conhecera em excursões escolares. Na Primavera de 1919, Garcia Lorca foi para Madrid, indo morar na Residência de Estudiantes, onde esteve até 1928. Publicou vários livros e deixou outros para publicação, escreveu e levou à cena peças de teatro, fez várias viagens para pronunciar conferências e promover a representação do seu teatro. Foi também conhecendo os que seriam seus companheiros no chamado grupo poético de 1927, influenciados pelos movimentos vanguardistas europeus, começando pelo futurismo e o dadísmo, e evoluindo para a prática de um surrealismo que nunca foi escrita automática, mas um irracionalismo intenso. Em Junho de 1929, Garcia Lorca foi a Nova Iorque, onde permaneceu até ao começo de Março de 1930. O gigantismo e crueldade da urbe, os aspectos mecânicos do quotidiano, o jazz que ouviu, exerceram sobre o poeta um violento impacto, sob o qual escreveu os poemas de Poeta en Nueva York. Depois de ter estado em Cuba de Março a Junho de 1930, Garcia Lorca regressou a Espanha. Em 13 de Julho de 1936 o poeta foi de Madrid para Granada, para fugir ao ambiente de agitação que aí se vivia. O poeta já fora procurado em sua casa pelas autoridades nacionalistas que impunham o terror em Granada. Federico foi preso pelos franquistas na tarde de 16 de Agosto e fuzilado na madrugada de 18 seguinte, num campo dos arredores de Granada. O seu corpo nunca foi encontrado. (do prólogo de José Bento à Antologia Poética de Lorca publicada pela Relógio D'Água)

29.8.05

ARteoRIA # 3 – Portugal dos pequenitos clandestino

Farol
(imagem respigada aqui)
Farol Ilha de raios oblíquos contínuos sequenciais nas estrelas da noite. O barco azul parte de Faro para a Ilha do Farol durante o dia. Ao longe, o farol anuncia com elegância o seu pequeno reino. O barco azul leva-me a caminho de um mistério, quem sabe se um pequeno paraíso perdido no mar. No Farol Ilha tudo gira em torno do mensageiro luminoso no alto, talvez um mensageiro entre dois mundos. De dia, o farol apenas vigia o mar como um deus; de noite, deus transforma-se num silencioso ritmo visual. O farol centra descentrando assim a ilha em feixes luminosos sequenciados. O farol divide a sua ilha em legal e clandestino, na forma de direita e esquerda, pelo menos seguindo as coordenadas da plataforma onde caminho. Em sentido contrário será esquerda e direita, ou seja, clandestino e legal lado a lado. Mas no fundo na ilha do farol, o clandestino e o legal vivem de mãos dadas. O Farol Ilha é o Portugal dos pequenitos estilo clandestino, na continuidade do Raul Lino, em ponto pequeno, português suave marítimo contemporâneo. O outro Portugal dos pequenitos tem muito manuelino. O legal clandestino, ou seja, o clandestino no seu esplendor, tinha que ser uma ilha no mar ao sul, em honra dos estilos importantes da nossa cultura; e tinha de ser uma ilha onde só se pode ir num pequeno barco azul. A diferença entre o legal e clandestino nesta ilha, revela-se apenas na noite, em forma de pequenos candeeiros, ténues globos luminosos, muito baixos, que na rua acompanham os humanos, pontuando apenas, sem competir com deus lá no alto. As ruas são sempre estreitas, escuras e demasiado estreitas na parte clandestina, a areia aperta-as. E deus é muito mais bonito no clandestino, revela-se no azul-escuro estrelado imenso.
O estilo manuelino impera em Tomar, na Batalha ou nos Jerónimos. O Raul Lino povoou especialmente Sintra e está um pouco por todo o país. Quanto ao contemporâneo clandestino, o mais presente no nosso território, nunca o poderia imaginar deste modo, com esta escala demasiado humana, pequenita mesmo, parece a brincar. O estilo clandestino na Ilha do Farol não é um corte com o passado, é uma continuidade do português suave em pequena dimensão, com deus e tudo, vigiando lá no alto. Mas ali não há igreja, só o farol se eleva nos céus em direcção ao sol. De noite, os traços de luz giram em torno de deus dançando, a lua é enorme na praia e o mar prateado.
Maria João

HISTÓRIA COM FINAL FELIZ

A PRINCESA

A Princesa era muito muito muito feia.
Tão feia que nunca a deixaram entrar em nenhuma história.

O PRÍNCIPE

O Príncipe era muito mau muito mau muito mau.
Mas a Princesa sabia que não há ninguém perfeito.

O CÃO

O cão era belo, bondoso
e alegremente inferiorizável.

Rui Costa

recuso ver que face
na tua face a tempo pousa
o agrimensor
da sombra

ouvir que voz repete
a tua voz dormida
junto ao pão
os instrumentos

talhados sobre
a boca

na água viva o sopro
alvoroçado

António Franco Alexandre (Viseu, 1944)

António Franco Alexandre nasceu no dia 17 de Junho de 1944 em Viseu. Estudou Matemática e Filosofia em França e nos EUA. Viveu entre 1962 e 1969 em Toulouse, partindo depois para Harvard. Regressou a França em 1971, ficando a viver em Paris. É Professor de Filosofia na Universidade de Lisboa desde 1975. O seu primeiro livro foi Distância, publicado em 1969. Foram-lhe atribuídos o Prémio de Poesia da APE (2000), o Prémio Luís Miguel Nava (1999) e o Prémio Literário Correntes d'Escritas / Casino da Póvoa (2005). Poeta significativo da actual poesia portuguesa, afirmou-se com um «discurso centralmente inovador» a partir da década de 70, exemplo de uma prática de efeitos intelectuais e de meios semânticos a que se junta uma certa técnica de distanciação narrativa. Herdou as diversificadas experiências de linguagem poética pós-poesia 61. (respigado daqui e dacolá)

Tav 69 remisturado por Relação 43%

5
Daqui a um ano e meio
já estarás restabelecida
irás ver sozinha música ao vivo.

6
Dores nos rins e queca
parquímetro, livro da selva
e meia de máquina com misto
basquetebol na caipira afundo.

7
Russo contra gastão
uma semana antes
da figueira parir
no lugar do maduro
um livro
cada árvore 200 exp
uma figueira em casa
é cada pequena editora
novo cristal ganha a caipira.

8
Buril
cinzel
cinema
lavrar pedra e metal
álcool e essências perfumadas
nítrico hidromel
fuma deste cinzel
fica deitada virada buril
nóve e binte mil.

Nuno Moura

(segundos 4 de 13)

A FONTE

Era uma vez
não, era duas vezes
sim, duas vezes que eu
fui à fonte e perdi
os três e à quarta
casei-me
à quinta pensei dizer-lhe
se continuas assim
mas não disse e
na sexta arrependi-me
mas já era tarde
pois no sábado morri
e no domingo, azar,
já não havia
fonte

Rui Costa

26.8.05

Tav 69 remisturado por Relação 43%

1
De barriga cheia
eu amo-te
bebo de ti e amo
trigo mel e meia
o meu pé senhora
na tua mão.

2
Um prado de abelhas
na minha dor
suicídio colectivo no pranto
uma única letal larga
no nosso amor.

3
Este atum repugna-me
o atum fresco acabou
este laboratório repugna-me
sinto falta do mar
estes lagos repugnam-me.

4
A herança
são meia dúzia
de peças
esquece
até bebi num copo
do big brother.

Nuno Moura

(primeiros 4 de 13)

Fragmento # 11 - Metáforas

A natureza, tu não queres que me vá embora, mas é a ordem natural das coisas. Aceleras o carro, dizes que temos de ficar juntos para sempre. Mais uma vez te respondo que é um romance já escrito. Abrandas. Digo-te que tenho os pés no chão, respondes-me que isso é uma bela metáfora. Os pés no chão. Todas as línguas são compostas por metáforas mortas, as imagens são as metáforas vivas, as palavras são meras sombras ruidosas dos relâmpagos no interior do cérebro. As imagens são aparições velozes e silenciosas e o som segue-as de um modo ameaçador. O interior da minha cabeça está coberto de nuvens densas, carregadas de imagens fragmentadas, a boiarem. Tudo pode rebentar a qualquer momento. Resta-me algum sangue-frio, é o instinto de sobrevivência. Por mais que se diga o contrário, a lei da sobrevivência é mais forte. A calma é necessária, estou a respirar. Perguntas-me porque é que a natureza nos tira tudo, respondo porque é maravilhosa, ela oferece-nos tudo e ainda não vistes isso. Estava escuro. Saímos na noite a chover, deambulando pelas ruas estreitas da cidade. A tua mão na minha em casa. Tremias no frio por dentro e eu não temia. Agora temo os meus pés aqui. As pedras molhadas na calçada. As minhas mãos estão sempre quentes a escrever. As minhas mãos seguem agora os passos nas pedras do chão nas ruas estreitas da cidade, onde sincronizaram os nossos corpos molhados na chuva da noite. Entramos dentro do carro, aceleras de um modo absurdo. Digo que quero ir para casa, respondes que me queres a teu lado, para sempre. Fico furiosa, vais em direcção a Sintra, a sair de Lisboa, vertiginosamente. Na subida do viaduto, o carro falha aos soluços. Fico assustadíssima, o carro pára a meio do viaduto, só faróis por todo lado, vêm largados, não se sabe bem donde. Abres a porta, grito para teres cuidado e chamo-te meia dúzia de nomes. No meio daquela confusão, encostas o carro na berma. As minhas pernas tremem, lá consigo sair do carro. Caminhamos pela berma, só vejo faróis furiosa.
Maria João

SEJA ASSIM O POEMA

Fodem-te a vida, o papá e a mamã,
Mesmo que não seja essa a intenção.
Deixam-te todos os vícios que tenham
E mais dois ou três, por especial atenção.

Mas no tempo deles também foram fodidos
Por tolos trajando jaquetão e coco,
Que quando não estavam piegas ou hirtos
Saltavam, raivosos, à veia, ao pescoço.

E assim é legada a infelicidade,
Vai mais e mais fundo, como o fundo do mar.
Foge mal tenhas oportunidade
E quanto a teres filhos – isso nem pensar.

Tradução de Rui Carvalho Homem.

Philip Larkin (1922 - 1985)

Philip Larkin, poeta, romancista e crítico, nasceu em Conventry, Inglaterra, em 1922. Estudou literatura inglesa, foi amigo íntimo de Kingsley Amis (e padrinho de Martin Amis), amante e crítico de jazz, bibliotecário nas universidades de Leicester, Belfast e Hull. Esteve ligado ao movimento literário inglês The Movement, que, nos anos 50, reuniu escritores como Kingsley Amis, Donald Davie ou Thom Gunn, entre outros, e que defendia uma literatura virada para a vida comum, numa linguagem simples, directa e clara. Os escritores que integravam este movimento reclamavam-se de uma baixa classe média da província, estatuto esse que opunham ao Establishment intelectual, artístico e académico da capital, das classes altas e das duas universidades com primazia histórica e influência dominante, Oxford e Cambridge. A obra literária de Philip Larkin compõe-se, essencialmente, de dois romances – Jill (1946) e A Girl in Winter (1947) – e quatro livros de poesia: The North Ship (1945), The Less Deceived (1955), The Whitsun Weddings (1964) e High Windows (1974). Philip Larkin continua a ser hoje, quase vinte anos passados sobre a sua morte, um poeta controverso. A sua personalidade tem suscitado as mais acesas discussões, sobretudo a partir da publicação, em 1992, dos Selected Letters, onde parece consolidar-se a imagem de um homem misógino, racista, homofóbico, nostálgico de políticas autoritárias e historicamente regressivo. Porém, a sua poesia não deixa de marcar de forma indelével a literatura inglesa do século XX, tendo hoje lugar entre os grandes poetas de língua inglesa, ao lado de T.S. Eliot, Ezra Pound ou Dylan Thomas. (daqui)

25.8.05

Cenas de infância Op. 13 – Primeiro amor

O verão chegou amarelo, como as férias grandes. Joaninha vai a casa de uma prima, tomar banho na piscina. É muito divertido, joga às cartas, senta-se no cadeirão de baloiço, já fez amigas novas e conheceu um primo afastado que é lindo. Mal o viu ficou toda atrapalhada, ele é parecido com o príncipe dourado da capa do seu livro favorito, aquele que matou o monstro Golías; é alto, tem sardas e uns olhos enormes verdes-azuis. As iniciais do nome do primo equivalem a um partido político, por isso tem escrito as letras em todo o lado, nos cadernos, nos livros, nas paredes da cidade com lápis de cera, mas ninguém entende nada. Além disso, a Joaninha arranjou uma toalha de praia a fazer propaganda ao partido, não é o da pata da galinha, também não digo qual é, tenho vergonha. Na piscina deita-se na toalha a apanhar sol, na esperança que o primo entenda e repare nela. A Joaninha não conta nada a ninguém, esta paixão é secreta, tem medo que gozem com ela, sobretudo, os rapazes mais velhos e os irmãos, com os quais o primo está sempre. Os rapazes chamam-lhe baleia azul, ela não gosta nada, mas o primo não faz isso. No entanto, não lhe liga nenhuma, só quer saber das brincadeiras com os rapazes e a Joaninha anda muito triste. Ela já pensou em abrir as asas e voar com a toalha nos pés, para mostrar as bolinhas de aguarela que tem guardadas na carapaça. Talvez assim o primo desse por ela.
Mais tarde, a Joaninha veio a saber que o seu primo morreu de um modo absurdo: estava na praia e teve uma congestão, porque foi tomar banho depois do almoço. Quanto ao partido político, morreu antes, se não foi de congestão, foi com algo parecido, de qualquer modo os partidos políticos são absurdos.
Maria João

O TONEL DO ÓDIO

O Ódio é o tonel das brancas danaídes;
A Vingança febril, de braços rubros, fortes,
Tenta precipitar nessas trevas vazias
Grandes baldes com o sangue e as lágrimas dos mortos,

Em segredo o Diabo fura esses abismos
Por onde verteriam mil suores e esforços
Se o Ódio, ele mesmo, reanimasse as vítimas
E para as espremer ressuscitasse os corpos.

O Ódio é um bêbado numa taberna,
Que quanto mais bebeu mais sede ainda vai tendo,
Vendo-a multiplicar-se, qual hidra de Lerna.

- Mas, se o ébrio feliz conhece quem o vence,
A sorte lamentável o Ódio está votado:
A de nunca poder adormecer saciado.


Tradução de Fernando Pinto do Amaral.
Charles-Pierre Baudelaire 1821-1867

Charles Baudelaire nasceu no dia 9 de Abril de 1821 em Paris. Aos seis anos de idade perdeu o pai, vindo a sua mãe a casar pela segunda vez um ano depois. Em 1832 Baudelaire entrou para o colégio real de Lyon. Depois, em 1836, foi como interno para o Liceu de Louis-le-Grand, do qual viria a ser expulso por se ter recusado a denunciar um colega. Em 1839 o poeta inscreveu-se na faculdade de Direito, a qual nunca chegaria a frequentar regularmente. Adoptou uma vida boémia que o levou ao encontro de escritores mais velhos (Nerval, Balzac, etc) e teve uma ligação com uma jovem prostituta. A conselho da família, embarcou de Bordeaux rumo a Calcutá – viagem que se recusou a prosseguir. Aos 21 anos tomou posse da herança paterna e instalou-se na ilha St. Louis, onde manteve uma relação afectiva com a mulata Jeanne Duval. Começou a frequentar as reuniões do chamado Club des Haschischins, círculo que se dedicava aos prazeres do haxixe. Em 1845 começou a publicar os primeiros poemas e críticas de arte. Após conflitos familiares que o impedirão de movimentar o seu património, Baudelaire tentou suicidar-se. Foi chefe de redacção do jornal A Tribuna Nacional, traduziu poemas de Edgar Allan Poe, publicou poemas e ensaios. Em 1857 entregou a um editor o manuscrito de As Flores do Mal. A edição foi apreendida e seguiu-se um processo judicial contra o seu autor. Em 1860 começou a ter algumas perturbações cerebrais, provavelmente consequência da sífilis. Pensou novamente em suicidar-se. Em 1864, deprimido, debilitado fisicamente e moralmente abatido, mudou-se para a Bélgica. Um ano mais tarde, a sua saúde agravou-se gravemente: nevralgias, perturbações digestivas, mal-estar cerebral, etc. Em 1866, na sequêncioa de uma queda na igreja de St. Loup, surgiram os primeiros sinais claros de acidente vascular cerebral. Baudelaire morreu no dia 31 de Agosto de 1867.

23.8.05

Cenas de Infância Op. 12 - Vizinhos

Os pais da Joaninha foram almoçar fora, tal como acontece todos os Domingos. Então, a Joaninha foi ao quarto deles, espreitar os vizinhos pela janela. A janela do quarto dos pais situa-se no segundo andar, dá para uma ampla varanda onde se pode observar um enorme pátio, para além do muro do seu quintal. O pátio fica junto da esquadra da polícia. Assim, ao Domingo, a joaninha assiste aos jogos de futebol dos polícias. Eles fazem grandes pândegas, por ali circulam, a fingir que correm atrás da bola, bebem cervejas, discutem e fazem apostas. Por vezes chutam a bola com demasiada força voando por cima do muro, caindo no quintal da Joaninha. No quintal habita uma simpática pastora alemã, que nesses dias fica sempre desorientada. Chama-se Poly. A cadela fica a circular em torno da bola, pára de vez enquanto, olhando em direcção ao muro, onde os polícias ficam empoleirados. Mas, eles não têm coragem de saltar, têm medo da Poly. A Joaninha costuma avisar o seu irmão quando isso sucede. O irmão assiste a rir ao espectáculo e sadicamente, observa-os a sofrerem, deixa-se ficar e só entrega a bola quando aquilo já não tem piada.
Maria João

22.8.05

Cenas de Infância Op. 10 – Hóstia

A Joaninha vai fazer a primeira comunhão, tem aulas preparatórias no colégio, com um padre. Ela não confia muito nele, como é que se pode confiar num homem que veste saias e está sempre a falar em pecados. A Joaninha já provou a hóstia e foi uma decepção, pensava que as hóstias eram batatas fritas. Aquilo não sabia a nada, além disso, o padre disse-lhe que não se pode mastigar. E o que ele bebe na missa, porque é não oferece também? É tudo para ele, porquê?
Quando provou a hóstia, o padre explicou-lhe que era o corpo de Cristo e deu-lhe indicações para a deixar desfazer na língua, sem mover a boca. A Joaninha ficou apavorada a pensar:
- E se morder a hóstia, sem querer, será que os meus irmãos me vendem, como ao José do Egipto?
Maria João

Cenas de Infância Op. 11 – Comunhão

A Joaninha vai fazer a primeira comunhão. Vestiu um vestido branco parecido ao do padre, está vaidosa, convenceram-na de que vai ser um dia importante, uma festa. A comunhão, a Joaninha está de branco enfileirada na Igreja com os outros miúdos de branco. Chegou a sua vez, vai fazer a leitura. Experimenta o silêncio dos outros ao subir para o microfone. Então, olha os seus irmãos e pais sentados do lado esquerdo da audiência, no lado direito estão os desconhecidos outros. O livro está aberto nas suas mãos. Joaninha começa:
- Cristões...
Os irmãos a rirem e o silêncio dos outros. Que vergonha, não é cristões, é cristãos. Joaninha pára e respira fundo. Alguém a seu lado ri baixinho e diz-lhe para continuar, a Joaninha sem palavras. Depois lá repetiu:
- Cristões...
Um cheiro a missa que nunca mais acaba, o silêncio dos outros, a audiência, a comunhão não é uma festa, é um pesadelo insuportável.
Maria João

ALVO

Miro e disparo:
o alvo
o al
o a

centro exato dos círculos
concêntricos
branco do a
a branco
ponto
branco
atraindo todo o impacto

(Fixar o voo
da luz na
forma
firmar o canto
em preciso
silêncio

- confirmá-lo no centro
do silêncio.)

Miro e disparo:
o a
o al
o alvo.

Orides Fontela

Orides Fontela nasceu no dia 21 de Abril de 1940, em São João da Boa Vista, interior de São Paulo. Começou a escrever poemas muito cedo, tendo publicado os primeiros no jornal O Município, de São João da Boa Vista, em 1956. Nos anos 60, mudou-se para São Paulo e estudou filosofia na USP. Em 1967 teve dois poemas publicados no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Em 1969 foi publicado o seu primeiro livro: Transposição. Professora primária e bibliotecária, Orides viveu sempre em grandes dificuldades. Com os nervos permanentemente à flor da pele, de carácter complexo, provocou vários escândalos que acabaram por lançá-la na pobreza quase total. Recebeu o prémio Jabuti de Poesia, em 1983, pelo livro Alba, e o prémio da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1996, pelo livro Teia. Boémia e depressiva, várias vezes tentou o suicídio. Exageros que culminaram na morte precoce, aos 58 anos, num sanatório em Campos do Jordão. Orides Fontela morreu em Outubro de 1998, na mais completa miséria, mesmo sendo considerada um dos nomes mais importantes da poesia brasileira contemporânea. (apanhado de vários sítios)

21.8.05

Fragmento # 9 - Mar

Levaste-me a ver o mar, o areal da praia grande. Disse-te que aquele era o meu mar, que me atormenta os sonhos. Contaste-me que o teu mar estava ali perto, na Ericeira. Eu relatava-te acontecimentos absurdos para te fazer rir. Víamos o mar no grande areal ao longe:
- Só me contas histórias fantásticas, já pensaste em escrevê-las?
Eu não escrevo, pinto, tu é que escreves. As imagens são mais imediatas, elas invadem o interior do cérebro, silenciosamente. Pensa bem: o que é mais rápido, o trovão ou o relâmpago? Um fenómeno apenas, surgindo no mesmo espaço-tempo, a descarga de energia eléctrica na atmosfera terrestre. A ciência descodifica a invisibilidade deste fenómeno, através do cálculo matemático é possível uma aproximação à ordem da natureza. E como é que a natureza nos revela o fenómeno? A luz invade a atmosfera e segue-se o trovão. A velocidade da luz é superior ao som, o som é uma espécie de sombra da imagem. As imagens são velozes e silenciosas, a língua segue-as, fantasmaticamente, de forma ameaçadora. O som estremece o chão dos meus pés nas trovoadas de Sintra.
Maria João

Fragmentos # 10 – Paredes

A minha casa de paredes altas, a escrita invadiu as paredes, já foram brancas, agora a patine do tempo percorre-as. Em cada parede uma camada de memória, perco-me dentro de casa, procuro as chaves que nunca sei onde estão. Já tive vários chaveiros pendurados nas paredes, mas não resultou. A casa, vale de corvos escrito nas paredes, a outra seara está em Amesterdão. Tenho de voltar à cidade das janelas abertas, estou sufocada por muros altos, caiados, por muralhas de pedra, não suporto os pátios fechados do sul. Preciso de água, quero viver junto ao mar. A minha casa é um porto de passagem, um local perdido onde regresso sempre, de onde fujo do amarelo mortífero da planície. Estou rodeada de amarelo, até as paredes da casa são assim. Acumulo papéis, desorganizadamente, os meus livros têm páginas amarelas, são as paredes da casa, cheias de cicatrizes, de golpes a sarar. Os objectos acumulam-se na casa, como os livros, as pessoas vão e voltam, são como as ondas do mar, os livros ficam empilhados em vários sítios como as rochas. O telefone chama-me, a tua voz liberta-me disto tudo e dizes-me que se aprende muito com as saudades. Os açorianos, por via da dúvida, descrevem esse sentimento como um cortinado roxo que nos cobre o coração. Também, vivem rodeados de água, a ausência numa ilha sente-se com outra intensidade. Eu vivo rodeada de papéis amarelecidos pelo tempo. Raios partam a palavra portuguesa, saudade, porque amamos mais quando estamos distantes?
Maria João

RESTOS MORTAIS

O que de nós mais dura: só esqueleto
que nos fez ósseos mais do que moluscos.
O resto acaba tudo: quanto foi sentidos,
vontade, amor, inteligência, carne,
e sobretudo sexo, o sexo acaba
e se desfaz na mesma pasta informe
e fim de tudo que não é só ossos,
apenas os detritos da armação mecânica
de que se pendurou por algum tempo,
em sangue e carne, o porque somos vida.
E aquilo com que a vida se gozou
ou por acaso vidas foram feitas,
acaba como o mais – e os ossos ficam,
dos deuses esburgados. Porque os deuses temem
que sobreviva o sexo em de que morrem
na liberdade de existir-se nele.

18/12/1971

 Jorge de Sena (1919-1978)

Jorge de Sena, natural de Lisboa, nasceu em 1919. Em 1937, entrou para a Escola Naval. A 1 de Outubro do mesmo ano, partiu no navio-escola Sagres, em viagem de instrução, que decorreu até Fevereiro do ano seguinte, após o que foi demitido da Armada. Entrou então para a Faculdade de Ciências de Lisboa. Num jornal da faculdade, Movimento, publicou o poema Nevoeiro. Estabeleceu contacto com a revista Presença, através de Adolfo Casais Monteiro, a propósito de um poema de Álvaro de Campos. Desse contacto veio a resultar a ligação aos Cadernos de Poesia, onde Sena publicou, em 1940, os sonetos Mastros e Ciclo, e cuja direcção integrou durante algum tempo. Formou-se na Faculdade de Engenharia do Porto, trabalhando na Junta Autónoma de Estradas até 1959, data em que se exilou voluntariamente no Brasil. A partir daí, desenvolveu uma actividade académica intensa nas áreas da literatura e cultura portuguesas. Adoptou a nacionalidade brasileira em 1963. Em 1965 seguiu, também como professor, para a Universidade do Wisconsin (EUA) e, cinco anos mais tarde, para a Universidade da Califórnia. Em 1980, foi inaugurado o Jorge de Sena Center for Portuguese Studies, na Universidade de Santa Barbara. Para além da sua actividade como escritor e professor, Jorge de Sena empenhou-se na divulgação de autores e correntes estrangeiras (sobretudo de origem anglo-saxónica) através de inúmeros estudos, conferências e traduções. Em 1941, fez uma conferência sobre Rimbaud intitulada «O Dogma da Trindade Poética». Em 1944, publicou um texto de apresentação do surrealismo, «Poesia Sobrerrealista», primeira divulgação deste movimento em língua portuguesa, traduzindo ainda textos de André Breton, Paul Éluard, Benjamin Péret e Georges Hugnet. Jorge de Sena foi poeta, dramaturgo, ficcionista e historiador da cultura. Não se filiando em nenhuma escola literária, foi influenciado por várias correntes (nomeadamente pelo surrealismo, sobretudo em aspectos técnicos), numa tentativa de superar as tendências da época que passou por várias formas de experimentalismo. Num lirismo depurado, Jorge de Sena levou muitas vezes a cabo uma crítica mordaz e irónica da realidade, aqui e ali de forma provocadora ou dolorosa. Na poesia, Jorge de Sena estreou-se com Perseguição (1941). Postumamente, foram publicadas várias antologias e ainda Visão Perpétua (1982, poesias inéditas), Génesis (1983, que inclui dois contos inéditos de 1937-38) e Dedicácias (1999, poemas satíricos e desenhos inéditos). (daqui)

20.8.05

Aliance

Aliance

Pode ter sido distracção minha, mas não li por aí nada sobre o Aliance – o pesqueiro senegalês, com 95 imigrantes ilegais, que foi parar a um porto de Tenerife depois de ter sido avistado à deriva sem água nem mantimentos a bordo. A história lembra certos contornos do negreiro Amistad, celebrizado por Steven Spilberg no cinema. Os países de origem destas pessoas permanecem os mesmos: Serra Leoa, Senegal, Libéria, Costa do Marfim, Guiné-Conacri. Os escravos de hoje vêm dos mesmos lugares dos escravos de ontem. O que mudou? Agora vêm arrastados pela miséria que devasta os seus países de origem, atraídos por máfias com métodos mais sofisticados do que os utilizados pelos traficantes de escravos de outrora. Porém, métodos igualmente repugnantes e só praticáveis num mundo que insiste em proteger e estimular o crime. Proteger e estimular o crime? Sim. Calar factos destes, relegando-os para as terceiras páginas do que importa no mundo, esvaziando-os de importância e desinchando o seu significado não tem outra consequência que não seja a de proteger e estimular o crime. Estes escravos de hoje dão muito jeito ao mundo dito civilizado, o mundo que cala a escravatura, que a esconde e a omite nas traseiras de uma sensacionalização mediática que se torna desinteressante de tão banalizada. É urgente odiar estas situações, este estado de coisas. Partilhar o silêncio a que são votados estes crimes torna-nos cúmplices do mal. Para combater isto, para combater esta miséria, é que era fundamental a tal cooperação internacional que anda nas bocas dos líderes do mundo ao serviço de combates pouco mais do que… enfim… interessantes. Talvez no futuro estas histórias dêem para realizar filmes, degustados ao som de pipocas saltitantes nas salas de entretenimento do mundo civilizado.

A MIM FAZIA-ME JEITO

Lágrimas ou salgueiro sobre a margem
de dentes de ouro
de diamantes de pólen
como a boca de uma rapariga
de cujos cabelos brotava o rio
em cada gota um peixe
em cada peixe um dente de ouro
em cada dente de ouro um sorriso de quinze anos
para que se reproduzam as libélulas.

Quando o vento lhe destapa as coxas
é inocente uma donzela?

Tradução de Mário Cesariny.

Luis Buñuel. (Calanda, 1900 - México, 1983)

Luis Buñuel nasceu em Calanda, Espanha, em 1900. Foi educado pelos jesuítas na cidade de Saragoça, vindo mais tarde a estudar Biologia na Universidade de Madrid. Aí fundou, em 1920, um cineclube, acabando por licenciar-se em História. Na capital espanhola travou conhecimento com vários elementos da denominada Geração de 27, consolidando uma especial amizade com o pintor Salvador Dalí. O período literário de Luis Buñuel abrange dez anos, 1922-1932, completando apenas um livro que ficaria inédito durante muito tempo. Apenas publicou alguns poemas em prestigiosas revistas de vanguarda, precedidos de vários contos, narrações e poemas em prosa. Em 1925 foi viver para Paris, com o intuito de estudar na Academia de Cinema, e aderiu ao movimento surrealista de Breton. Depois de Buñuel, aderiram ao Surrealismo espanhol grandes vultos: Dalí, Lorca, Alberti, Cernuda, e muitos outros. Em 1928, em parceria com Dalí, Buñuel realizou a sua primeira curta-metragem: Un Chien Andalou. O escândalo chegaria com L’âge d’or, uma obra-prima do cinema surrealista. Entre 1933 e 1935 trabalhou com companhias americanas, vindo a mudar-se para os Estados Unidos e, posteriormente, para o México.

Fragmento # 6 - Porta

Estava escuro. Havia uma porta, entrei quando me deste a mão. A porta situava-se perto do ar de Sintra que conheço tão bem, é húmido, dúbio, sempre misterioso. Agarraste a minha mão em casa na tua porta aberta, finalmente. Porque a porta esteve sempre entreaberta e tinha medo de entrar. A tua mão era suave e firme, por isso entrei na porta onde esperava que terminasse aquele frio húmido de rachar do ar de Sintra, que tão bem conheço. Entrei, seguindo-te no corredor escuro em direcção à tua sala, onde estava a janela aberta para a natureza, que sempre amámos tanto. Da tua janela entrava o som da água que corre na água e continuámos às escuras na chuva da noite, mas na tua mão estava em casa e já não tinha frio.
Maria João

Fragmento # 7 - Tango

Tu estavas de partida, meu amor, só agora entendo porque te anunciaste o coração, antes de mergulhares na noite. Para sempre. Para sempre no mar vento que oiço ao longe. Quero ouvir. O mar que vimos ao longe, era o meu mar coração. No coração da noite te segui, gritaste que fui eu que te fiz perder. Paraste, avançando em direcção ao local escolhido para o nosso encontro, apenas quando à distância ficaste na chuva da noite. Aproximámo-nos, então, envolveste-me suavemente nos teus passos dos nossos passos. Sincronizamos. As pedras molhadas na calçada. Perdemo-nos a deambular nas ruas estreitas da cidade a chover, para perder o teu corpo e o meu continua com os pés aqui. O meu corpo nos teus braços sentiu o teu gosto, ar dos nossos pulmões. Lentamente. Reconhecemos onde estávamos, deste-me a tua mão quando paraste avançando. Aqui tens a minha mão, como várias vezes me pediste na nossa noite. A primeira vez que disseste casa, respondi-te refúgio contigo talvez e mais uma vez agarraste a minha mão, em casa na tua. Querias que fosse para sempre, mas respondi-te que era um romance já escrito, porque tenho os pés no chão. Os pés no chão é uma bela metáfora, como me mostraste e a água corre na água que corre no teu mundo. Os meus pés continuam aqui e a água corre na água que corre na terra onde estou. Onde estou eu que tu não estás?

Tu estavas de partida, meu amor e só agora entendo porque te anunciaste o coração, antes de mergulhares na noite, para sempre.
Maria João

Fragmento # 8 - Casa

Estava escuro. Entrámos no carro, tu a guiares sem regras, sem semáforos ou qualquer tipo de sinal de trânsito. Entendi porque te deram a carta tão tarde. Gritei para abrandares, lá voltaste ao normal. Chegámos, às escuras abriste a porta do teu mundo. O som da água que corre invadia o espaço da sala, deste-me a tua mão, abrindo a janela. Mostraste-me como a natureza entrava na tua casa, descrevendo-me com a língua como a vias e amavas. Pediste-me silêncio se não a água caía dos teus olhos. Na tua janela bebi a água que os teus olhos me deram. O riso a iluminar o mundo e os meus lábios a beijarem os teus olhos a sorrir. Perguntaste-me no meu corpo porque sempre te fiz rir. No meu corpo correu a água que corre na água e invadimos o espaço da sala. A tua mão em casa na minha. Entendi como amavas a natureza ao escreveres no meu corpo com a língua e a minha traduzia a escrita. Pediste-me que te contasse os meus sonhos, antes de adormeceres. Acordaste de um sonho onde estávamos os dois em silêncio na tua sala, a escrever, lá fora havia um barulho ensurdecedor, estavam políticos que tu odiavas, a multidão da qual fugíamos. Tremias quando te agarrei e abracei como podia. Eu não temia, a minha mão firme em casa na tua. Querias para sempre, mas respondi-te que isso é um romance já escrito. Contei-te que sonhava com o mar, que ele se tornava cada vez mais revolto, com ondas enormes e que tinha de fugir.
Maria João

18.8.05

Cenas de Infância Op. 8 – O livro

A Joaninha está toda contente, ofereceram-lhe um livro novo que ela adora. O livro chama-se Bíblia em Banda Desenhada, na contra capa tem o desenho de um príncipe lindo, que toca arpa e matou um monstro chamado Golías. A Joaninha tem estado muito entusiasmada com as histórias do livro, segue atentamente os desenhos coloridos que as acompanham. Mas aquelas histórias deixam-na inquieta, sobretudo a do José, que se tornou vice-rei do Egipto, por causa dos sonhos, aquelas pragas, é assustador. A Joaninha antes de adormecer fica cheia de medo a pensar:

- Será que os meus irmãos também me vão vender, como ao José do Egipto?
Maria João

Cenas de Infância Op. 9 – A Cólera

A Joaninha quando vem da escola para almoçar, entra em casa e voa pelas escadas a cima, em direcção ao corredor do primeiro andar. Joaninha vai logo à casa de banho, tem medo de ser apanhada antes de lavar as mãos, os irmãos inventaram um monstro que a quer levar, se ela se porta mal. O monstro chama-se Cólera, é uma ameaça que paira sempre no ar e só assim convencem a Joaninha a fazer certas coisas. Ela nunca viu a Cólera, mas os irmãos estão sempre a encontrá-la na rua, a Joaninha fica cheia de medo com o que lhe contam. Dizem que se ela não lavar as mãos, antes de ir para a mesa, a Cólera sobe pelas escadas a cima e... Então a Joaninha lava as mãos e canta:

- Lavar as mãos
Sempre antes de comer
Cheirinho a sabonete...


À mesa, a Joaninha não se ajeita muito bem com o garfo e a faca. Já aconteceu, várias vezes, o bife ir parar ao chão e discretamente, apanhou-o com as mãos, colocando-o no prato sem ninguém ver. Uma vez o irmão mais velho apanhou-a e disse:

- Joana, não podes comer com as mãos, se não vou ter de contar à Cólera e ela vem cá...

Joaninha ficou cheia de medo, lá cortou o bife devagar, com cuidado para não entornar nada. Só muito mais tarde é que entendeu que a Cólera era uma doença, não existia em Portugal e não era nenhum monstro, por isso não podia cruzar-se com os irmãos na rua. No entanto, continua a subir escadas a correr. Quanto a entornar comida do prato, uma vez, num jantar formal numa embaixada, entornou parte da salada, estava distraída a conversar com um amigo. Como tem prática, apanhou discretamente e voltou a colocar no prato. Pensava que ninguém tinha reparado, para além do amigo, mas algo estranho aconteceu: o embaixador começou a chamar-lhe Madalena e ainda não tinha chegado a sobremesa.
Maria João

sugestão

já tentaste praticar o bem
fazendo mal?

já tentaste praticar o mal
fazendo bem?

já tentaste praticar o bem
fazendo bem?

já tentaste praticar o mal
fazendo mal?

já tentaste praticar o bem
não fazendo nada?

já tentaste praticar o mal
fazendo tudo?

já tentaste praticar tudo
não fazendo nada?

e o contrário, já tentaste?
já?

seja qual for a tua resposta,
não sei que te diga.

Alberto Pimenta (1937)

Alberto Pimenta nasceu no Porto em 1937. Licenciou-se em Filologia Germânica na Universidade de Coimbra e, durante alguns anos (1960-1977), exerceu funções de leitor de Português e de Literatura Portuguesa em Heidelberg, na Alemanha. Dedicou-se primeiro a colagens e técnicas afins, depois estendeu a sua actividade: poesia, happening, TV, performance falada, teatro, edição de obras raras ou tabu, poética visual e fonética, etc. Os seus textos, por vezes publicados em livros com uma configuração gráfica original, assumem um sentido polémico, que ocasionalmente os próprios títulos podem evidenciar, e ao mesmo tempo de vanguarda. É autor de O Silêncio dos Poetas (1978), um importante estudo sobre o sentido da criação literária ligada aos movimentos de vanguarda, a qual se caracteriza pelo seu "desvio da norma". Realizou o seu primeiro happening em 1977 no Jardim Zoológico de Lisboa (Homo Sapiens). Traduziu, entre outros, Thomas Bernhard (A Força do Hábito, em colaboração com João Barrento, 1991) e Botho Strauss (O Parque). A sua poesia está traduzida em várias línguas e parte da sua obra publicada em Itália, Brasil e Espanha. (a partir de Obra Quase Completa, Fenda, 1990, e Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. VI, Lisboa, 1999)

17.8.05

Fragmento # 5 – Janela aberta para a natureza

Não sei o que fazer com as mãos ao pé de ti, procuro um cigarro, tenho de abrir a janela, não consigo encontrá-la e és sempre tu que a abres. Agora abriste a luz para eu saber como é, assim não me vou esquecer. Na véspera surpreendi-te quando te beijei ao despedir-me. Não me tinha apercebido que poderia ter esse efeito num homem tão calmo e maduro. Desta vez foste tu que me beijaste de um modo envolvente. E agora, como é que eu abro a janela? Não me esqueci que só te vi realmente na minha janela. É verdade, já te conhecia, mas não te tinha visto bem. Bateste à porta da minha casa, à procura da nossa amiga. Fui à janela, vi-te lá em baixo, disse-te que ela não estava, convidei-te a entrar, a esperares por ela. Disseste-me que esperavas lá em baixo no carro, eu insisti, tu voltaste a dizer que esperavas no carro. Então olhei-te nos olhos da minha janela e disse: entra e esperas na sala dela. Paraste perplexo a olhar fixamente para mim, subiste, abri a porta e deixei-te sozinho na sala da nossa amiga. Privei-te da minha companhia, aliás, estava a trabalhar na sala ao lado com outra pessoa. A Lua foi ter contigo e quando fui abrir a porta da rua à nossa amiga, tu estavas a dar-lhe festinhas no pescoço. A Lua estava totalmente deliciada. Mais tarde, na janela em tua casa, onde fui fumar um cigarro, contaste-me que foi ali que a tua mãe conheceu o teu pai. Existes por causa dessa janela aberta para a natureza, aliás, para a natureza humana, porque tem vista para a cidade e para um antigo quartel. O teu pai era um sentinela no quartel, tu existes porque a tua mãe abriu a janela. Ele tinha de estar ali de guarda, à espera, quando viu a tua mãe à janela pensou: ela tem de ser a minha janela aberta. Eu não resisti em abrir a janela na tua casa, o pretexto era fumar um cigarro, porque nunca sei o que fazer às mãos quando estou ao pé de ti. Gosto da tua janela, não é por causa do fumo. Já te abri a minha janela uma vez, só entraste porque respeitei a tua liberdade, deixei-te com a Lua na sala da nossa amiga. Depois vi a Lua aos teus pés, hipnotizada. A Lua não costuma reagir assim e eu conheço-a como ninguém. Foi assim que reparei em ti. E agora acendeste a luz para não me esquecer onde a posso abrir. Fico desorientada, tenho medo de me perder, não sei onde colocar as mãos, mas já sei onde a posso abrir. Vou ser eu agora sempre a abrir a janela?
Maria João

Oh, como a hipocrisia
seduz, e como se esquece
que em criança se está mais perto
da morte que na velhice.

Ébria de sono, a criança
sorve ao menos a ofensa do pires,
mas eu – com quem me amuaria? –
sozinho estou, em todos os caminhos.

Não quero dormir como um peixe
no desmaio fundo das águas,
é-me querida a escolha livre
dos meus cuidados, dores e mágoas.

Fevereiro – 14 de Maio de 1932

Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra

Osip Mandelstam (Rusia, 1891-1938)

Óssip Mandelstam nasceu em Varsóvia, Polónia, em 1891, descendente de uma família judia. Cresceu na cidade imperial de S. Petersburgo, onde frequentou a prestigiada escola Tenishev, seguindo mais tarde para Paris (1907-08) e para Heidelberg (1909-10) com intenção de estudar Literatura Francesa. A partir de 1911 estudou Filosofia na Universidade de S. Petersburgo, curso que abandonou para se dedicar à escrita. Publicou o seu primeiro livro, Kamen (Pedra) em 1913. Embora tivesse inicialmente apoiado a Revolução, a censura sobre os artistas e a execução de Gumilev, em 1921, afastaram Mandelstam do regime. Este afastamento obrigou-o a viajar para províncias distantes como jornalista. Em 1933 Mandelstam escreveu um poema satírico sobre Estaline. A «insolência» só não lhe trouxe a pena de morte devido à protecção de Bukárine. Mas no ano seguinte, Mandelstam foi preso e viveu alguns anos exilado, em companhia de sua mulher Nadyeshda. Regressaram a Moscovo no início de 1938. A 2 de Agosto Mandelstam foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados. O último perído da sua vida é mal conhecido. Sabe-se que esteve na prisão de Butyrskaya em Moscovo à espera de seguir para Kolyma, na Sibéria. Terá morrido a 20 de Dezembro, na barraca n.º 11 do campo de trânsito 3/10 de Usvitlag, entre os presos acusados de «actividades contra-revolucionárias.» (Excerto da nota biográfica contida em Fogo Errante – antologia poética, tradução de Nina guerra e Filipe Guerra, Relógio D’Água, Julho de 2001.)

16.8.05

Cenas de Infância Op. 6 – Joaninha vai à escola

A Joaninha foi viver para Espanha. É muito divertido, vive no rés-do-chão de uma velha casa ao pé do Simago, em Badajoz. O piso de cima está ocupado por uma república de estudantes, são animados e fazem festas. Na rua tem uma pandilha, onde aprendeu a cantar e dançar sevilhanas. Depois do jantar, sai de casa com as irmãs, vai para a rua jogar ao elástico, com a pandilha, fala castelhano como se fosse a sua língua, deita-se tarde como toda a gente. E há ainda uma grande novidade: a Joaninha já vai à escola, tem uma cartilha e está a aprender a ler. A escola é muito animada, tem uma colega de carteira que também é portuguesa, estão sempre a pregar partidas às espanholas, a Joaninha passa o tempo de castigo na aula: mas não se importa, até gosta, fica de pé ao fundo da sala, vira-se de vez em quando e as espanholas riem, a professora fica furiosa. A Joaninha é boa a fazer contas, faz contas de cabeça num instante e gosta muito dos desenhos da cartilha, mas há coisas que não entende. Por exemplo, na letra P está lá mi padre fuma pipa e ela pensa:
- Mi padre fuma pipa? Pero mi padre no fuma pipa, no es verdad...
Maria João

Cenas de Infância Op. 7 – Revolução

Joaninha volta para Portugal, para a sua casa em Évora. Aqui não tem pandilha, não brinca à noite na rua, mas também vai à escola, num colégio ao pé da Sé, onde tem de usar uma bata branca. Joaninha está sempre a inventar pretextos para chegar atrasada à escola, assim não atura a oração matinal, é uma seca. As ruas da cidade estão um reboliço, cheias de cartazes coloridos, o seu irmão faz colecção de cartazes e faixas de todos os partidos políticos, guarda-os na casinha do quintal. O irmão arranjou para ela um cartaz do seu partido: ela é do partido da pata da galinha. Mais tarde contou esta história a um rapaz que lhe disse que era filho do rei dos frangos e ela nem percebeu porquê.
Maria João

ITINERÁRIO SOBRE O JOELHO

Nascer
vir a este mundo
é acordar legível do sono eterno.
Maravilhoso (e é) que seja acordar
traz mistura pessoal:
preferia não ter nascido.
Fazemos parte de animal perpétuo
que exige o nosso serviço dele.
Mas um é passageiro
tem que inventar optimismo e graça
e permanecer acordado o animal perpétuo.
Nascemos órgão e seremos, afinal, o todo do organismo.
Personalidade não é senão o ímpeto para nos deixarmos de nascidos intactos
é condição primeira do ser vivo eterno que somos.
Nasce segunda vez o que morre a morte primeira.
Nasce-se segunda vez o ser vivo eterno que somos.
Iremos por onde não há adesão possível à segunda vida
porta do eterno.
Depois é o silêncio que fala
a paz que nos esperava.
JOSÉ DE ALMADA NEGREIROS [São Tomé, 1893 - Lisboa, 1970]
José de Almada Negreiros nasce em 7 de Abril de 1893 na Fazenda Saudade, em São Tomé. É uma personalidade que se afirma, desde o princípio deste século, em vários campos da arte e da literatura. Na definição de Carlos Queirós, ele é «desenhador, conferencista, bailarino, novelista, crítico-panfletário, pintor e poeta. Em tudo, e sobretudo, poeta. Ele próprio, humanamente, poeta». A posse dessas vocações múltiplas leva-o a Paris, na mesma década em que Sá-Carneiro aí se exíla, e, mais tarde, a Madrid, onde trabalha como artista plástico entre 1927 e 1932. Em 1934 casa, em Lisboa, com a pintora Sarah Afonso. Em 1911 revela-se ao público através da 1ª Exposição do Grupo dos Humoristas Portugueses, que integra. Dois anos mais tarde, uma exposição de caricaturas é o lugar onde conhece Pessoa, de quem se faz amigo. Torna-se uma das figuras salientes no nosso primeiro modernismo, cujas expressões mais conhecidas se reúnem em torno das revistas Orpheu (1915) e Portugal Futurista (1917). Mais tarde, funda e dirige Sudoeste (1935), cujo título alude à necessidade do seu posicionamento europeu. Entretanto, além de artigos dispersos em outras revistas ou jornais, publicara já a novela A Engomadeira (1917), a colectânea de poemas em prosa A Invenção do Dia Claro (1921) e a peça de teatro Pierrot e Arlequim (1924). O romance Nome de Guerra, sua obra literária de maior fôlego e, simultaneamente, o seu texto mais conhecido, é publicado em 1938, treze anos depois de escrito, e conta já algumas reedições. De salientar, ainda, que A Cena do Ódio, conhecida desde 1915 (esteve impressa para integrar o terceiro número de Orpheu, que nunca chegou a sair), só seria publicada em 1958, por Jorge de Sena, na antologia Líricas Portuguesas - 3ª. Série. A sua posição de maldito consentido, aliada à produtividade artística, joga também com o seu carácter espontâneo e assumidamente ingénuo, como deixa entrever em passagens como: «a vida engelhava-se-lhe nos pensamentos e ele não sabia doutra reacção mais imediata que a de se acariciar mentalmente. Prometia-se um futuro risonho como chocolates para que não chore um petiz» (Nome de Guerra). (respigado aqui)

13.8.05

Fragmento # 3 - Janela

Nunca sei como se abre uma janela ao pé de ti. Fico desorientada, procuro um cigarro para fumar, não sei o que fazer às mãos, não te quero incomodar com o fumo, preciso de abrir a janela. Tu sorris e abres a janela dizendo: é aqui. No escuro procuro abrir a janela, resmungando, nunca me lembro onde fica o fecho, não o encontro, não vejo nada. Estamos em andamento, nunca sei onde estou, a tua calma perturba-me, é uma calma de quem sabe conduzir e eu não consigo fazer isso. Já tentei, mas perco-me sempre, ou tenho medo de me perder. Hoje surpreendeste-me, mais uma vez. Porque em vez de abrires a janela, acendeste a luz, resmunguei que não era a luz, é a janela. Respondeste-me calmamente: em vez de ser sempre eu a abrir a janela, vais ser tu a procurar o fecho, assim não te esqueces onde está. Ainda fiquei mais desorientada, não encontrava nada com luz, perguntei-te onde é que estava. Estavas a rir e disseste: em frente, por baixo. Lá vislumbrei aquilo e consegui ser eu a abrir a janela. E agora, vou ser sempre eu a abrir a janela?
Maria João

Fragmento # 4 – Janela aberta

Nunca sei o que fazer com as mãos quando estou ao pé de ti, tenho de fumar um cigarro, tenho de manter as mãos ocupadas. É claro que acalmava se colocasse as minhas mãos sobre ti, sabes que sou artista, trabalho com as mãos. Perguntaste-me sobre as árvores que estou a pintar. Falei que quero colocar uma hipérbole no céu desta árvore. Como está num ponto muito alto, o céu tem de ser enorme, a percentagem de terra nesta representação é muito mais pequena que o céu. O céu é o que caracteriza a paisagem alentejana. Respondeste-me que essa é a visão do mundo quando somos pequenos. E que assim a árvore não é o tema central da pintura, como na outra que fiz. Expliquei-te que a outra árvore era uma sobreira centenária, classificada, o que a caracterizava era a copa monumental. Perguntaste-me o que é uma sobreira. É um sobreiro virgem, porque os homens nunca lhe retiraram a cortiça, é uma força da natureza selvagem. A árvore que estou agora a pintar é uma azinheira centenária, conhecida por azinheira das bruxas. Ela não tem sombra. Tem cerca de 300 anos, é baixa, assimétrica, tem o tronco inclinado, uma copa larguíssima. O seu tronco é negro, é assustadora, tenho medo dela, por isso vou pintar um céu enorme, numa espécie de esconjuro. Perguntaste-me onde vai ficar e não sei. Sei que a sobreira que pintei está em casa do dono, ele queria colocá-la no hall de entrada, mas mudou de ideias. A sobreira está pendurada na parede da sala, um local com muito mais luz natural e o dono dorme a sesta no cadeirão em frente. Decidiu assim, é o melhor local, depois do almoço costuma ficar cerca de meia hora em frente dela, adormece e acorda a olhar para a minha pintura. A pintura é uma janela aberta para a natureza, neste caso.
Maria João

9.8.05

Cenas de Infância Op. 5 – Joaninha canta

Joaninha está muito quieta no banco detrás do carro, veio do hospital porque se meteu numa briga dos irmãos e um caiu-lhe em cima. A mãe disse-lhe que vão visitar o primo que é médico, a mãe está lá à frente e pede-lhe:
- Joaninha, canta lá...
A mãe ainda não ouviu o fado que o irmão mais velho lhe ensinou:
- Miiinha sogra cá prá gente
É doida por aguareeente
Até bebe ao espiiique
E se cheeegam um fósfrá boca
Há explosão no alambiiique...


Grande risada, o irmão da Joaninha também lhe ensinou a dar murros, tem sido muito útil no recreio da escola. Joaninha vai a caminho de Lisboa no carro dos pais. É muito divertido, ela pensa que está numa corrida de automóveis, cada vez que o seu pai ultrapassa um carro, fica em primeiro lugar, mas depois lá está outro à frente, será que é desta? Ela vai a cantar e a rir com a mãe o tempo todo...
Chegam finalmente a casa do primo, ela não o conhece e acha estranho ele estar vestido com uma bata branca. Sentaram-na numa mesa coberta com um lençol branco e não está a gostar nada daquilo, despiram-lhe o casaco e a blusa. Então mãe pede-lhe para cantar, para o primo ouvir:
- Miiiinha sogra cá prá gente
É doida por aguareeente...


O primo, a rir, agarra-lhe no ombro, coloca-o no sítio e a Joaninha grita com os pulmões todos, enquanto lhe vão colocando coisas brancas molhadas, que se tornam duras. Depois disto, a Joaninha detesta que lhe peçam para cantar e quanto a homens de bata branca...
Maria João

5.8.05

Fragmentos # 2: Retrato de Família

Corro em torno da mesa do jantar sem parar. A respiração acelera, cada vez mais intensa, sinto-me livre aqui às voltas. Os irmãos sentados à mesa com diálogos sarcásticos, a mãe a tentar impor a ordem, já está farta, dizendo:
- Pelo menos à mesa comportem-se como pessoas civilizadas...
E eu a correr sem parar, às voltas; às voltas; às voltas...a sala é enorme, a mesa é enorme, estou a diminuir, transpiro em alta velocidade em torno deles. O caminho cada vez é maior e corro à volta da mesa com enorme satisfação, passo de raspão por eles todos. A minha irmã rezinga contra os padres, o meu irmão ri e diz que só fala com padres na presença do advogado. A minha mãe encolhe os ombros. O meu pai tira um cigarro à minha outra irmã, ela refila porque ele não pode fumar. O meu cunhado está nervoso, sentado em frente ao meu irmão, ele pergunta com ar de gozo quando é que lhe pode bater. O meu cunhado ri, nervosinho e começa a suar, a minha cunhada manda o meu irmão passear, abanando a cabeça, a rir. O meu outro irmão coça a cabeça. O mais velho chega tarde e não janta, a mais velha à cabeceira tem os óculos a escorregar no nariz, lá os compõe com um dedo, para ver melhor o que se passa.
Corro à volta da mesa do jantar sem parar, sou pequena outra vez, vou em alta velocidade e agora a rir às gargalhadas, os meus sobrinhos seguem-me, um deles vai pedindo:
- Ó tia, canta aquela música que cantavas quando era pequeno, que fala dos campos verdes. O meu sobrinho mais velho traz uma espada, o outro imita uma mota, outro segue-me de triciclo e a mais pequena de gatas.
Maria João