30.9.05

Joaquim Rocha
Joaquim Rocha

A minha mãe morreu
quando eu tinha 48 anos e ela 68
uma boa idade para morrer claro
que tive de ser eu a matá-la
48 anos é uma boa idade
para matar.

Carlos Alberto Machado

Carlos Alberto Machado nasceu em Lisboa, em 18 de Novembro de 1954. É Licenciado em Antropologia pela FCSH/UNL e Mestre em Sociologia da Cultura pelo ISCTE. Tem-se dedicado desde 1969 à actividade teatral (actor, produtor) e à concepção e gestão de eventos culturais. Nos últimos anos dedica-se à escrita, investigação e docência universitária (Escola Superior de Teatro e Cinema e Universidade de Évora). Algumas obras publicadas: Ensaio – Teatro da Cornucópia: As Regras do Jogo (Prefácio de Alexandre Melo), Lisboa, frenesi, 1999; Cuidar dos Mortos, Sintra, Instituto de Sintra, 1999.Teatro – Transportes & Mudanças. Três Peças em Um Acto, Prefácio de Eugénia Vasques, Lisboa, frenesi, 2000. Poesia – Mundo de Aventuras, Évora, atægina, 2000; Ventilador, Espinho, Elefante Editores, 2000; A Realidade Inclinada, Lisboa, Averno, 2003; Talismã, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004. Organizou ainda obras sobre a história do teatro em Portugal. (a partir daqui)

Ut pictura poesis # 21 – Natureza viva

Clara Peeters
Foto respigada aqui:

Clara Peeters ( 1594-1657), Natureza morta de gato e peixe
Óleo s/tela , 13 1/2 x 18 1/2
in National Museum of Women in the Arts, Washington , EUA
Maria João

A PEÇA

Ugo Giletta
Ugo Giletta

A menina à porta do teatro
Não faz parte da peça. Pelo
menos até ao momento
em que começo a imaginar-lhe
um outro vestido. Ela vê o
aproximar-me da porta e
quase olha para o escuro
da sala: Percebe-se que
acabo de fazer uma escolha.
Ela agora vai esquecer-se de
mim, inventar um homem que
entra numa sala como a fugir
da luz.
E no entanto é isto que fizemos
sempre.

Rui Costa

28.9.05

Joaquim Rocha
Joaquim Rocha

MARCO

Na rua escondida
o marco do correio
há muitos anos recebe
as escassas cartas
que mudam a vida.
Há muito que está
fora de serviço
mas a companhia
não informou ninguém.

Pedro Mexia

Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972. Licenciado em Direito pela Universidade Católica, publicou o seu primeiro livro de poesia no início da década de 1990 com o nome de Pedro Bigotte Chorão. Tendo “renegado” essas primeiras aventuras literárias, considera-se hoje Duplo Império (1999), em edição de autor, a sua primeira recolha de poemas. Coordenador de uma Antologia da novíssima poesia portuguesa, crítico literário no jornal Diário de Notícias, Pedro Mexia tem apurado a sua arte de cronista em várias outras publicações escritas. Figura mediática da denominada nova poesia portuguesa, foi um dos elementos do painel de comentadores do programa televisivo O Eixo do Mal.

Fragmento # 16 – As Janelas

Nas paredes da casa abrem-se as janelas que construí no tempo, abrem o amarelo contínuo da superfície para outros espaços, para outro tempo suspenso e contínuo, desenvolvendo-se paralelamente ao tempo que está a decorrer. A minha casa descreve-me na escrita invadindo as paredes, em forma de pequenas maquetas de cidades, em hieróglifos perdidos e escavados no barro terra que já foi pedra, o tempo tratou disso em labirintos luminosos sobre um azul nocturno e brilhante, numa via láctea em talha dourada. Olho estas janelas como se fossem árvores na estrada, ainda faltam muitos quilómetros para chegar ao fim e sinto os pés no chão a caminhar onde estou. Sei que sou um quase nada que vai em direcção à única certeza que é o silêncio absoluto, o nada imperceptível. Estas paredes já foram brancas e vazias, com o tempo preenchias e rasguei-as com estas janelas. O branco é assim, uma página de papel que se preenche com escrita, com gestos, traços, cores, um temido silêncio inicial que sugere introspecção, que apela à concentração. O branco é em simultâneo um vazio que reúne o todo, também é a fusão das cores no espectro. Agora está tudo amarelo. Sou um quase nada rodeado de polimpsestos amarelecidos pelo tempo, uma migalha no universo. Não é mau ter consciência disso, assim posso olhar o mundo de outra forma. As crianças vêem o mundo com um fascínio e admiração que se perde na idade adulta. A natureza é grandiosa, oferece-nos tudo, mas estamos dependentes dela, também nos tira tudo, é a ordem desordem das coisas. Quero continuar, as janelas nestas paredes são o fio de Ariana, não me posso perder, vou juntando-as como se fossem peças coloridas, construindo um puzzle que nunca está completo. A minha casa escreve descrevendo-me nas paredes pinturas que são rastros da minha passagem por aqui, os meus artismos são aberturas para o exterior, são as janelas que me obrigam a sair destas paredes e prosseguir com os pés e as mãos aqui.
Maria João

Ut pictura poesis # 20 – Duplo retrato

Suzanne Valadon
Foto respigada aqui:

Suzanne Valadon, A boneca abandonada, 1921
Óleo s/tela , 51x32cm
National Museum of Women in the Arts, Washington , EUA

sobre a pintora:
Maria João

27.9.05

O Herberto Helder tem duas
pernas e dois braços, dois olhos,
tem nariz e boca e come, vive
numa casa, espreita pelas janelas,
por vezes sai à rua, sozinho ou
acompanhado, a falar, apanha
chuva, liga a televisão, sabe onde
fica a França, lembra-se quando
era pequenino, inclusive
teve mãe e pai. É
impressionante o quanto um poeta
se pode assemelhar
às pessoas! A última vez que
falei com ele mandou-me um abraço.

Image hosted by Photobucket.com

valter hugo mãe nasceu em 1971 na cidade angolana Henrique de Carvalho. Passou a infância em Paços de Ferreira e vive em Vila do Conde. Licenciou-se em Direito e é pós-graduado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Publicou nove livros de poesia, entre os quais três minutos antes de a maré encher, a cobrição das filhas, útero e o resto da minha alegria. Recebeu o Prémio de Poesia Almeida Garrett da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto com o livro egon schiele auto-retrato de dupla encarnação. Foi, com Jorge Reis-Sá, responsável pelas Quasi Edições e director da Revista Apeadeiro. (a partir de nota biográfica inclusa em o nosso reino, Temas e Debates, primeiro romance de valter hugo mãe)

FAMALICÃO, O MUNDO

marionetes
Famalicão tem centro. O centro de
Famalicão é comercial e chama-se
“Loucura Center”. A Casa das Artes é
difiícil de encontrar porque não é no centro,
é num sítio mais para o lado da calma-paz
que é por causa das árvores.
As árvores dão silêncio e algumas também
dão pássaros. Os pássaros dão silêncio
arregalando os bicos e a agargantar as canções.
Eu hoje vou ver um concerto de música
cigana. Os ciganos estão fora do centro
ou então o centro é que está fora deles.
Eu estou contente por estar a jantar em
Famalicão. Mas nunca mais fui feliz
num restaurante porque um dia fui
empregado de mesa num restaurante em
Londres e fui explorado. O dono ficava com
as gorjetas para pagar os salários e o dono
queria que eu fosse manager para engraçar
um pouco mais com as Clientes-Das-Grandes-Gorjetas.
Mas isto é um poema (mau, que seja) e nele
até os restaurantes dão música. É a música
do mundo. (Pois). Agora chegou a conta e o dono
do restaurante ama a mousse. E eu
penso: quando um restaurante é todos os
restaurantes tu não estás sozinho e tens muito
que fazer. Tens que comer, que dar a comer.
Na música do mundo.
Na música.

Famalicão, 24 de Setembro de 2005
Rui Costa

Ut pictura poesis # 19– Depois de Ingres

Image hosted by Photobucket.com
Foto respigada aqui:

Silvia Sleigh, O banho turco, 1973
Óleo s/tela

Sobre a pintora:
Maria João

26.9.05

Poema sumário das tabernas de Lisboa

Rua se São Marçal n.º 56, rua de Campo de
Ourique n.º 39, rua de São Bento n.º
432, rua da Cruz dos Poiais n.º 25ª. Calçada
do Combro n.º 38B, rua da Atalaia n.º 13,
rua de São Miguel n.º 20, rua da
Rosa n.º 123. Travessa do Conde de Soure n.º 7,
travessa dos Remolares n.º 21, rua do
Jardim do Tabaco n.º 3, rua da Regueira n.º 40,
rua das Escolas Gerais n.º 126, rua de Santa
Catarina n.º 28. Largo do Chafariz de Dentro n.º 23,
rua Sampaio Bruno n.º 25, travessa de São
José n.º 27, beco dos Toucinheiros n.º 12-A. Rua
Cidade de Rabat n.º 9, travessa do Alcaide
N.º 15-B, calçada de São Vicente n.º 12,
rua das Flores n.º 6, travessa da Espera n.º 54.

Praça das Flores n.º 5.


Manuel de Freitas

Manuel de Freitas nasceu em 1972, no Vale de Santarém, tendo publicado o seu primeiro livro de poemas em 2000: Todos Contentes e Eu Também, Campo das Letras. Em 1999 havia já publicado A Noite dos Espelhos, na editora frenesi, um breve ensaio sobre a poesia de Al Berto. Poeta de invulgar proficuidade, escreve regularmente sobre livros no semanário Expresso e tem colaboração dispersa em várias revistas literárias portuguesas. É um dos directores da revista Telhados de Vidro, publicação da editora Averno que o próprio dirige. Em 2002 organizou a antologia Poetas sem Qualidades, obra breve que acabaria por contribuir para uma acesa polémica sobre os trilhos da poesia portuguesa surgida na década de 1990.

A FILHA DA POLÍTICA


que nós amamos como a nós mesmos

é nossa filha

Rui Costa

um espelho do tempo em que vivemos

«Quer queiram quer não queiram aí estão na minha frente, ridículos, maníacos, pueris, nesta marcha desordenada para o sonho; tenho-os na minha frente, e com eles a hipocrisia, as explicações confusas, as leis, as regras, os hábitos fétidos, e tudo o que lhes serve para encobrir as duas ou três realidades de que se não podem libertar, com a sua filosofia, os seus livros, as suas teorias - e no fundo instinto! instinto! instinto!; tenho-os aqui só bichos em frente da necessidade fatal, da verdade iniludível, com olhos abertos de espanto, com bocas murchas de mentir, a suar grotesco e a gritar de desespero. Tenho-os aqui ridículos, só ridículos, só enfim ridículos, mas já prontos para todas as infâmias. A vida espalmou-os, secou-os, deformou-os a todos. Andou por aqui a mão da desgraça, a mão do vício, a grande mãozada de ferro que deprime e esmaga. Um alimentou-se de lascívia, outro de sonho, outro de avareza, outro de fel. Todos diante da nova visão do universo se sentem grotescos e inúteis de corpo e alma, com lepras que nunca mais se limpam, com nódoas que nunca mais se lavam, com ideias e palavras entranhadas, com ímpetos de gozo e monstruosos apetites. Os anos passaram, os anos marcaram-nos. E ei-los nus, uns em frente dos outros, nus e reles, nus e grotescos, com o esplendor cada vez maior, cada vez mais doirado, cada vez mais sôfrego diante de si. Nus e obscenos, nus, com doenças e infâmias secretas. Aqui está a embófia e o orgulho, aqui está o que come e digere, mas, no fundo deste estômago que esmói, há ainda um resto de sonho; aqui está a velha que envelheceu ridícula, mas este ridículo é atroz. Tudo isto contém ânsia, ressuma dor até nas plumas, até nos trapos. Todos os sonhos absurdos, os sonhos que ninguém se atrevia a declarar, os produtos fétidos de noites sobre noites de relento e insónia, os ridículos sonhos de almas embrionárias, transformam-se em realidade e resolvem-se em gritos, em dor e em grotesco. A puerilidade que constitui o fundo do nosso ser, as pequenas misérias que formam montanha, e as grandes tragédias desgrenhadas afundam-se em grotesco. A todo o drama se mistura grotesco, a toda a dor rictos, e toda a convulsão emerge a escorrer grotesco.»

Raul Brandão (1867-1930), Húmus, Frenesi, 2000 (1ª edição, 1917).

Concerto de Homeagem a Aristides de Sousa Mendes

Missa Brevis em Memória de Aristides de Sousa Mendes
(estreia absoluta)
de Sérgio Azevedo

Coro de Câmara da Universidade de Lisboa
Maestro José Robert
Participação do Coro da Universidade de Lisboa
Comunicações do Doutor António Vasconcelos Tavares, Pró-Reitor da UL e de Sérgio Azevedo
ENTRADA LIVRE : 2 de Outubro, 18 horas
Salão Nobre da Reitoria da Universidade de Lisboa
***
Carta do Professor Sylvain Bromberger ao Coro de Câmara da Universidade de Lisboa
Eu, os meus pais e os meus dois irmãos fugimos de Antuérpia, na Bélgica, no dia 13 de Maio de 1940, com muito pouco tempo de avanço sobre os exércitos alemães que, três dias antes, tinham atacado de surpresa a Holanda, a Bélgica e o Luxemburgo. Deixámos a nossa casa muito apressadamente, sem saber o que nos iria acontecer a seguir, mas certos de que, enquanto judeus, a nossa sobrevivência dependia de não nos deixarmos cair nas garras dos alemães. Depois de uma série de aventuras e desventuras, acabámos por estar a 22 de Julho em Bayonne, em França, no meio de uma enorme multidão de refugiados em frente do consulado português. Petain tinha acabado de se render a Hitler, e a parte de França em que nos encontrávamos seria em breve ocupada pelo exército alemão. Ainda consigo sentir o nosso medo e desespero: a fila à nossa frente era assustadoramente comprida, não parecia mexer-se, e os alemães vinham a caminho. Os detalhes do que aconteceu a seguir estão já um pouco difusos na minha memória, mas sei que a certa altura os nossos passaportes foram levados para dentro do consulado, e pouco tempo depois trouxeram sacos cheios de passaportes para a pequena praça perto do consulado. Os nossos passaportes, devidamente carimbados com vistos portugueses, estavam entre eles. Desse momento lembro-me perfeitamente! Não tinha havido quaisquer formalidades ou entrevistas, atrasos ou condições. Com aqueles vistos, conseguimos uma autorização para atravessar Espanha, saindo de França apenas um pouco à frente dos alemães, chegando assim a Portugal em segurança. A partir daí acabámos por partir para os Estados Unidos. Cerca de três anos mais tarde eu voltei à Europa como soldado americano, e tive a oportunidade de ver com os meus próprios olhos o destino de que teríamos sido vítimas se não tivéssemos fugido.

Ainda que eu nunca me tivesse esquecido daqueles momentos em frente do consulado português em Bayonne, apenas tive conhecimento do que tinha de facto acontecido ali em Maio de 1986. Foi então que, através de um artigo no New York Times e troca de correspondência com John Paul Abranches, eu soube que aqueles vistos portugueses, que provavelmente salvaram as nossas vidas, tinham sido emitidos contra as ordens do governo de Salazar, e apenas porque de Sousa Mendes, o cônsul português em Bordeaux, tinha vindo a Bayonne naquele dia e ordenado a uma equipa relutante que o ajudasse a emitir vistos para todos os refugiados que estavam à frente do consulado. Também só soube nesse dia que de Sousa Mendes tinha pagado bem caro por um acto tão belo e altruísta. Como escrevi na introdução de um livro que lhe dediquei, “Eu nunca o vi, nem ele a mim.” Os meus pais morreram ambos totalmente inconscientes do que ele sacrificara por eles, e provavelmente nunca terão chegado a ouvir sequer o nome dele.

Há algum tempo, John Paul Abranches pediu-me que explicasse como o ter recebido um visto em 1940 afectou a minha vida. Consegui responder-lhe em muito poucas palavras. “Tenho agora oitenta e um anos, sou Professor Emeritus no M.I.T., casado com uma mulher maravilhosa há cinquenta anos, pai de dois filhos que são para mim fonte de grande alegria e orgulho. Tenho tido uma vida muito rica. Se não fosse o feito dele (de Sousa Mendes), eu teria muito provavelmente morrido miseravelmente num campo de concentração antes de chegar sequer aos dezassete.”

Professor Emeritus – Dept. de Linguística e Filosofia
M.I.T.( Massachusetts Institute of Tecnologie, Cambrige, EUA)

Sobre o MIT: http://www.mit.edu
Sobre o professor: http://web.mit.edu/philos/www/bromberger.html
Maria João

CASA DA MÚSICA

Casa da Música
Os bilhetes para os espectáculos da Casa da Música esgotam sempre antes.
De eu os comprar. Ainda nem sequer lá entrei.

Mas sei que hei-de ir lá um dia, desafiador de eternidades, quando já a casa for um monte de destroços salpicado pelo mijo dos cães do futuro.

Nessa altura, hei-de dizer:
- Ainda bem que nunca cá tínhamos estado. Para ver uma merda destas…
Rui Costa

Matthew Barney
Joaquim Rocha

Companhia do Eu

Olá a todos,
A Companhia do Eu é uma escola nova em Lisboa, com cursos de criativação. Envio aqui a morada do site: http://www.companhiadoeu.com/. Eu estou por lá a dar aulas de pintura. Por favor, divulguem. Beijinhos,
Maria João

Novela Nasal – 11º Episódio

A guerra existe talvez porque a lei da sobrevivência é a que vence sempre. Não aceitamos o que somos, que dependemos da natureza, que um dia morremos ao contrário dela. A natureza dá-nos tudo, mas também nos tira tudo e nós também somos natureza. Nascemos, vivemos e morremos, é um ciclo natural que não podemos controlar. Os seres não aceitam a sua condição de finitos, querem controlar o que está para além deles e como não conseguem, estragam o que está em redor, tornam-se destrutivos. Por mais que se desenvolva a cultura, a arte, o civismo entre os seres, tudo se centra num mesmo princípio: ser forte e ir à luta, eu tenho de ser o centro do mundo porque sou imortal. Mas porque é assim? Tenho pensado muito nestas questões ultimamente. Sobre a natureza, sobre a natureza que está dentro de nós também. Somos um espelho da natureza, deste milagre que nos rodeia, que tudo nos oferece. Sei isso desde que conheci o amor do meu Macacão. Compreendo agora como pode existir um encantamento inefável entre dois seres aparentemente tão diferentes, mas que através de uma troca de fluidos se tornam apenas um, num acto osmótico de pura magia. Nós os dois formamos um centro descentrado porque somos dois. O mundo devia ser formado por centros descentrados assim, em harmonia, multiplicados musicalmente por todo o universo. Entendo qual é o papel do amor no mundo, é anima, o que une os seres, um verdadeiro milagre. Acho que fiquei grávida na última osmose com o meu Macacão. Por isso tenho pensado tanto. Penso no mundo onde o meu filho irá nascer.

FIM
Maria João

Antes de Christo

Para o Joaquim Rocha.

Man Ray, O Enigma de Isidore Ducasse, 1920
Man Ray, O Enigma de Isidore Ducasse, 1920
Fotografia publicada no nº1 da revista La Révolution Surréaliste,
acompanhando a introdução de André Breton
Man Ray, O Enigma de Isidore Ducasse
Man Ray, O Enigma de Isidore Ducasse
Reconstituição presente no Museu Boijmans Van Beuningen em Roterdão,
Holanda (o objecto original perdeu-se)
Maria João

Ut pictura poesis # 18 – Interior feminino

Gwen John
Foto respigada aqui:

Gwen John, Canto no atelier da artista, 1907-09
Óleo s/tela

Sobre o pintor:
Maria João

25.9.05

?

UM HOMEM INCLINA-SE

Um homem inclina-se sobre o corpo nu de uma mulher
E estende lentamente sobre ele com a língua
Um líquido rosado
O corpo fica todo húmido brilhante e incendiado
Com os dentes faz logo aqui e acolá
O signo do amor
Pequenos pontos brancos que adornam a pele escura
A mulher fecha os olhos dilata as narinas
Às vezes para seu desgosto um suspiro entreabre os seus lábios.

Versão possível de HMBF.

Emilio Adolfo Westphalen

Emilio Adolfo Westphalen nasceu em 1911 no Peru. Poeta e ensaísta, estudou no Colégio Alemão de Lima, tendo ingressado posteriormente na Faculdade de Letras da Universidade de San Marcos. Obteve a Licenciatura em 1932. Passado um ano publicou o seu primeiro livro: Las ínsulas extrañas, ao qual se seguiu, em 1935, Abolición de la muerte. É um dos mais importantes poetas surrealistas peruanos. Dirigiu as revistas Las Moradas, Revista Peruana de Cultura e Amaru. O domínio de várias línguas (inglês, alemão, francês, italiano e português) permitiu que trabalhasse como tradutor para as Nações Unidas. Ocupou o cargo de Agregado Cultural da Embaixada Peruana em Roma. Em 1977 obteve o Premio Nacional de Literatura. É hoje considerado um dos maiores poetas peruanos do séc. XX, a par de César Vallejo, José María Eguren e Martín Adán.

Joaquim Rocha
Joaquim Rocha

EU ONTEM FIZ O SUDOKU MAS EU QUERIA ERA SER O SANDOKAN
Rui Costa

24.9.05

Joaquim Rocha
Joaquim Rocha

Inventar-me vivo de vez em quando.

Image hosted by Photobucket.com

400 milhões de pessoas carecem das calorias, proteínas, vitaminas e minerais necessários para manter o corpo e o espírito num estado saudável...

Image hosted by Photobucket.com

Milhões de seres humanos padecem de fome permanente...

Image hosted by Photobucket.com

Outros sofrem de deficiências causadas por carências e de infecções a que poderiam resistir com uma alimentação melhor...

Image hosted by Photobucket.com

Morrem por ano 14 milhões de crianças com menos de 5 anos devido aos efeitos combinados de subnutrição e infecções...

Image hosted by Photobucket.com

Em algumas regiões, metade das crianças tem ao nascer uma esperança de vida inferior a 5 anos...

Os teus problemas são um insulto para quem não tem que comer. Eu estou-me nas tintas para todo esse mistifório de meninos mimados pela sorte. Quero lá saber do depois do depois. Quero é saber do agora, aqui, quero saber de problemas concretos, daqueles que se resolvem com as mãos, com os pés, no estômago.
Vergílio Fereira, in Para Sempre.

Novela Nasal – 10º Episódio

Sempre que discuto com o meu Macacão é sobre as divergências que temos em relação ao nosso futuro, mas depois fazemos as pazes e ele oferece-me poemas tão bonitos! Se o sistema imunitário não dessa continuidade a esta guerra química não teríamos problemas, já estávamos a viver juntos. Eu e o meu Macacão gostávamos muito de constituir família, já conversámos sobre isso, ele confessou que gostava de ter uma filha e chamar-lhe Borbulha, se fosse um rapaz gostava que se chamasse Quisto Sebáceo, como um antepassado meu. Sei que apenas posso constituir família aqui no canal sinusoidal esquerdo, porque estou bem protegida, a construção desta casa é sólida e o facto de se situar num declive funciona como uma espécie de abrigo subterrâneo. Ultimamente tem-se falado muito numa nova ameaça para o bem-estar das inflamações: consta que o sistema imunitário conhece uma bomba mortífera, que dá cabo de todo o meio ambiente, pode eliminar-nos com ela, também todas as construções que fizemos; É uma bomba que arruina a própria natureza, chama-se Anti-inflamatório. A guerra de facto é um absurdo, podíamos todos viver pacificamente de um modo mais natural, sem prejudicar nada, nem ninguém; É um absurdo este conflito ancestral entre o sistema imunitário e as bactérias, nós inflamações pagamos só por sermos filhas de quem somos, nesta luta por territórios e pequenos poderes. Podíamos coexistir todos com um pouco mais de tolerância, de alteridade, diálogo e compreensão, mas isso não existe. Devia existir mais respeito pela natureza, pois ela dá-nos tudo, ela é imensa, existe espaço para todos, não é necessário estarmos em guerra.
Maria João

FEIRA DO MONTIJO

(Uma despachada rapariga da província)

Como? Isaura? Como? Vinte e dois.
Nasci num dia de apanha de azeitonas,
num estábulo velho. Esta cicatriz
foi na minha primeira visita
a Évora, a casa da minha avó,
levei com uma escada de alumínio
na testa. Não rias, mas pulsa
quando me venho.
Como?
Sim, se calhar foi quando me deu
para começar a sonhar c’a cidade,
onde as fotografias ficam prontas
em meia-hora. Ou achas
que a vida está para demoras?
Como? Comes-me ou não?

António Cabrita

António Cabrita nasceu no Pragal a 16 de Janeiro de 1959. Em 1979 publicou Oblíqua Visão de um Cristal num Gomo de Laranja ou Perene o Sangue que Arrebata os Anjos Vingadores. Parte considerável da sua obra poética está reunida em Arte Negra, livro de 2000 publicado pela Editora Fenda. Crítico de cinema e crítico literário no Expresso, António Cabrita é também editor das edições Íman, director da revista Construções Portuárias, autor de contos e argumentos para cinema.

Ut pictura poesis # 17– Do outro lado da janela

Image hosted by Photobucket.com
Foto respigada aqui:

Caspar David Friedrich, Mulher à janela, 1822
Óleo s/tela, 44x37cm
Staatliche Museen , Berlim, Alemanha

Sobre o pintor:
Maria João

23.9.05

POIS

IRRITAM-ME AS MULHERES
AO VOLANTE
MAS É SÓ PORQUE
O VOLANTE
- AH TURBO-DOR!-
NÃO SOU EU.


Rui Costa

Post

COMPREI O JORNAL
NÃO PORQUE FOSSE LÊ-LO
MAS PORQUE ME AGRADOU
O PENSAMENTO
DE PODER NÃO O ABRIR


Rui Costa

Fragmento # 15 – A casa escreve descrevendo-me

A casa escreve descrevendo-me em cada parede amarelecida pelo tempo em cada camada de memória em cada paixão em cada parede de ilusão. A minha casa foi uma conquista ao tempo, a conquistada no tempo e o tempo consome as suas paredes e vai-me consumindo como Cronos devorou seus próprios filhos. Já dormi em todos os quartos da casa, tudo começou assim, apoderei-me dela e ela a pouco e pouco apoderou-se de mim, com as suas paredes cobertas de rastros, preenchidas com os meus artefactos, o chão de madeira, os frisos geométricos junto ao tecto. A casa é um porto de passagem, um local perdido onde se regressa num tempo passado que vejo ao longe no exterior. Sempre que regresso à casa sinto que chego ao casulo fofo e quente, onde estou bem guardada, nos meus papéis e livros amarelos, onde sou passado a flutuar, numa acumulação de objectos estranhos que me olham e falam. Os objectos palram numa linguagem que nem sempre entendo, estão de volta de mim todos os dias, conhecem-me com a palma da mão, e sabem como gosto de os mudar de sítio quando falam de mais, ou dizem o que não quero ouvir dizer.
Nunca sei onde estão as chaves de casa, antes de sair procuro-as sempre, ou estão na cozinha, ou estão na sala, ou no quarto, ou na marquise. As chaves obrigam-me a percorrer todo o espaço antes de sair. A casa diz: tens de ver onde deixas as coisas, se está tudo bem, não sais daqui enquanto não percorreres todo o meu interior, vê lá se não tens lixo para deitar fora. Vai dar uma volta, mas vê lá como é que vais.
Nunca sei onde estão os óculos, se não os deixo no nariz ou ao lado do computador, repete-se o ritual da ronda à casa, à casa de banho, à cozinha, ao quarto, à sala. Perco-me dentro de casa, fumo cigarros, as paredes amarelecem absorvendo o fumo, sinto-me sufocada por estas paredes. A casa esconde-me as coisas, as canetas, os lápis, os cadernos, os sapatos. A casa apoderou-se de mim há muito tempo, ela diz-me: aqui estás bem, podes dormir podes sonhar podes pensar à vontade, as minhas paredes mostram-te o que fazes, os teus gestos, as tuas cores, as texturas, os amigos, a lua, as tuas paisagens na parede, os que passaram por cá deixaram rastros também, estão comigo, vivos ou mortos, os que aqui dormiram. Aqui estás tu e perdes-te aqui dentro, por isso se escondem os objectos, é para acordares, saíres de ti, vai dar uma volta, areja a cabeça, vai ver outras coisas fora das minhas paredes.
Maria João

DE ANTÓNIO PEDRO RIBEIRO

O poeta libertino passeia-se por braga

os pêlos do nariz entram na "brasileira"
e lêem eça de qúeiroz
as mamas discutem teatro
as mulheres bonitas são verdes
as sapatarias devoram virgens crucificadas

a trepar pelas arcadas
as mini-saias já não se passeiam pelo "astoria"
assassinado pela merda híbrida
viva a velha "brasileira" que se mantém no sítio!
e os empregados rabugentos
e os clientes petrificados a vê-las passar

escândalo!
aumenta a prostituição na cidade
a junta de freguesia de s.vítor e a polícia coligaram-se
para combater o flagelo
cambeses pertence a barcelos
as meninas perdem-se no mundo dos saldos
nas traseiras do hospital de s.marcos
marcos e zapata a conspirar
desfile de guerrilheiros na avenida da liberdade
nas barbas do papa e do arcebispo primaz
um doido para a mudança!
um doido sem vereadores
um doido que escreve á mesa da loucura
que se ridiculariza a si mesmo e ao mundo
que escuta a conversa dos anciãos
é bom morrer em braga!- diz o cartaz
talvez por isso eu esteja aqui
é bom morrer em braga-diz o cartaz
talvez por isso eu esteja aqui
a morrer e a renascer várias vezes
na "brasileira" à mesa dos papéis
e o blog que não bloga
e a empregada de mesa sorridente
e a clientela que envelhece
ando com falta de speed na tola
ao balcão os empregados conferenciam
sobre o tempo que faz e os tempos que passam
estou doido e não sirvo para o mundo!
estou doido e crio mundos
estou doido e assim quero ficar
morte ao mundo e aos seus criadores!
morte ao poeta e aos seus tumores!
ela comprou um jaguar-diz o ancião.
ela comprou um avião-diz o caviar.
ela perdeu o telemóvel e morreu ao terceiro dia
ela...
na minha cidade
parece um tanto ou quanto surrealista.

A. Pedro Ribeiro
Braga, "A Brasileira", 18.8.2005.

Rui Costa

GRAFITO

TODOS OS ANIMAIS SÃO POLÍTICOS!
Rui Costa

À LUZ DE DUAS LEITORAS DO INSÓNIA

A lâmpada que sujou tudo

Do exercício de olhar e ver, seccionar o que se pretende, como quem espreita o mundo por uma objectiva registando apenas parte da realidade, depende a minha limitada visão. É da luz que uso, de que disponho, que depende a eliminação de parte da realidade.
E vejo o que quero ver...e ignoro o que no momento quero ignorar, escolhendo assim o terreno onde habito.
Certo é que essa luz raramente é ondulatória e tem fotões. Também é por mim assumido que nem sempre consigo controlar a disposição e consequentemente a luz que escolho para um dia, e tantas vezes me arrasto para fora da cama de manhã com os olhos poluídos e os pés torturados de mil sapatos. Outros dias há em que tudo é novo, só o belo me acompanha.
Facto é que aquela lâmpada fundida na casa de banho me proporcionou um banho tacteado à luz da vela.
Erro meu, no dia seguinte colocar uma lâmpada cem vezes mais potente do que aquela pequena chama. Repentinamente, os azulejos ainda ontem impecavelmente alvos, tomaram um tom pastel.
Substituí outros talentos por um pano e detergente, pensando que esse fenómeno da causa e do efeito não é de todo científico, e que provavelmente uma lâmpada de mil velas teria provocado um tecto igualmente amarelado... que tais preocupações de brancura seriam diferentes para gerações iluminadas à luz do gasómetro.
A penumbra liberta os sentidos oprimidos pela exuberância da visão. Qualquer maçã tem um cheiro mais intenso no escuro e é na escuridão que muita realidade se reordena e claramente se revela. Certa que o bruxulear da chama de ontem me mostrou o arco íris pousado nas bolas de sabão, incomparavelmente mais nítido que o dia hoje, iluminado a sol aberto e não menos cogitação.

Aurora Silva / Teresa Tudela

Ut pictura poesis # 16– Mãe e filho

Image hosted by Photobucket.com
Foto respigada aqui:

Agnolo Bronzino , Retrato de Eleonora de Toledo e o seu filho, 1550
Óleo s/tela, 115x 96cm
Galeria dos Uffizi , Florença, Itália

Sobre o pintor:

22.9.05

Joaquim Rocha
Joaquim Rocha

MANIFESTO

Eu gosto muito dos senhores que moram no meu prédio.
O prédio é alto e tem elevadores. Assim é melhor porque ninguém
tem que carregar ninguém às costas. Quer dizer, as pessoas
também podiam ir pelo seu próprio pé mas isso era se não houvesse
pessoas no meu prédio que precisam de favores. Precisam,
e depois pagam com as costas na subida-Ouvi dizer que há
pessoas no meu prédio que têm em casa florestas normandas (eu
cá só ervas daninhas!). É que o elevador do meu prédio avaria
muitas vezes. Avaria, e depois os senhores dos andares de cima
precisam de carregadores. As pessoas dos andares de baixo
começaram a nascer todos os dias com as costas mais
largas para poderem carregar melhor, e agora o elevador
avaria quase sempre. A minha sorte é eles saberem que
eu só tenho em casa ervas daninhas. Nunca me pedem para
os carregar nem sequer estacionam as suas árvores novas
a barrar-me a entrada de casa: têm medo de ser contaminados.
Agora são os senhores dos andares de cima que me pedem
favores: se posso mudar de casa, de prédio, que até me
oferecem uma casa com florestas normandas lá dentro.
Mas eu não quero. Estou bem aqui. As minhas ervas
chegam já ao primeiro andar. Às vezes subo por elas
e convidam-me para jantar. Falamos e rimos e quando
nos calamos o silêncio à volta é maior.
Até agora cresceram sempre frescas pelo seu pé acima.


Rui Costa

Juventude e beleza, também
decadência e devassidão. Tudo
é possível por ser interdito.
Homens de fogo, mulheres de lama.
Saíram do mundo para a minha pasta
forrada a papel de fantasia.
Usam ligueiros, pénis
e soutiens. Máscaras e luvas.
Há zonas no corpo enegrecidas
pelo chicote. Amam-se, fornicam.
Exibem o ódio, a quase demência
de um mundo maldito.

Isabel de Sá nasceu em 1951 em Esmoriz. É licenciada em Artes Plásticas/Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Realiza exposições de pintura desde 1977. Exerce a profissão de professora. Publicou o seu primeiro livro de poemas, Esquizo Frenia, em 1979 na editora & etc. Recentemente, as Quasi Edições reuniram toda a sua obra poética publicada num volume intitulado Repetir o Poema. Sobre esta obra escreveu António Guerreiro no Actual (17-Setembro-2005), suplemento do jornal Expresso, o seguinte: «A característica mais evidente desta poesia é a criação de um universo fechado no seu complexo de símbolos e imagens: ela define-se, antes de mais, por um determinado imaginário, isto é, por um conjunto de imagens que formam um arquivo pessoal, um léxico e um discurso não partilháveis.»

Ut pictura poesis # 15– Janela do pintor

Gris
Foto respigada aqui:

Juan Gris , Janela aberta, 1921
Óleo s/tela, 65 x 100 cm
Colecção M. Meyer , Zurique, Suíça

Sobre o pintor:
Maria João

21.9.05

A NUVEM PRATEADA DAS PESSOAS GRAVES

Nem sempre se deve desconfiar das pessoas
graves, aquelas que caminham com o pescoço inclinado para baixo,
os olhos delas a tocar pela primeira vez o caminho que os pés confirmarão
depois.
Às vezes elas vêem o céu do outro lado do caminho que é o que lhes fica por baixo dos pés e por isso do outro lado do mundo.
O outro lado do mundo das pessoas graves parece portanto um sítio longe dos pés e mais longe ainda das mãos
que também caem nos dias em que o ar pode ser mais pesado e os ossos
se enchem de uma substância morna que não se sabe bem o que é.
Na gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, com que nos são alheias quando as olhamos de frente rumo ao lado útil do caminho que escolhemos, essas pessoas arrastam uma nuvem prateada que a cada passo larga uma imagem daquilo que foram ou das pessoas que amaram.
Essas imagens podem desaparecer para sempre se forem pisadas quando caem no chão. A gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, destas pessoas, é, por isso, uma subtil forma de cuidado.

In “A Nuvem Prateada das Pessoas Graves”, 2005, Quasi

Rui Costa

O SOL DA TARDE

Este quarto, como o conheço bem.
Agora alugam-se quer este quer o do lado
para escritórios comerciais. A casa toda tornou-se
escritórios de intermediários, e de comerciantes, e Sociedades.

Ah este quarto, não é nada estranho.

Perto da porta por aqui estava o sofá,
e diante dele um tapete turco;
ao pé a prateleira com duas jarras amarelas.
À direita; não, em frente, um armário com espelho.
Ao meio a sua mesa de escrever;
e três grandes cadeiras de vime.
Ao lado da janela estava a cama
onde nos amámos tantas vezes.

Estarão ainda os coitados nalgum lugar.

Ao lado da janela estava a cama;
o sol da tarde chegava-lhe até metade.

…De tarde quatro horas, tínhamo-nos separado
por uma semana só… Ai de mim,
aquela semana tornou-se para sempre.

Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis.

Konstandinos Kavafis
Konstandinos Kavafis nasceu em Alexandria em 1863. Passou aí quase toda a sua vida. Criado no seio de uma família de abastados comerciantes gregos, originários de Istambul, viveu sete anos em Londres após a ruína financeira da sua família. A experiência londrina marcou de tal forma Kavafis, que os seus primeiros versos foram escritos em inglês. De regresso a Alexandria, tornou-se frequentador assíduo de bares e bordéis. A sua inclinação homossexual começou a ficar vincada com as primeiras relações amorosas. Em 1885, tornou-se correspondente do jornal Telegraphos. Em 1901 foi, pela primeira vez, à Grécia, onde acabou por publicar os seus primeiros poemas. Entretanto empregou-se no Ministérios das Obras Públicas egípcio, onde trabalhou até ao final dos seus dias. Kavafis morreu de um cancro na laringe, em 1933.

ESTÃO BONS?

BOAS?
Apresentem-se pá, contem coisas, mandem coisas, presunto, atum, lagartas voadoras, poemas, estalactites, metáforas, realidade azul, um pedaço de inferno, qualquer coisa, enfim, que se coma, coisas impossíveis de comer, o cheiro das amoras ao ar do verão em cambra, outra coisa doce, um pensamento gasto, olás, ou noutro sítio qualquer, qual é o teu universo, um refrão demente, um lenço, a cara da tua mãe, o remorso na cabeça de alguém, um pirilampo, um mágico voador, a areia que se mete nos dedos e depois estende a praia ao túnel do marquês, a marquesa, a música, o mar, uma abelha a pingar do nariz, o resto, um pouco mais que nada, mandem-se!


Práqui.
Ou práqui: msgtorc@hotmail.com
Rui Costa

Ut pictura poesis # 14– Janela indiscreta

Hopper
Foto respigada aqui:

Edward Hopper, Janelas à noite, 1928
Óleo s/tela, 73,7x 86,4cm
Museu de Arte Moderna, Nova York, EUA

Sobre o pintor:
Maria João

20.9.05

Jogo de amigos (anterior ao sudoku)

x – dois.
y – não não agora não foi.


y – dois.
x – não.
y – só sei que hoje já vão oito.


x – dois.
y – tá quieto.


x –
y – dois, já vão seis.
x – aqui não.


nota: Com dois dedos, aflorar os testículos do companheiro.
Para que ele note que foi apanhado, dizer “dois”.

Nuno Moura

UM BLOG

Curtas

Rui Costa

TEATRO DO CAMPO ALEGRE

Esta quinta-feira retoma-se o ciclo das “quintas de leitura”, com a presença do grande poeta e dizente Daniel Maia-Pinto Rodrigues! Quem for avise. Relembro um fabuloso livro de poesia (“O afastamento está ali sentado”, Quasi Edições):


“A história do pastor”

A seguir a história do pastor.
O pastor vivia em Goinge, floresta normanda.
Era filho dos senhores da Escânia
hoje conhecedores de ciências.
Aos vinte anos sabia já
distinguir as ervas
curava com esmero os golpes do gado.


Entretinha-se com o queixo.
E todos os arroios
o conheciam de sol a sol.


Aos vinte e seis anos
casou com Dourada, a rapariga débil.
Aos trinta
viu realizar-se um sonho antigo:
receber os primos no pátio.
Abriu então cervejas
fritou amêndoas
falou pela primeira vez de nostalgia.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues

Rui Costa

CÁ E LÁ

Há muito tempo que estamos a ensaiar a representação
mas o problema é que não somos sempre os mesmos.
Muitos morreram já, outros mudam de sexo,
mudam de barba de cara língua ou idade.
Há anos preparamos (há séculos) os papéis,
a tirada de fundo ou apenas
‘senhor, a mesa está posta’ e nada mais.
Há milénios esperamos que alguém
nos aclame no proscénio com aplausos
ou mesmo com algum assobio, não importa,
desde que nos reconforte um nous sommes là.
Infelizmente não pensamos em francês e assim
ficamos sempre no cá e nunca no lá.

Eugenio Montale

Eugenio Montale nasceu em Génova, no dia 12 de Outubro. Com uma boa voz de barítono, estudou canto, pensando numa eventual carreira operática. Nunca chegou a frequentar a Universidade, adquirindo a sua cultura de forma auto-didáctica. Em 1916 publicou o seu primeiro artigo e o primeiro poema que incluirá em Ossi de seppia (1925). Chamado para a Escola de Infantaria de Parma, foi depois mobilizado para a frente de Vallarsa. Publicou poemas numa revista de Turim, a Primo Tempo. Em 1923 abandona a ideia de uma carreira como cantor de ópera. Dois anos depois assina o manifesto anti-fascista de Benedetto Croce e publica o seu primeiro livro: Ossi di seppia. Em 1926 trava conhecimento com Umberto Saba e começa a colaborar na famosa revista florentina Solaria. Transfere-se para Florença, arranjando emprego na casa editora Bemporad. Em 1931 ganhou o prémio dell’Antico Fattore, como poemas posteriormente publicados (1932) sob o título La casa dei doganieri e altri versi. Em 1938, dispensado do seu cargo de director do Gabinete Vieusseux (biblioteca), em virtude de não estar inscrito no Partido Nacional Fascista, iniciou uma intensa actividade como articulista e tradutor. Depois do final da guerra, fundou o bissemanário Il Mondo. Começou a desenhar e a pintar, transferindo-se para Milão. Ganha vários prémios literários e viaja muito pelo estrangeiro. Em 1975 foi-lhe atribuído o Prémio Nobel da Literatura. Faleceu no dia 12 de Setembro de 1981.

Ut pictura poesis # 13 – Biblioteca amarela

Van Gogh
Foto respigada aqui:

Vincent Van Gogh, Estudo para romances parisienses, 1888
Óleo s/tela, 53x 73,2 cm
Museu Van Gogh, Amesterdão, Holanda

Maria João

1 9 8 7

Em 1987 apareceu tudo isto:

- 1979-1987 (Doce);
- Os Dias da Madredeus (Madredeus);
- Coisas que fascinam (Mler If Dada);
- Free Pop (Pop dell`Arte);
- Prima Donna (Radar Kadafi);
- O Elevador da Glória (Rádio Macau);
- Mar d`Outubro (Sétima Legião)

e o grande Kiss me Kiss me Kiss me (The Cure):

Kiss Me
Rui Costa

19.9.05

PUR(O) PODER

Soares é Sapo
Rui Costa

Ut pictura poesis # 12– Janela nº3

Richter
Foto respigada aqui:

Gerhard Richter, Nuvens, 1978
Óleo s/tela, 400 x 250 cm
(c) Gerhard Richter
Foto: Achim Kukulies, Düsseldorf 2004

Sobre o pintor:
Maria João

BALADA DO PAÍS QUE DÓI

O barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o corpo cai
o corpo dói

português vai
português cai

o barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o país cai
o país dói

o tempo vai
o tempo dói

português cai
português vai
português sai
português dói

CALADOS

Bateu à porta o agente
mostrou o cartão e disse
fomos informados.

Ana Hatherly

Ana Hatherly nasceu no Porto em 1929. Poeta, romancista, ensaísta e tradutora, iniciou a carreira literária em 1958. A si se deve aquele que é considerado o primeiro poema concreto publicado em Portugal (poema que apareceu no Diário de Notícias de 17-9-1959). Tendo sido um dos principais elementos do grupo de Poesia Experimental nos anos 60 e 70, o seu trabalho está representado nas mais importantes Antologias e Histórias da Literatura Contemporânea de Portugal, Brasil, Espanha, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, Dinamarca, Suécia, Holanda, e República Checa. É também autora de várias traduções para português de obras inglesas, francesas, italianas e espanholas. Durante as últimas duas décadas, tem-se dedicado ao estudo da literatura portuguesa e espanhola do Siglo d'Oro, tendo publicado vários ensaios e comunicações sobre o tema em várias das mais conceituadas publicações literárias de Portugal e do estrangeiro. Licenciada pela Universidade de Lisboa e Doutorada em Literaturas Hispânicas pela Universidade de Berkeley (U.S.A.), é actualmente Professora Catedrática de Literatura Portuguesa na Universidade Nova de Lisboa e Presidente do Instituto de Estudos Portugueses da mesma Universidade. É ainda membro da Direcção do PEN Club, de que já foi Presidente. *

TRIPS À MODA DO PORTO I (Sonata)

Afanancei-lhe o gatanhunço
de mãozinha leve o petróleo labarava
a modos de vergunhácia.
Carmélia entrincheirada no pódio
da virtudôncia a macacar o juízo
cá do mantras. já expectava.
doidivas da romantécia
por entre nuvens a galope, tá-se a ouvir,
nadenhas e mais vamos namorandar,
gosto-te bitaites-punga e coisa do género.
Dei-lhe chofagem de po-ema mais
po-ema mais po-ema, libertanou-se
a posta do pecado foi um atavias
tanglónico.
o mantras satisfeitou-se
e Carmélia entrou na universidade
com as letras todas.

Rui Costa

18.9.05

GERADOR DE TEXTO

Já há bastante tempo que um professor chamado Pedro Barbosa se dedica ao desenvolvimento de geradores de texto. O meu amigo José João também tem feito algumas experiências neste campo. Os textos que transcrevo abaixo são dois resultados dessas experiências. Respondam por favor: isto é literatura?
gorila

ó resplandescentes águas ó espelho lembradiço
das mercadorias
um telhão que se translucida e acasala rectilíneo
ó argolada da cidra ó embrulhador franjado do estalo
onde a radiodifusão das receptividades brilha derramando-se
sobre o afixo
que na dulcineia do acirrante deísmo engravida
lúbrico de companheirismo e sintetização
-*-
Apodreço o teu washingtoniano sémen de estirador
a tua platónica negrura volumosa
a tua minguante toma de folheio
a tua celebridade exótica sempre eruptiva
.
Por ti eu corto a preexistente antiguidade de um regresso
que tremula e provém a sua coincidência
que se barateia e rastilha ao teu magnete de microscópio
ou é goiabada das tuas imediações de novidade
.
Se remasco algum engate não o emboto
porque quero oferecer-te a supersticiosidade de um petróleo interplanetário
que chie e escarna nas tuas produtividades inexplicáveis
e seja um tom ou um milhafre um contragolpe concernente
.
Ofereço-te esta estupidificante aeronáutica esta toxicidade de carnagem
para que expludas a enchente fortidão
de um satanismo de plenas hospedarias
porque é por ti que espalho é por ti que malfaço
porque espalho o traquejo resfriador do teu janelo
.
.
A. Ares Redutível
Rui Costa

[vi]

já que sentir é primeiro
quem presta alguma atenção
à sintaxe das coisas
nunca há-de beijar-te por inteiro;

por inteiro ensandecer
enquanto a Primavera está no mundo
o meu sangue aprova,
e beijos são melhor fado
que sabedoria
senhora eu juro por toda a flor. Não chores
- o melhor movimento do meu cérebro vale menos que
o teu palpitar de pálpebras que diz

somos um para o outro: então
ri, reclinada nos meus braços
que a vida não é um parágrafo

E a morte julgo nenhum parêntesis

e e cummings

e. e. cummings, Edward Estlin Cummings, nasceu no dia 14 de Outubro, em Cambridge, Massachusetts. Entre 1911 e 1915 estudou na Harvard University, especializando-se em literatura grega. Em 1917 aparecem os primeiros versos de e. e. cummings na antologia Eight Harvard Poets. Entretanto os Estados Unidos entram na I Grande Guerra e o poeta participa como voluntário no corpo de ambulâncias norte-americano. Preso, por falsa acusação de traição, durante três meses, no campo de concentração de La Ferté-Macé, em Orne, é libertado em Dezembro. Em 1918 casa com Elaine Orr, de quem se divorciou pouco tempo depois. Após a guerra, estabelece-se em França, aonde regressa nos anos 20 e 30, décadas em que estende a sua criatividade aos domínios da pintura e do desenho, do bailado e do teatro, e em que estabelece um contacto directo com o vanguardismo literário europeu. Em 1923 publica o seu primeiro livro de poemas: Tulips and Chimneys. Em 1924 intala-se em Greenwich Village, vivendo da sua poesia e pintura, de leituras e conferências, e da ajuda familiar. Em 1927 casa com Anne Barton. Em 1932 conhece Marion Morehouse, que será a sua terceira e definitiva mulher. Em 1935 publica, a expensas da sua mãe, no thanks, livro recusado por treze editoras, a quem o poeta dedica o volume. A 3 de Setembro de 1962, em New Hampshire, é vitimado mortalmente por um ataque cardíaco.

Ut pictura poesis # 11– A Infância

Caroto
Imagem respigada aqui:

Giovane Francesco Caroto (1480-1555)
Giovane com disegno di pupazzo
Óleo s/tela
(37 x 29 cm)
Castelvecchio a Verona, Itália

Sobre o pintor:
Maria João

17.9.05

A minha infância é a felicidade da minha vida

No fundo - a voz ténue do instante. É
a minha melhor bala encovando-me. O acabado
vira lentamente os cantos amarelados coxeando. É isto - o meu
Fim... jazendo na pedra, espalhando um fedor nas minhas costas - deixando a felicidade da minha vida, que é a minha infância.

Ermenonville 1959

Tradução de Anabela Moura.
(a partir de versão encontrada aqui)
Unica Zürn
Unica Zürn nasceu a 6 de Julho de 1916 em Berlim. Afectada por crises frequentes de esquizofrenia, acabou por se suicidar em Paris no dia 19 de Outubro de 1970. Companheira de Hans Bellmer, a sua personalidade suscitou a admiração dos grandes nomes do surrealismo: Breton, Arp, Duchamp, Michaux, entre outros. Dos seus escritos, destaca-se Hexentexte, um livro de anagramas publicado em 1954, Primavera Sombria, de 1969, entre outros títulos póstumos como O Homem de Jasmim (1977). Durante a década de 60, realizou uma série de desenhos que combinavam o automatismo surrealista e certas experiências psicadélicas com drogas. A relação com Bellmer terá sido bastante intensa para ambos, contribuindo para o agravamento da doença de Unica e os problemas de alcoolismo de Bellmer. O suicídio de Unica Zürn ocorreu após cinco dias de internamento numa instituição psiquiátrica, no apartamento de Hans Bellmer em Paris. Este morreira pouco tempo depois, em 1975, tendo sido enterrado junto à sua companheira no cemitério Père Lachaise.

Ut pictura poesis # 10– Janela nº2

Constable
Foto respigada aqui:

John Constable, Mar perto de Brighton, 1826
Óleo s/cartão 17.5,5x23,8cm
Tate Gallery, Londres, Inglaterra
Maria João

16.9.05

Joaquim Rocha
Joaquim Rocha

JESUS NUM BAR

Já rio e raio foste
e o vício do vinagre
te afeiçoou aos bares
onde homem te fizeste
com a ruga celeste
de chegares sempre tarde.

O encontro seria
a noite em que nasceras,
borboleta de açúcar
no palato das feras.

Entanto do Natal
despetalando vamos
o malmequer de rum.
E existes porque faltas
ó tanto de nenhum!

Natália Correia
Natália Correia nasceu na ilha de S. Miguel, Açores, a 13 de Setembro de 1923. Ainda criança, veio estudar para Lisboa. Exerceu a sua actividade criadora em campos tão diversos como o ensaio, o romance, o teatro ou a investigação literária. Mas foi sobretudo na poesia que o seu talento de escritora vanguardista e independente de quaisquer agrupamentos poéticos ganhou plena expressão. Natália Correia, cuja escrita alguns críticos classificaram como surrealista, outros como barroca e outros, ainda, como romântica (entre todas, a classificação preferida pela própria), foi na verdade uma escritora cuja originalidade e versatilidade não podem ser compartimentadas em qualquer escola literária. Figura destacada da resistência ao fascismo, vários dos seus livros foram apreendidos pela censura. Manteve colaboração em vários jornais e revistas literárias, como O Sol e Seara Nova, tendo dirigido, depois do 25 de Abril de 1974, a Vida Mundial. Em 1979 foi eleita deputada à Assembleia da República. Natália dava largas ao seu invulgar talento oratório – a que não era estranha a coragem combativa que a moveu em vários momentos de intervenção política pública – nas suas polémicas intervenções parlamentares enquanto deputada (1980-1991) e nas tertúlias artísticas: primeiro em sua casa, mais tarde no bar Botequim, que fundou em 1971 com Isabel Meireles, Júlia Marenha e Helena Roseta, e onde durante os anos setenta e oitenta do século XX se reuniu grande parte da intelectualidade portuguesa – foi amiga de António Sérgio (esteve associada ao Movimento da Filosofia Portuguesa), Cruzeiro Seixas, David Mourão-Ferreira (“a irmã que nunca tive”), José-Augusto França (“a mais linda mulher de Lisboa”), Luiz Pacheco (“esta hierofântide do século XX”), Mário Cesariny, Almada Negreiros, Eugénio de Andrade... – e muitos escritores estrangeiros – Henry Miller, Henri Michaux, Graham Green, Ionesco... Faleceu em Lisboa em 1993. (Colagem)

Ut pictura poesis # 9– Apocalipse

El Greco
Imagem respigada aqui:

El Greco, Abertura do quinto selo do Apocalipse, 1608
Óleo s/tela 224.5,5x192,8cm
Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA

Sobre o pintor:
Maria João

15.9.05

Desabafo à pressa

A ideia de alargar o ensino do inglês a todos os anos da primária é boa… Mas o que era bom, o que era mesmo bom, bom, era que o ensino do português também fosse alargado. (sic) Ontem, em desabafo com uns camaradas, um dos quais insone, confessava eu algumas das minhas frustrações diárias. Todos os anos, mas mesmo todos, chegam-me turmas de cerca de 20 alunos/formandos às mãos (salvo seja), onde, para ser bonzinho, pelo menos metade não sabe ler nem escrever. Quando digo que não sabem ler nem escrever, é mesmo não saberem ler nem escrever. Nada de hipérboles. O desastre, se disso houver necessidade, pode ser facilmente demonstrado. Já nem me lamento que as criaturas não saibam interpretar um texto, mesmo quando o texto é de interpretação óbvia; nem me lamento que não saibam o significado de conceitos como, só para dar um exemplo, o de «etnia». Isso mesmo, «etnia». Ontem, numa turma de 18, só dois sabiam o significado de «etnia». Quando digo não saber ler nem escrever é, pura e simplesmente, não saber vocalizar palavras, ler com ritmo, estruturar uma frase, por mais simples que a frase seja. Vejam bem: ontem, uma aluna, disse-me que vivíamos numa monarquia. Perguntei-lhe se ela sabia qual a diferença entre uma monarquia e uma república. Respondeu-me que não. Falei-lhe num feriado que celebra a implantação da república no nosso país. Ela, toda feliz da vida, adiantou-se dizendo: «Pois é stôr, não ligue, é o 25 de Abril.» Outra aluna não me conseguiu referir um assunto da actualidade que lhe interessasse discutir. Nem sequer tinha ouvido falar de um furacão nos EUA. Após muito esforço, referiu-me uma tal guerra contra os árabes. Pedi-lhe que me esclarecesse qual era essa guerra a que se referia. Disse-me que era uma que tinha começado depois da queda de umas torres nos EUA, para aí há 60 anos. Isto é a mais pura das verdades. Esta é a mais pura das realidades. Estes miúdos têm todos o ensino obrigatório, trazem no repertório pelo menos 9 anos de escola, quando não 12. Não sabem nada de nada. Todos os anos me espanto com a quantidade de raparigas que me confessa ter por objectivo máximo na vida “arranjar” um bom marido, casar e constituir família. Pouco, muito pouco, mudou no nosso país. As meninas, muitas meninas, continuam a ser educadas para casarem, terem filhos, comerem porrada dos maridos e ficarem de bico calado. Não se iludam, este é, de facto, o retrato de uma grande parte do nosso país. Pôr esta gente toda a falar inglês é uma excelente ideia… Mas bom, mesmo bom, seria que se lhes desse cabo da indiferença, do adormecimento, da dolência com que se vão deixando endrominar no passar dos dias. Bom, mesmo bom, seria que, não sendo possível castrar-lhes a indiferença, pelo menos se pusesse esta gente a ler, escrever e falar com o mínimo de razoabilidade. Sem isso, de nada lhes valerá o tão apregoado thank you very nice.

Joaquim Rocha
Joaquim Rocha

O CARRINHO DE MÃO VERMELHO

Tanta coisa depende
de

um carrinho de mão
vermelho

reluzente de gotas de
chuva

ao lado das galinhas
brancas.

William Carlos Williams (1883-1963)
William Carlos Williams nasceu a 17 de Setembro de 1883 em Rutheford, New Jersey, de pai inglês e mãe porto-riquenha. Frequentou o liceu na Europa e em 1902 foi admitido na faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia, onde conheceu Ezra Pound e Hilda Doolittle. Em 1909, quando era médico interno em Nova Iorque, editou o seu primeiro livro: Poems. Posteriormente fez em Leipzig a sua especialização em Pediatria e em 1912 casou-se com Florence Harman. Fixou residência na cidade natal. Colaborou nas revistas Poetry e The Dial, participou no movimento Imagista, nomeadamente na colectânea Des Imagistes (1914). Nos anos 30 participou com Louis Zukofsky, George Oppen e outros no movimento Objectivista. A sua influência na poesia americana foi crescente e a sua obra reconhecida como de importância fundamental, nomeadamente por poetas de Black Mountain (Olson, Creeley) e de Nova Iorque, em particular Frank O’Hara. Em 1962 publicou Pictures from Brueghel and Other Poems, uma das suas obras mais conhecidas e Prémio Pulitzer. William Carlos Williams faleceu a 4 de Março de 1963 em Rutheford. (Síntese da Nota Biobliográfica presente em Antologia Breve, selecção e tradução de José Agostinho Baptista, edição bilingue, colecção Gato Maltês, n.º 30, Abril de 1995)