31.1.06

Releituras recentes - “Os fantasmas inquilinos”, Daniel Jonas

Ironia potente. Paródia, auto-paródia, capacidade de linguagem invulgar. Parece-me que acha que a linguagem é mais real do que o mundo, no que concordará com herberto helder. É torrencial mas não procura a concentração temática nem uma espécie de sagrado. A haver objectivo, é o da destruição, o tiro aos padres do lirismo serôdio e benfazejo. Mas “peca”, neste livro, por dar um ar de mau que é muito mau e mesmo muito mau- acabando talvez por ficar demasiado refém do próprio papel de que se investe. Em livro anterior há outro(s) registo(s) e isto mostra, com grande interesse, capacidade de mudar e experimentar, condição essencial de um escritor “a sério” [e só é (a) sério o escritor que brinca] – e neste caso a destruição há-de servir para aumentar a linguagem, quer dizer, o mundo.

Rui Costa

Coffee break

Após a difícil, exaustiva
contemplação da paisagem,
descemos ao bar
para um merecido coffee break.

O café é um bom digestivo
para a compacta barrigada de estesias
vividas no tombadilho.
Qualquer coisa de tangível,
literal, a que é bom
agarrar-se um poeta quando em risco
de levitação.

Depois, dispersos pelas poltronas,
imitamos o criado do bar,
servindo uns aos outros
poemas e agudezas similares
em porcelana fina.

No fim, na cumplicidade
de quem tem tão denodadamente
gargarejado o Douro,
cada qual a seu modo e em seu tom,
piscamo-nos os olhos,
achamos que somos os maiores.

Isto é: cada um acha
que ele próprio é o maior –
não desdenhando embora
prestar homenagem à segunda
mas ainda assim grande grandeza
dos demais.

Abençoado Douro, abençoada
alquimia do Douro!

A. M. Pires Cabral

A. M. Pires Cabral nasceu em Chacim (Macedo de Cavaleiros) em 1941. Licenciado em Filologia Germânica pela Universidade de Coimbra, foi professor do Ensino Secundário em Vila Real, animador cultural, co-organizador das Jornadas Camilianas. Publicou até ao momento cerca de três dezenas de títulos de poesia, teatro, romance, conto, ensaio e crítica. Em 1983 ganhou o Prémio literário do Círculo dos Leitores, com o romance Sancirilo. Estreou-se na poesia no ano 1974, com o livro Algures a Nordeste (edição do autor).

É preciso saber parar

Há questões relativas à crítica literária, diria mesmo questões quanto à própria essência da crítica, bem mais interessantes do que as que têm sido discutidas ultimamente. No fundo, a questão que João Pedro George levantou é completamente anódina ao pé de outras bem mais significantes. Mais do que escrever ou não escrever sobre livros de amigos, há a questão das chamadas novas formas de censura. Por exemplo: o fingir que não se conhece, o fingir que não se sabe, o fingir que passou despercebido, o fingir que passou ao lado, a chamada censura pela omissão. Renegar para o plano do esquecimento aquilo que não nos convém ser lembrado é, creio eu, uma nova forma de censura bem mais significativa do que a irrelevante questão de escrever sobre amigos. Esta prática, que não é de hoje, será prática de amanhã. Desde logo por esta tão básica razão: enquanto se criticam uns aos outros, os críticos chamam a atenção para si próprios. Prometo para um destes dias uns posts sobre o assunto. Agora não, que a coisa está quente e pareceria mal. Mas que não me falta a vontade, ai isso não falta. Como diria Juraan Vink, é preciso saber parar. E a poesia fala mais alto.

Mudam-se os tempos...

Pedro Mexia , João Miguel Tavares , Ricardo Araújo Pereira , José Mário Silva , Rui Tavares.Tudo gente da minha geração que leio com entusiasmo. (...) O José Mário Silva e o João Miguel Tavares conheço-os pelo que escrevem. (...) Do primeiro aprecio especialmente alguns textos de crítica literária. Dele li algumas críticas exemplares, pequenas maravilhas da sensibilidade humana.
João Pedro George, Segunda-feira, Outubro 17, 2005
José Mário Silva, jornalista do DN, assina prosa sobre livro de Nuno Costa Santos, amigo pessoal, também ele a colaborar no suplemento, ambos da equipa que organiza o É Cultura, Estúpido, no S. Luiz. Patético e burlesco! (...) Esta gente lê mas não aprende nada. O meio é pequeno, não dá para fugir a isto? O tanas! Não passam de preguiçosos sem recursos críticos.
João Pedro George, Sexta-feira, Janeiro 27, 2006

30.1.06

«As pessoas que escrevem nos blogues, como muitas das que escrevem nos jornais, como as que falam na televisão, dão aquilo que elas julgam que serão opiniões. Políticos falhados, jornalistas frustrados e tanta outra gente completamente iletrada, que não conhece os assuntos, e podiam dizer aquilo, ou o contrário, que era igual ao litro. Mesmo a maior parte dos cronistas são ignorantes, e o que escrevem são crónicas desnecessárias ou desabafos, aquilo a que chamo jornalismo da indignação. Mas faz muito sucesso, porque como as indignações são básicas, há muita gente a partilhá-las, e a ficar feliz por o senhor X, que até escreve no jornal, pensar como elas.» Vasco Pulido Valente

BAR DO ACASO

Escrevo, decerto, por qualquer
razão inútil que não vais nunca entender.
Surgem as frases, vês, desconhecidos
que no bar do acaso encontro e são
as tuas mãos a escrever por mim.

Minto-lhes, digo que só te amo
a ti, eles riem e pedem-me pra ficar,
que sim, que a noite ainda é uma pequena
musa no breve altar venal do coração.
Fico. Dou à boca o jeito do cigarro

e é em fumo que transformo o corredor
de imagens, metáforas, pequenos desvios de
ritmo mais pobre ou queda sempre a pique
em sentido nenhum. Às vezes, sabes, é mais
difícil descobrir que o amor, como o cigarro,
quando se acende é que começa
a iluminar o fim.

Rui Costa

ÂNGELA MENDES FERREIRA

Vale a pena ver o blog de uma das melhores fotógrafas portuguesas, aqui: http://berlinde.livejournal.com/

Rui Costa

Palavras e Presságios

Voltar a uns versos de Kavafis, de Eliot,
como quem regressa a uma casa que foi nossa há anos.
Repetir as sílabas, iluminar os símbolos
como fechadas salas, janelas cheias de pó
que escondem um jardim perdido, árvores da morte.
Melancolia do regresso e medo do vazio,
madeira que range, esvoaçar de sombras
e, de repente, num quarto, perdida
como um velho copo ou um espelho embaciado,
encontrares a chave da tua vida.
Palavras que te avisaram: “Um monótono dia
segue-se a outro igualmente monótono”,
ou te advertiram: “Nascer, foder, morrer.
Isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo”.
Palavras que a velhice e a noite me oferecem,
presságios que não entendi, anunciadas derrotas.

Tradução de Joaquim Manuel Magalhães.

Juan Luis Panero
Juan Luis Panero nasceu em Madrid em 1942. Oriundo de uma família abastada, recebeu uma formação distinta em Londres. O seu espírito rebelde levá-lo-ia a viajar por vários países da América Latina, onde foi conhecendo escritores como Octavio Paz, Jorge Luis Borges e Juan Rulfo. O seu primeiro livro, A través del tiempo, data de 1968. Com Antes que llegue la noche, de 1985, obteve o Prémio Cidade de Barcelona e, três anos depois, com Galerias y fantasmas, conquistou o Prémio Internacional de Poesia da fundação Loewe. Em 2003, parte considerável da sua poesia foi reunida num só volume, numa selecção a cargo de Felipe Benítez Reyes.

29.1.06

Eu hoje acordei assim:




29 de Janeiro de 2006

Neva em Caldas da Rainha.

Toupeiras há muitas

João Pedro George volta a cascar na «crítica literária jornalística». O post intitulado As toupeiras acomodam-se está a dar que falar, como já antes havida dado um artigo publicado na Periférica especialmente dedicado aos críticos literários do suplemento Actual (Expresso). Desta feita, o alvo é uma recensão assinada por José Mário Silva, no Diário de Notícias, a um livro de um seu amigo pessoal. Em termos estatísticos, no que respeita a fundamentos acerca do panorama traçado, não se pode negar a João Pedro George doutas capacidades. As dúvidas que as suas investidas levantam são de outra ordem. Deveremos considerar sempre «esperteza saloia» e «oportunismo», «patético» e «burlesco», quando a crítica literária é exercida entre amigos? De outra forma: que mal vem ao mundo quando alguém publica uma crítica literária a um livro de um amigo? Sempre assim foi, sempre assim será. Ainda mais num país pequeno como o nosso. Tomemos de exemplo a cronologia que Eduardo Pitta disponibiliza no seu sítio pessoal. A gente lê aquilo de uma ponta à outra e fica com a nítida noção de que o reputado crítico conhece meio mundo literário (português), desse meio é amigo de metade e priva ou privou com a restante. Contudo, deveria isso tê-lo impedido de escrever acerca dos livros dos seus amigos? Julgo que não, tal como não tem vindo a acontecer. Na revista LER são várias as recensões pela sua pena a livros de amigos seus. Vejam-se, a mero título de exemplo, as recensões a livros de valter hugo mãe (n.º 52, n.º 59, n.º64) e Jorge Melícias (n. 64), com quem colabora no weblod Da Literatura, mas também a livros de Jorge Reis-Sá (n.º 52, n.º 64, n.º 65), editor das Quasi onde Pitta tem vindo a publicar alguns livros de sua autoria. Outras situações, tão ou mais caricatas, poderiam ser referidas. Note-se a recensão a um livro de José Ricardo Nunes, na LER n.º 58, que, por acaso, havia escrito elogiosamente sobre um livro de Eduardo Pitta na LER n.º 48. Estas coincidências têm na sua origem vários factores. Quando alguém acumula funções de crítico com as de escritor, ou mesmo com as de editor, é muito natural que tais fenómenos sucedam com alguma regularidade. Em Portugal, como o meio literário é muito restrito, dá ares de promiscuidade. Trate-se ou não de favores, trate-se ou não de “amiguismo”, trate-se ou não, ao jeito do que quer João Pedro George, de «esperteza saloia» e «oportunismo», muito dificilmente poderá o cenário vir a mudar. Nem julgo que isso seja importante. Não sinto, portanto, que venha mal ao mundo por um crítico pronunciar-se sobre a obra de um amigo, desde que o faça com o mesmo grau de exigência e aplicação que dedica às obras de outros autores. Daí que me pareça que nos seus meritórios intentos o crítico João Pedro George se tenha ficado pela metade. É que toupeiras há muitas, acomodadas com maior ou menor evidência aos covis que mais lhes convêm.
Mais: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui. (s[e] t[ens] o[lhos] p[ára])

27.1.06

Fragmento #26 - Corredores

O sangue corre no sangue que corre, queimando as veias labirínticas das ruas no coração da cidade. Cheira a chuva de Setembro molhado na planície. Um cruzamento áspero de ossos com um aglomerado de pedras acompanha o som dos meus passos na noite. A chuva cai e escorrega nas pedras molhadas do meu chão, nas calçadas estreitas. No escuro, oiço os teus passos nas arcadas nocturnas, esbatendo-se ao longe: são apenas eco; apenas som em ricochete dos meus pés que voltam atrás em palavras passos. Cheira a terra molhada de Setembro nestas pedras escuras das ruas estreitas. O sangue corre no tempo das veias labirínticas da cidade no coração da noite a chover. As pedras têm um timbre a ferrugem nas suas vozes. Em vale de corvos, um anjo voou apenas com uma asa, a outra caiu em terra. Foi o seu último desejo aqui em forma de lápide de ferro. As minhas mãos são a tua asa, elas escrevem em passos no coração da noite. Grito às cinzas no vento destas ruas, quero ver o mar, cheira-me a Inverno neste amarelo às voltas. Vi o teu mar ao longe, numa seara de corvos negros: era a planície amarela. Em vale de corvos a terra é ferro quando a chuva cai. Grito no ar dos pulmões: onde estou eu que tu não estás?
Corro no tempo que corre como a água a cair nas ruas estreitas da cidade. Os nossos passos estão agora nos meus passos percorrendo estas calçadas de pedra na cidade branca das muralhas; são apenas eco, o som em ricochete das palavras que caem das minhas mãos; calçada com voz de água que corre no tempo que corre na água. Cheira a terra molhada na planície amarela com a terra cor de ferro em Setembro. O sangue corre no sangue que corre no coração das ruas estreitas da cidade onde te digo: estás nas minhas mãos sempre que parto pedra nas palavras que escrevo aqui.
Maria João

Sonhadores Inatos

Aprendizes fomos
Construtores fomos
Executores fomos
Cruéis

Inventores sempre
Aventureiros sempre
Oportunistas sempre
Fiéis

Sonhadores inatos
Sobreviventes natos
Nem sempre somos exactos
Nem sempre conseguimos evitar os actos

Marinheiros bravos
Libertámos escravos
Cultivámos cravos
Tão bem…

Temos alianças
Muitas desconfianças
Temos as nossas esperanças
Também

Sonhadores inatos
Sobreviventes natos
Nem sempre somos exactos
Nem sempre conseguimos evitar os factos…

Jorge Palma

Jorge Palma nasceu em Lisboa a 4 de Junho de 1950. Com apenas seis anos, ao mesmo tempo que aprendia a ler e a escrever, iniciou os seus estudos de piano. Em 1969 começa a trabalhar a nível da escrita musical e compõe as suas primeiras canções. A estreia a solo, no formato 45 r.p.m., verifica-se em 1972, com o single "The Nine Billion Names Of God". Um ano mais tarde, é editado o seu primeiro single em português, na sequência de um trabalho com o poeta José Carlos Ary dos Santos. Foi também em 1973 que, convocado para cumprir o serviço militar, partiu para o asilo político na Dinamarca. Em 1986, concluiu o Curso Geral de Piano. Os anos seguintes foram marcados pelos seus estudos de piano, tendo concluído, em 1990, o Curso Superior de Piano do Conservatório de Lisboa. É, sem dúvida, um dos melhores cantores/compositores actuais. »

26.1.06

A Sábado

A Sábado é uma bela revista de direita. Qualquer esquerdista que se preze, devia ler a Sábado. Não que me considere um esquerdista que se preze, mas procuro sempre ler a Sábado todas as semanas. É a minha mulher quem a assina, sou eu quem primeiro a lê. A semana passada um CD de Ray Charles acompanhava a revista, esta semana foi a vez de James Brown. É claro que os CDs são apenas um complemento que até passa despercebido perante os conteúdos magníficos da Sábado. A Sábado, como é sabido, sai às quintas-feiras, o que não a impede de ser Sábado. Esta semana o editorial faz jus à frequente ambiguidade dos conteúdos: «Há uma qualidade que ninguém pode negar a Cavaco Silva. O novo Presidente da República acredita que o cargo serve para alguma coisa e não apenas para viagens com grandes comitivas ao estrangeiro e longos discursos sem conteúdo. Mas há também um defeito que dificilmente se pode negar a Cavaco Silva. O novo Presidente da República acredita que o cargo serve para alguma coisa e não apenas para viagens com grandes comitivas ao estrangeiro e longos discursos sem conteúdo.» É precisamente este cariz ambivalente o que mais aprecio na Sábado. Dos cronistas de serviço, leio sempre com (en)fado o Professor José Pacheco Pereira. Esta semana, o olhar que lança sobre as «teorias do mau perder» deixou-me, confesso, com água na boca: «Denegação, cegueira, bodes expiatórios, teorias bizarras de desculpa, traições, manobras de cinismo, punhais nas costas, snobismo, tudo vem ao de cima para negar a vitória de Cavaco Silva ou para descrever o país “broeiro”, provinciano, atrasado, inculto, que a explica.» Quanto ao país «“broeiro”, provinciano, atrasado, inculto» já tudo sabemos. José Pacheco Pereira tem sido formidável na denúncia do mesmo. Quanto ao resto, o tom conspiratório do costume. Reminiscências maoístas, dirão os incautos. Por mim vou antes numa teoria, não do mau perder, mas do mau ganhar. Ninguém fala da teoria do mau ganhar, a teoria da altanaria com que se passa um dodot pelo cuzinho da vitória? Ninguém nega o inegável: a vitória do stôr carranca. Quem poderia fazê-lo? Um tontinho? Negam-se adjectivos como «esmagador», «arrasador», etc, que, a serem levados com seriedade, fazem das vitórias precedentes cataclismos sem emenda. Vamos a números: inscritos: 8835037; votantes: 5531265; dos votantes, 2746689 votaram no stôr carranca; dos votantes, 2784576 votaram noutros candidatos, em branco, ou nulo. Ou seja, são mais os que, votando, não votaram no stôr carranca do que aqueles que votaram no stôr carranca. Extrapolar esta miséria, de um Presidente da República em quem mais de metade dos eleitores-votantes não votou, sai caro num país cada vez mais «“broeiro”, provinciano, atrasado e inculto». O melhor é mesmo passar umas páginas à frente e procurar o que nos reserva Nuno Rogeiro para esta semana. O quê? «Folk progressivo? Vanguarda poética? Neopunk?» Porra, que nunca mais é sábado…

Num comentário

Alguém diz que o Insónia é demasiado ecuménico. Concordo, principalmente por não ver nisso defeito algum. Vejo antes feitio. Não obstante, também tenho os meus ódios de estimação: os ditadores, os burgessos (chico-espertos, se preferirem), os machistas, os snobes, a burguesia de que falava Pasolini, os «brutos que me convidam a converter-me», como diria Artaud, os arrivistas, os racistas e os demais que quem frequenta com assiduidade o Insónia saberá. Daí que a ter uma máxima, a deste weblog poderia ser: «o livre-pensamento em oposição a todas as formas de religião e de comunitarismo, a desconfiança e a suspeição, se não mesmo o ódio, em relação a tudo o que é gregário». (Michel Onfray)

O PRIMEIRO DIA

A princípio é simples anda-se sozinho
passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se bem no silêncio e no borborinho
bebe-se as certezas num copo de vinho
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
dá-se a volta ao medo dá-se a volta ao mundo
diz-se do passado que está moribundo
bebe-se o alento num copo sem fundo
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E é então que amigos nos oferecem leito
entra-se cansado e sai-se refeito
luta-se por tudo o que se leva a peito
bebe-se come-se e alguém nos diz bom proveito
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
olha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se um descanso por curto que seja
apagam-se dúvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E entretanto o tempo fez cinza da brasa
outra maré cheia virá da maré vaza
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Sérgio Godinho

Sérgio Godinho nasceu em 1945 no Porto. Partiu de Portugal com 20 anos, recusando assim fazer a guerra colonial. Viveu durante nove anos em Genéve, Paris, onde integrou o elenco da comédia musical "Hair", Amesterdão, Brasil, onde se juntou ao grupo de vanguarda “Living Theater” e Vancouver. O seu primeiro LP "Os Sobreviventes" foi gravado em França, em 1971, com músicos franceses e a colaboração de alguns portugueses então radicados em França. Tendo regressado a Portugal após a revolução democrática do 25 de Abril de 1974, Sérgio Godinho tornou-se autor de algumas das canções mais unanimemente aclamadas da música portuguesa. Recebeu inúmeros prémios pelos seus discos, pela sua poesia, pela sua música, pelos seus espectáculos. »

25.1.06

A puta da boa educação

...nada / é a Moral do bom senso de uma / comunidade passiva...
Pier Paolo Pasolini
Não me recordo em qual foi, mas foi num daqueles programas para os quais as pessoas telefonam com o intuito de opinarem em directo. Com o intuito de se ouvirem, por intermédio amplificador da vaidade individual. Em qual terá sido? Não me recordo. Foi alguém que telefonou e disse: «Cavaco foi o único que fez uma campanha bem-educada.» Tenho a considerar que se a boa educação implica o silêncio, então a boa educação é uma merda. Sim, sou mal-educado. Tenho espírito crítico, educaram-me assim para a má educação. Gosto de discutir olhos nos olhos, de dizer o que penso sem medo das represálias. Gosto de pensar que as represálias não acontecerão porque digo o que penso. Trinta anos, senhores. Trinta anos e mais um depois da ditadura, para que a boa educação seja ficar calado, fecharmo-nos num silêncio atroz, mortífero, sem ponta por onde se lhe pegue. Trinta anos para isto. Todos os dias venho notando nas pessoas a agonia desse espírito crítico que, julgava eu, era o princípio da boa educação. Mas não. A boa educação é uma vénia do pensamento, elogiar com sagaz pretensão, palmadinha nas costas, sopro ao ouvido, és o maior. Que porra de país de indigentes! Eu sou pela má educação, serei sempre pela má educação, se a boa educação for ficar calado, de olhos ferrados no chão, hirto de medo e incómodo, esquivo, arrumado ao lado do debate, da discussão, da polémica. Por que convivem tão mal algumas pessoas com a crítica? O que temerão elas? Eu bem tinha previsto. Os portugueses gostam dos coitadinhos, dos desprotegidos, dos frágeis, daqueles que revigoram a miséria das suas vidas. Os portugueses gostam dos tadinhos, vislumbram na miséria dos outros a sua própria terapia. Enredados na modorra do «sim, senhor doutor», esses portugueses que se curvam são o espelho do que há de pior entre nós: a boa, exuberante, comovente, educação servil.

Fragmento # 26 - Nas ruas de Évora

Em Évora existiam ruas proibidas e assustadoras na moraria, onde evitei entrar mesmo de dia, como a Rua do Manuel de Olival, centro da prostituição e marginalidade entre muralhas que desagua no jardim das canas, transformado depois num despidinho, mesmo em frente do Teatro Garcia de Resende; aqui existia uma esplanada felliniana relativamente segura e movimentada, animada também por seres decadentes provenientes do Manuel de Olival, onde uma vez apanhei um dos maiores sustos da minha vida: estava sentada num agradável fim de tarde veranil com umas amigas a conversar, os seres estranhos sentavam-se habitualmente num baixo muro lateral junto ao jardim, por baixo da sombra, como sábios alentejanos; então um miúdo com cerca de seis anos aproximou-se da nossa mesa agarrando-se ao suporte do guarda-sol e olhou-nos com os seus estranhos olhos azuis acinzentados; depois esboçou um sorriso malicioso, que nunca mais esqueci, porque os seus dentes estavam todos cariados, tinham buracos negros. Évora tem destas coisas no seu interior, é uma cidade que sorri sem a ingenuidade infantil, uma cidade que ri com os dentes cariados e podres da história.
Não sei que estranho e potente íman tem a cidade branca das muralhas que é uma constante presença na minha memória e ausência na vida diária – sei apenas que o seu magnetismo é maléfico. Reza a lenda que a cidade foi amaldiçoada por uma bruxa, quando os cristãos a conquistaram aos mouros; não sei se é verdade, mas dizem que foi um acto de vingança, uma bruxa enterrou a cabeça de uma mula numa das portas da cidade. Se calhar foi no Arco da rua D. Isabel, por isso me assustei sempre que tive de passar por baixo das suas pedras. Évora, sempre que posso não vou lá, conheço aquelas calçadas de cor e salteado, quando tenho de lá ir apanho a última camioneta disponível, demoro um tempo infinito a sair da minha casa em Lisboa, arranjo todo o tipo de pretextos para me atrasar. Nem sempre foi assim, a relação com a cidade foi sempre conflitual, mas após a morte de um amigo pintor, o José de Carvalho Guinapo, em Setembro de 1991, passei a odiar aquele branco das paredes, aquelas ruas labirínticas que vão sempre dar ao mesmo sítio. Porque o Zé sabia que ia morrer, estava doente e omitiu-me esse facto, ele voltou para Évora para poder terminar – e morreu sozinho na sua casa, na sua cidade, encontram-no morto com a obra em seu redor, já estava assim há alguns dias. Évora é uma cidade que cheira a morte, eu sei que posso também lá ficar emparedada nalguma parede, mas prefiro viver ao pé do Tejo, ao pé do mar, por enquanto ainda tenho muitas ruas e calçadas novas para percorrer, quero gastar muitas solas de sapatos perdendo-me em cidades por este mundo fora, espreitando discretamente janelas e portas com universos desconhecidos; devo isso também ao Zé de Carvalho, não me esqueço das suas palavras, da sua luta até ao fim, da sua força e fé no trabalho artístico, só a morte o venceu. Évora habita a minha memória numa espécie de sepultura em vida, que me chama, constantemente, mas prefiro olhá-la bela e distante na estrada, sobretudo, quando vou a caminho de Espanha, assemelha-se a um encantamento, assim ao longe até parece ficção.

Maria João

BÁRBAROS EM “PASSERELLE”

I
um ar “negligé”
furtivo em “dress code”
“cool calm and collected”
outro “enfant gatê”
“whisky on the rocks”

cara estampada em qualquer
“hall”
mesmo imprimida em
“outdoor”
o aedo é “low profile”
o bardo vai “démodé”
o propriamente dito
é “forever” “varietés”
no “glamour” da cidade
no “jet set” a novidade
do atirador furtivo
perdão
do “sniper” a abater
em “open space”
“just in time”
e no “prime time”
e então

II
o cantor não tem “it”
a voz canora “in blue”
se sou mais eu e tu
e um “partner” todo a nu
sou eu mais tu e “true”

mais adoramos um “spin-off”
erguido em nosso “buzzword”
o “chairman of the board”
em “scoop” em “guide lines”
no “damage control”
da maldição do jacobino
fica aqui já pelas custas
o “study case”
o valdevinos
“out” e “in” na volúpia
do concúbito
um “hat-trick”
bem chique
na “flash-interview”
que mais podemos nós
fazer
do “to do”

III
somos a “entourage”
brilhante “brain storm”
“made in” em “New York”
“opinion makers” e
“follow-up” informe

e por falar em português
o “flash-back” é amanhã
o “sponsor” do artista
no “casting” da cortesã
na de Rimbaud “en passant”
na de Cervantes era dantes
na de Camões p’ra depois
valha o William
se não nunca
falaríamos nunca mais
jamais
no “ranking” de culturas
império
“shooting-room”
em língua pura
e em vez das quatro
um

e melhor seria
um outro “boom”
via “e-mail”
e em vez do “bug”
bedum

“wait and see”
“me”
mi

Fausto Bordalo Dias
Fausto, de seu nome completo Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias, nasceu em 26 de Novembro de 1948, em pleno oceano Atlântico, a bordo de um navio chamado «Pátria» que viajava de Portugal para Angola. Em 1968, com 20 anos, fixou-se em Lisboa para iniciar os estudos universitários (é licenciado em Ciências Sócio-Políticas e frequentou um mestrado de Relações Internacionais). Com vários discos gravados desde 1970, Fausto é presentemente um dos mais importantes nomes da música popular portuguesa. E é, sobretudo, um inquestionável grande poeta da música. »

24.1.06

Fragmento #25 – Da cidade

A água corre na água que cai no chão dos meus pés nas calçadas de pedra das ruas estreitas da cidade; da cidade vem um cheiro intenso a terra molhada nos pés em pedra dentro das muralhas de água que corre na água; na água das ruas calcetadas na cidade estreita ergueu-se uma casa no seu interior; no seu interior habitam as memórias onde percorro a terra com os pés no chão; os pés no chão é uma bela metáfora da cidade na noite a chover com ruas estreitas no escuro; no escuro corre a água que corre no tempo dos pés no meu chão; no meu chão ergueu-se uma casa com paredes de tempo e corredores estreitos como as ruas da cidade branca das muralhas ao longe; ao longe os meus pés percorreram o tempo que corre no tempo em paredes de água calcetadas na pedra; na pedra sinto um cheiro a terra molhada após um verão amarelo; após um verão amarelo cai a água nas ruas estreitas da cidade branca das muralhas; das muralhas digo tempo em forma de pedra na água; na água corre a água que corre no tempo das ruas estreitas na noite; na noite sente-se um cheiro intenso a terra molhada nesta cidade; nesta cidade a água corre na água que cai no chão dos meus pés nas calçadas de pedra das ruas estreitas.

Maria João

Ser Solidário

Ser solidário assim pr’além da vida
Por dentro da distância percorrida
Fazer de cada perda uma raiz
E improvavelmente ser feliz

De como aqui chegar não é mister
Contar o que já sabe quem souber
O estrume em que germina a ilusão
Fecundará por certo esta canção

Ser solidário assim tão longe e perto
No coração de mim por mim aberto
Amando a inquietação que permanece
Pr’além da inquietação que me apetece

De como aqui chegar nada direi
Senão que tu já sentes o que eu sei
Apenas o momento do teu sonho
No amor intemporal que nos proponho

Ser solidário sim, por sobre a morte
Que depois dela só o tempo é forte
E a morte nunca o tempo a redime
Mas sim o amor dos homens que se exprime

De como aqui chegar não vale a pena
Já que a moral da história é tão pequena
Que nunca por vingança eu te daria
No ventre das canções sabedoria

José Mário Branco

José Mário Branco nasceu no Porto em Maio de 1942. Exilado em França entre 1963 e 1974, fundou aí a cooperativa cultural Groupe Organon. Foi co-criador e intérprete de vários espectáculos do Grupo de Teatro da Liga. Ainda no exílio, efectuou centenas de recitais, musicando e interpretando numerosas peças e filmes. Regressado a Portugal, fundou o Grupo de Acção Cultural e, em 1977, integrou a companhia de teatro A Comuna. Fundou em 1979 o Teatro do Mundo e, em 1983, a União Portuguesa de Artistas e Variedades. O seu primeiro EP, Seis Cantigas de Amigo, foi editado em 1967. Mantendo-se sempre envolvido em projectos colectivos nas áreas de música, cinema, teatro e política, José Mário Branco é um dos mais importantes e influentes dos escritores de canções portugueses. »

23.1.06

Cavaco Silva, a former prime minister vowing to tackle economic woes in western Europe's poorest country, had 50.59 percent of the vote with all but a handful of polling stations reporting, the election commission reported.
(CNN, via No Arame)

Coincidências

Através do Jóias de Família fico a saber que João Bénard da Costa terminou um texto sobre Le Diable Probablement, filme de Robert Bresson, com uma citação de Jorge de Sena: "Nada mais existe, nada mais tem importância, / para quem viu a treva nos intervalos das coisas." A mesma citação serviu-me de epígrafe na entrada de um livreco de poemas que publiquei vai fazer seis anos. Só uma coincidência dessas me impeliria à imprudência de rememorar aqui estes tristes versos:

A amada elevou-se com o sabor de um beijo.
Bruniu a carne com as palmas das mãos.
A amada fez do corpo uma tela
onde os dedos eram pincéis.
A amada, no visco de uma caverna,
numa morada sem nome,
foi quarenta portas abrindo-se ao ódio.

Mau perder, bem perder, mau perder, bem perder...

Cavaco foi levado ao colo por uma comunicação social que o deu sempre como vencedor a priori. Olhem-se as sondagens publicadas antes das eleições e teçam-se comparações com os números reais. Cavaco ganhou por uma unha negra, empurrado pelo braço obscuro de uma comunicação social que faz passar opinião por informação. O mesmo vale para Alegre, um dos tristes a cujo ego se deve, em parte, a vitória do stôr carranca. Outro sinal a ter em conta: Soares tem o resultado que tem por ser velho. Não me acredito que haja outra razão. Na ruas, as piadas foram constantes: dêem-lhe umas pantufas, tem idade é para ficar em casa a cuidar dos netos, coisas do género que já esperava num país onde os velhos são tratados como inúteis, a escória de um sistema onde quem não produz não serve para outra coisa que não seja empecilhar a vida do cortejo do sucesso. Soares não precisava disto para nada. Gabo-lhe, mais uma vez, a coragem por ter dado o corpo ao manifesto. Gostava de votar nele na segunda volta. Tendo as coisas terminado como terminaram, resta-me desejar ao stôr carranca que passe o mais tempo possível encafuado em casa de modo a não nos envergonhar junto da estranja. Ó país pardacento, aí tens a múmia que sempre desejaste!

Era Um Redondo Vocábulo

Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar
Pelos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio
Convocando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincavam e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa

José Afonso

José Afonso, Zeca Afonso, nasceu a 2 de Agosto de 1929, em Aveiro. A sua infância foi dividida entre a cidade natal e África, continente para o qual os seus pais foram viver em 1930. Em 1940 foi estudar para Coimbra, onde começou a cantar serenatas e foi introduzido na vida boémia. Em 1949 inscreve-se no primeiro ano do curso de Ciências Histórico-Filosóficas da Faculdade de Letras, que concluirá apenas em 1963 com uma tese sobre Jean-Paul Sartre: «Implicações substancialistas na filosofia sartriana». Já na década de 50, é revisor no Diário de Coimbra e edita os seus primeiros discos. Em 1956 é editado o seu primeiro EP, intitulado Fados de Coimbra. De 1961 a 1962 segue atentamente a crise estudantil deste último ano. Convive em Faro com Luiza Neto Jorge, António Barahona e António Ramos Rosa. Expulso do ensino, em 1968 dedica-se a dar explicações e a cantar com mais assiduidade nas colectividades da Margem Sul, onde é nítida a influência do PCP. Em Abril de 1973 é preso e fica 20 dias em Caxias até finais de Maio. Na prisão política, escreve o poema «Era Um Redondo Vocábulo». José Afonso morreu no dia 23 de Fevereiro de 1987.»

22.1.06

ARteoRIA # 4 - Do cinema à televisão

O cinema segundo Tarkovsky é a acção de esculpir o tempo, arte nascida da necessidade espiritual do nosso tempo, não é apenas uma mera invenção tecnológica. Uma arte nascida da falta de tempo do nosso tempo contemporâneo. É claro que Tarkovsky nas suas afirmações se referia ao cinema como sétima arte, ao cinema de autor; mas todo o cinema tem o tempo como dimensão primordial, assim como a poesia, o teatro, a música e a dança: porque as acções são o seu objecto, o movimento tem primazia nestas expressões artísticas. A arte do silêncio é a pintura, porque a representação de imagens é sempre uma suspensão do tempo. Na pintura, uma imagem pode ser a representação de corpos, mais precisamente de formas num determinado espaço, um fragmento da realidade; pode também ser a apresentação de formas num espaço-tempo, uma articulação de fragmentos da realidade; nos dois casos é uma suspensão do tempo num espaço que o aprisiona, em paralelo ao tempo que está a decorrer. Uma imagem toca um outro tempo, no sentido em que é uma paragem silenciosa do fluxo contínuo do tempo real. Por isso, as artes plásticas são consideradas as artes do silêncio, artes que têm o espaço como dimensão primordial, são receptáculos de instantes silenciados. A imagem é um cosmos que impõe silêncio na algazarra aparente e impessoal do caos do mundo, tendo como medium uma linguagem não verbal, a linguagem dos corpos, cores, gestos, traços, suspensos através de jogos de formas numa determinada porção de espaço. O silêncio das imagens ou dos corpos representados implica sempre uma distância em relação ao sujeito que as contempla. Essa distância remete para o carácter sagrado e potencialmente mágico que as imagens têm, e para o seu poder simbólico. Walther Benjamim utilizou o termo aura para falar dessa distância ou campo magnético, que as imagens e objectos artísticos podem possuir. A seu ver, a aura é o aqui e agora da obra de arte, a sua existência única, a sua autenticidade que deriva de tudo o que desde a sua origem é transmissível. No caso das artes do espectáculo, este autor considerou que a aura corresponde a um acontecimento único, um concerto ou espectáculo ao vivo; considerou ainda que os objectos naturais podem possuir aura, quando existe uma manifestação única de uma lonjura, por muito próxima que esteja de nós. Walther Bejamin reflectiu sobre este aspecto da recepção, nomeadamente, em relação às artes visuais, devido à ameaça que os avanços tecnológicos da sociedade moderna são para a aura dos objectos artísticos, por causa da capacidade de os reproduzir. Se por um lado, os meios de reprodução permitiram a democratização das artes, por outro funcionaram como uma dessacralização das imagens e contribuíram para a banalização destas. Além disso, Benjamim estava preocupado com o cinema – a nova arte do séc. xx – um poderoso meio de influência de massas, que poderia ser utilizado pelas ideologias dominantes. No cinema, as imagens são tempo, porque existe uma rápida e continua suspensão do tempo em espaços sucessivos. Esta suspensão em movimento assemelha-se mais ao mistério sequencial do tempo real. O cinema implica uma fruição totalmente diferente das outras artes visuais, por ser constituído de imagens sonoras, sequenciais. O som é da ordem do invisível e invade o corpo humano, instalando-se no sistema nervoso de um modo mais imediato que as silenciosas imagens, o som é sempre um violador. Por isso, as imagens-sons são um potentado, no sentido em que implicam uma ausência de distância entre o sujeito e objecto na recepção, apelam à não reflexão, estimulam a passividade. Mais do que o cinema, que foi sem dúvida a arte popular do séc. XX, no sentido em que movimentou as massas na sua recepção, tal como a Ópera o fazia no séc. XIX, a televisão que não existia na altura em que Benjamim reflectiu sobre estes assuntos, tornou-se o mais potente instrumento de manipulação das massas, uma espécie de magia negra contemporânea, que está democraticamente em todo o lado. A televisão é a actual arena sangrenta, tem o papel do circo no império romano e corre o boato que de futuro irá ser ainda mais poderosa, algo que deixará os progressistas muito contentes: irá conter imagens-sons aliadas aos aromas. Preparem-se para colocar molas de roupa no nariz quando entrarem em espaços privados e públicos com televisores no futuro, para além de tapar os ouvidos ao mesmo tempo.

Maria João

Num Álbum

Se exigirem perfumes às flores
Pr’a tecerem com elas grinaldas,
Não procurem do monte nas fraldas
A modesta e inodora cecém.
Se igualmente desejas, amigo,
Para aqui mais que versos, poesia,
Antes deixes a folha vazia,
Pois meus versos poesia não têm.

Júlio Dinis

Júlio Dinis, pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, nasceu no Porto em 1839. Foi entre esta cidade, Ovar e o Douro que passou grande parte da sua vida. Tirou o curso de medicina na Escola Médica do Porto, aliando a profissão de médico à de escritor. Os seus primeiros textos foram publicados em A Grinalda e em O Jornal do Comércio. De uma família de tuberculosos (a mãe e os irmãos morreram com essa doença), Júlio Dinis contrai também a doença e parte numa cura para a Madeira, cura esta que de pouco lhe valeu, falecendo ainda muito novo no ano de 1871. Dois anos depois, foram publicadas as suas Poesias.»

21.1.06

POLAROID

Pela tarde o céu a terra
e mesmo tu formam uma densa pasta
de nuvens.
Recordo a tua boca, as tuas pernas
em arco sobre o penedo quente.

Os poços entram em colapso,
o verão arrasta multidões
para as ravinas do lugar comum.

O chapéu descaído
protege-te os olhos
que se movem com translúcido torpor.

Agora que passaram séculos
sobre esse único beijo estou
sem vontade de fingir

a relutância
do meu desejo. Esta polaroid, já seca,
encena também a minha morte.

Fernando Luís Sampaio

Fernando Luís Sampaio nasceu em Moçambique em 1960. Viveu e estudou em Viseu, cidade onde terminou o liceu e se iniciou na escrita. Em 1981 recebeu o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro Conspirador Celeste (Publicações D. Quixote). Publicou, ainda, Sólon (IN-Casa da Moeda), Hotel Pimodan (Frenesi) e Escadas de Incêndio (Quetzal). Está representado em várias antologias e traduzido em francês, espanhol, italiano, inglês e croata. Foi director do Festival Mergulho no Futuro, na Expo' 98, e actualmente é director do IPAE.»

Fragmento # 24 - Ruas estreitas

“Cidadelas fechadas, impenetráveis, quase assustadoras”
Josiane Girou

Sempre gostei de deambular nas ruas das cidades, procurando descobrir os mistérios que guardam as suas casas, os seus habitantes, mesmo quando se trata de cidades que conheço bem. Os espaços de algumas cidades povoam a minha memória em rastros dos meus passos deambulando por ruas impenetráveis, por vezes assustadoras, onde vislumbrei uma janela diferente ou procurei um atalho, através de um mapa na minha mão, quando em viagem à descoberta de novos caminhos. Conheço cidades com ruas secundárias e habitações silenciosas, como as cidades alemãs e as cidades no Canadá; cidades caóticas e agitadas, como o Cairo ou Roma, com trânsito infernal e habitantes desorganizados; cidades que são portos, pontos de passagem junto a um rio ou mar, como Lisboa onde habito há vinte anos, ou Amesterdão com as suas janelas abertas, cidade composta por canais e pontes; ou ainda Halifax no Canadá, situada numa península do outro lado do Atlântico, que se chama Nova Scotia, onde vivi durante seis meses. Halifax é um porto com uma ponte semelhante à ponte vermelha sobre o Tejo, só que pintada de verde. Existem também cidades que não são reais, como Veneza, com ruas de água e pontes magníficas, onde se mergulha numa espécie de sonho acordado, com o perigo de nos envolvermos numa passividade estranha, onde sentimos que podemos ficar ali eternamente num estado contemplativo, numa espécie de purgatório; ou como Évora, bela e amarga em simultâneo, cheirando a terra molhada, o ossuário trágico de Portugal, com paredes brancas na fachada e interiores sombrios. Évora, aparentemente branca, é uma cidade negra e muralhada, onde as pedras funcionam como uma espécie de mortalha para os seus habitantes, almas penadas e em suspensão num centro histórico, deambulando num labirinto formado por ruas concêntricas demasiado estreitas e calcetadas, em torno de um templo romano que já foi um matadouro, junto de um antigo palácio da inquisição, transformado posteriormente num instituto universitário de jesuítas, que originou a actual universidade, situado mesmo ao lado da magnifica Catedral romanico-gótica, com as suas imponentes torres e pináculos, representando o único arcebispado nas terras do além Tejo.
A curiosidade em sentir uma cidade, percorrendo as suas ruas com os meus pés ficou-me das calçadas de Évora, que repetidamente me deram cabo das solas dos sapatos, onde o branco impenetrável das paredes nas casas e muros altos me levaram a imaginar o interior escondido e habitado no seu coração, que raramente se prolonga para a rua; por vezes abre-se uma janela e alguém espreita ou as crianças brincam no Verão fora de portas, acompanhando o som dos pássaros ao entardecer, junto às portadas das janelas entreabertas e vigilantes; na moraria de Évora, bairro entre muralhas fernandinas, outrora povoado por mouros, ao fim da tarde na adolescência percorri calçadas labirínticas, para me encontrar e visitar as minhas amigas mais antigas, que habitavam aquelas ruas estreitas da cidade. Eu partia do centro mais inveterado, vivia dentro da muralha romana, descia as arcadas da Rua D. Isabel, passando pela porta da muralha, que sempre me assustou, não sei porquê, ali debaixo ainda existe um pedaço de estrada romana, com pedras mais largas e escorregadias. Fora desta porta descia em direcção à rua de Aviz ou virava à esquerda, para a Rua do Menino Jesus, em direcção à travessa do Harpa, penetrando assim no interior das ruas estreitas do bairro, onde os carros quase não conseguem circular. No verão os miúdos jogavam à bola naquelas calçadas, as janelas mostravam velhos televisores a preto e branco com o telejornal e ao fundo da rua do menino Jesus, na esquina com a Rua das Fontes havia uma casa de prostitutas, alguma delas estavam à janela a ver quem passava. O som dos pássaros ao entardecer provoca-me sempre uma enorme nostalgia, remete-me para aquele labirinto de pedras escorregadias, a cidade onde o tempo foi suspenso em forma de pedra e cal, com morbidez. Os meus passos nas calçadas de Évora é algo que oiço actualmente muito ao longe, a saudade é um sentimento português que se entranha nos ossos e Évora tem lá aquela capela, a dos ossos; certo é que amamos mais quando estamos distantes, aprende-se muito com as saudades; a saudade é um luto, um cortinado roxo que nos cobre o coração, como cantam os açorianos, que vivem rodeados de água; Évora é o esqueleto da cultura portuguesa, um local onde o tempo foi suspenso em ruas estreitas, concêntricas e entre muralhas em forma de ossuário; e na entrada da célebre capela está escrito o seu cartão de visita: nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos.

Maria João

20.1.06

CAFÉ CAVAQUISTÃO

Às vezes ela começa a testar as minhas convicções. Abre a janela muitas vezes e fala das dificuldades diárias do calendário de uma pessoa que, não como a outra, não sabe escrever. Tenho duas lâminas a despontar no frio, tenho trinta vozes num frasquinho que atirei às águas calmas da sua fase verde. Os portugueses, sobretudo em tempo de crise (sempre), baixam as calças com incrementado despudor ecléctico. Possuídos pela alma alfanumérica de um boneco morno, vão do Porto a Lisboa muitas vezes e pelo caminho imaginam as raparigas do campo, animais que já não sabem conquistar porque o tempo, ah o tempo, não quis mais saber da minha linda de suza.

Eu não me zango. A minha linda de suza é o meu privado despautério, a minha solha de saudade. Por momentos esqueço-me do passado alegre e do presente infame. E vou no seu encalço de canção antiga, e cá vou eu para a costa, e cá vou eu cheio de mim, e cá vou eu para a costa, para a costa do marfim.


Rui Costa

18.1.06

Caro Sérgio,

imagem respigada aqui

Antes de mais, deixa-me agradecer a tua esclarecedora missiva. Quer-me parecer que, no essencial, estamos em concordância. Permito-me porém atirar mais alguma fagulha para a fogueira. Quando rematas defendendo o direito à diferença de opinião, estás a tocar no cerne do problema. Eu, quanto a isso, não estarei tão optimista. O princípio básico da democracia política é o direito ao voto livre. Prevejo para o próximo domingo o discurso costumeiro. Elogia-se o modo civilizado com que os portugueses responderam às eleições, sublinhando-se o facto de todos terem votado livremente. Mas será mesmo assim? É claro que no momento de exercitar o direito de voto, ninguém terá uma granada apontada à cabeça. Porém, digo eu, muitos de nós teremos a cabeça minada pelo lixo propagandístico que nos violentou durante estes dias de campanha. Digo violentou com o intuito de enfatizar o lado obscuro e coercivo das campanhas eleitorais. Sabemos bem da influência contemporânea daquilo a que usualmente chamamos de comunicação social, mormente das televisões, janelas surradas para o mundo, através das quais nos chega a sujidade do mundo. Esse poder a que usualmente chamamos comunicação social raramente nos oferece informação credível, fiável, objectiva. Dão-nos antes opinião disfarçada de informação. É, e isto toca a todos (embora a uns mais do que a outros), na base desse alicerce surrado que muitas cruzes serão desenhadas no próximo domingo. Podia para aqui perder-me em exemplos mais ou menos evidentes e representativos. Alguns são mesmo gritantes. Olha este: em Grândola, um jornalista da TVI reporta a visita de Jerónimo de Sousa; começa a peça afirmando a indignação (avaliação do dito jornalista) com que as gentes de Grândola terão assistido à performance do professor Cavaco quando arranhava os acordes da canção de Zeca Afonso; volta-se para uma cidadã e pergunta: O que sentiu quando viu Cavaco Silva a cantar Grândola Vila Morena aqui em Grândola?, ao que esta lhe responde, com um sorriso nos lábios, que o professor Cavaco enganou-se na canção; o jornalista volta a investir no assunto, junto de um outro cidadão; à mesma pergunta, tenta-se dar uma resposta: Ouça, estamos aqui a receber Jerónimo de Sousa…; o jornalista interrompe abruptamente o interpelado, que ainda se vê a olhar para o lado encolhendo os ombros, e assevera: Pois, mas a verdade é que as pessoas de Grândola ficaram indignadas com as imagens do professor Cavaco a cantar Grândola Vila Morena. Temos assim um jornalista que faz perguntas para as quais só ele sabe as respostas (convenientes). Em directo, a coisa fica mais caricata. Agora imagina se a reportagem tivesse sido trabalhada em estúdio. É destes jornalistas que não sendo de merda, assinam reportagens de merda, que surge a opinião que anda na boca da maioria das pessoas, a mesma que escorrerá livremente até ao papel no próximo domingo. Soluções para isto? A tal educação que escuda o cidadão com o conhecimento, dando-lhe os dados para que ele possa pensar pela própria cabeça e, desse modo, aprenda a resistir ao discurso publicitário, tipicamente persuasivo, daquilo a que usualmente chamamos comunicação social. Curiosamente, Cavaco é, dos Candidatos a concurso, aquele que melhor simboliza a negligência a que a educação e a formação têm sido votadas neste país. Dos candidatos a concurso, é ele o maior responsável pela iliteracia, quando não analfabetismo, dos portugueses. Não é por acaso que quando alguma direita apregoa que nem todos têm de ser doutores e engenheiros, alguma esquerda concorda acrescentando: mas a todos deve ser dada essa oportunidade. É óbvio que a particular afirmativa aplica-se aqui só para não chocar sensibilidades.

(advertência: escrito de jorro)

ambíguo

Eu sou o frágil ambíguo. Determino-me ambíguo e frágil. Quero dizer: o ambíguo motoriza o medo e o medo engendra a hesitação. Sinto-me confortável na presença do ambíguo. Desapego-me, incorporo-me. Mandaram-me lutar contra o ambíguo. Desobedeci. Nesse sentido, eu sou o frágil ambíguo dissidente. Indisciplinei-me. Não me deixo pegar nas rédeas do sentido, pois sinto-me bem assim mesmo: sem sentido. Eu sou o frágil ambíguo dissidente sem sentido.

Choque tecnológico

Na passada sexta-feira, tentei pagar por Multibanco a minha contribuição à Segurança Social. Qual não foi o meu espanto quando, ao querer digitar os 11 dígitos do meu número de identificação, só havia espaço para nove dígitos. Fui hoje informado de que os números de identificação da Segurança Social haviam sido alterados de nove para 11 dígitos, mas que ainda não tinha sido feita a actualização dos ecrãs para pagamento por Multibanco. Conclusão: €1,43 de juros de mora. Come e cala.

CAFÉ ALAMEDA

Ж

Se eu quisesse transformava-te num animal de preconceitos certos. A lírica serve-me para isso, no entanto há quem não perceba o trato amável que dispenso aos cegos. Porque a lírica – estou a esforçar-me – serve para experimentar-te a pele desocupada aí de céptico desejo: onde não fui não me conheço ainda. E sou eu quem espera o absinto-corpo, e sinto-te tão preocupada, tão incerta. Vem, temos o jardim, o ruído do mundo, dou-te a paz. A sociedade é um bicho gasto, meu amor, e o calor das ondas chega pleno de oxigénio e outras luzes.
Fecha a cortina.
O teu pai hoje não vem.
Hoje ninguém vem.
Aqui é esta sala, o travo quase doce da
melancolia.

Rui Costa

EU SOU TREZENTOS

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pireneus! Ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

Mário de Andrade

Mário de Andrade nasceu no dia 9 de Outubro de 1893 em São Paulo. Formou-se em Ciências e Letras, cursou filosofia e, em 1915, concluiu o curso de canto no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Dois anos depois, diplomou-se em piano. Nesse mesmo ano de 1917 publicou, sob o pseudónimo de Mário Sobral, o seu primeiro livro de poemas: Há uma gota de sangue em cada poema. Músico, contista, poeta, colaborou em várias revistas como crítico de arte e cronista. Membro activo do grupo modernista de São Paulo, Mário de Andrade ficou para a história da literatura universal como uma das vozes de proa do modernismo. Aderiu ao partido democrático em 1928, manifestando-se mais tarde contra o Estado Novo. Coberto de reconhecimento pelo papel de vanguarda que desempenhou em três décadas, Mário de Andrade morreu em São Paulo em 25 de fevereiro de 1945, vitimado por um enfarte do miocárdio.»

17.1.06

PORTO

O Porto é uma cidade tão parada que, não fora as espanholas e o vinho, por certo aqui seria um génio.

Rui Costa

ESTE PÃO QUE VENHO ABRIR

Este pão que venho abrir foi outrora centeio,
este vinho sobre uma ramada desconhecida
ficou submerso nos seus frutos;
o homem em cada dia, em cada noite o vento
arrancaram a alegria dos cachos e derrubaram as searas.

Com o vinho, outrora o sangue de estio
palpitava na carne que ornamentava a videira,
outrora neste pão
era feliz sob o vento o centeio;
mas o homem despedaçou o sol e abateu o vento.

Esta carne que despedaças, este sangue
que traz a desolação pelas veias,
eram os cachos e o centeio
nascidos das raízes e da seiva dos sentidos;
este meu vinho que bebes, este pão de que te alimentas.


Tradução de Fernando Guimarães.

Dylan Thomas

Dylan Thomas nasceu no sul de Gales [Swansea] em 1914. Aos doze anos já escrevia e publicava poemas. Contra indicação paterna, abandonou cedo os estudos e dedicou-se ao jornalismo. A sua primeira colectânea de poemas apareceu em 1934 sob o título singelo de 18 Poems. Seguiram-se os Twenty-Five Poems, em 1936, com os quais ficaria estabelecida a sua reputação de poeta. Mudado para Londres, casou com Caitlin Macnamara. A vida de boémio acabaria por arruinar o casamento e a saúde do poeta. Apareceram as primeiras depressões, um esgotamento nervoso, a fadiga. Depois de uma estada em Oxford, Dylan Thomas partiu para a América. Faleceu em Nova Iorque, aos 39 anos, em Novembro de 1953.

16.1.06

UNREADY- MADE

Leitor: queres um poema
com palavras fáceis ou
queres um poema com palavras
difíceis?

As palavras fáceis são:
mesa, leite, erva, cabra,
palhota, cabeça, foda-se.

As palavras difíceis são:
dentífona, apriuna, esbranforida,
alviridente, masturlídia,
amor.

Também há verbos, pronomes,
advérbios, etc. Mas agora é
a tua vez, leitor, de contribuir
para o poema –
Felicidades!

Rui Costa

Voam leves as semanas.
Não sei o que sucedeu.
Como te olhavam, meu filho,
as noites brancas na prisão,
como ainda te olham
com olho de gavião,
quando te falam da morte
e da tua alta cruz.


1939, Primavera.
Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.

Anna Akhmátova

Anna Akhmátova, pseudónimo de Anna Andreevna Gorenko, nasceu a 24 de Junho de 1889 perto de Odessa. Começou a escrever poesia com apenas onze anos. Os seus primeiros poemas foram publicados em Paris na revista Sirius. No entanto, a sua primeira colectânea de poemas, intitulada Vecher, foi publicada, cinco anos depois, em 1912. Após um primeiro casamento falhado, Akhmátova voltou a casar com Vladimir Chileiko, um distinto orientalista, e, pela terceira vez, com N. N. Púnine. A sua obra, marcada por longos períodos de silêncio, foi bastas vezes banida. Em 1940 torna-se membro da União dos Escritores Soviéticos, de onde seria excluída seis anos mais tarde. Condenada pelo regime estalinista como reaccionária, a poeta de Coragem (1941) sobreviveu traduzindo obras de Victor Hugo, Rabindranat Tagore e Leopardi. Só posteriormente à morte de Estaline a poesia de Akhmátova seria lentamente reabilitada. Em 1964 viajou até Itália para receber o prémio Etna-Taormina e no ano seguinte foi doutorada honoris causa pela Universidade de Oxford. Faleceu no dia 5 de Março de 1966, vinte anos antes da publicação dos seus trabalhos reunidos.

15.1.06

Caro Sérgio,

Há muitas razões, bem diferentes umas das outras, que levam a malta da nossa geração a votar no Cavaco. Eu também andei nas manifestações anti-PGA, cheguei mesmo a comer com um bastão nas fuças, à porta do ministério, e até apareci em fotografia no jornal Expresso, de bocarra aberta e punho em riste, invectivando contra os homens dos bastões. Nunca tive partido, mas aderi, estupidamente, à JS numa terra conhecida por correr com os comunistas à mocada. Foi coisa de meses, até me ter apercebido que o grupelho só servia para cozinhar futuros a quem neles estava empenhado. Tornei-me então, tal como tu, um indefectível individualista. A minha literatura foi mais anarquista do que socialista, comunista ou coisa que o valha. Trago alguns existencialistas no sangue, libertinos todos, de direita e de esquerda (olha o Céline ali a piscar-me o olho), mas sobretudo trago uma mania terrível de não me deixar pensar pela cabeça dos outros. As pessoas votam em quem querem, claro. Isto é bonito e divertido é com muita diferença, bílis à mistura se necessário for, divergência e conflituosidade. Nunca fui de confrarias e abomino todos os tipos de consensos bem ou mal intencionados. Os consensos impedem o progresso. Mas é bom que haja de tudo. Sobretudo é bom que haja quem seja pelos consensos, quem, ao contrário de nós, ceda facilmente. É dessa diversidade que não nos podemos dar ao luxo de prescindir. Seria por isso importante não esquecermos que a malta da nossa geração já anda pelos ministérios, tem chegado com a maior das facilidades às assembleias. Repara, alguns tiveram o primeiro emprego na igreja da república. Fizeram os seus percursos nas jotas, não sabem fazer outra coisa que não seja submeterem-se às intenções da corporação. Pelo menos, ansiemos por eles. Que o façam como deve de ser. Caro Sérgio, há muitas razões para que a malta da nossa geração vá votar Cavaco. Razões como as que têm empurrado da esquerda para a direita (quase sempre assim nesta direcção) pessoas que asseveram não fazer outra coisa que não seja pensar pela sua própria cabeça. Todos pensamos pela nossa própria cabeça. Ao serviço de quê e de quem é que pode divergir. É claro que os que vão votar no Cavaco vêem nele em potência um bom PR. Nem passa pela cabeça pôr isso em causa a quem nisso crê. Questão de fé? Questão de princípios? Questão de razão? O que for. Não me passa pela cabeça pôr isso em causa. Os outros, como nós, não concebem para um país de cinzentos um PR cinzento, para um país de tecnocratas um PR tecnocrata, para um país de iletrados um PR iletrado… No fundo, o homem que muito provavelmente nos vai representar é o melhor espelho do país. É bom que lá fora fiquem mesmo a saber que ainda somos um país de xailes negros e costumes conservados. Um país sinistro, com um PR sinistro que não debate, não olha nos olhos, não duvida mas se incomoda com as dúvidas dos outros. Um PR que despreza os jornalistas que agora o levam ao colo. É bom que fiquem todos a saber que cada país tem os políticos que merece. Merecemos nós melhor que Cavaco? Que temos feito nós para merecer mais que Cavaco? Desta vez, só para descargo de consciência, vou votar. Mas, na verdade, acho mesmo que não mereço melhor que Cavaco. Saúde,

Alquimia do béu-béu # 28

Arraial
Naquele tempo o arraial era diferente. Havia foguetes e uma banda a tocar na cauda da procissão. Os foguetes desapareceram por imperativo governamental. Motivo: os fogos. Quanto à banda, mero equívoco. No ano passado, os encarregados da messe contrataram a banda. De boca, claro está. Combinaram a coisa para agora mas com o passar dos meses os assopradores esqueceram-se. As santinhas nos andores ficaram neste triste silêncio, tudo por causa do esquecimento. Ou por causa dos contratos de boca. Vá-se saber. Nem foguetes, nem banda. Restam as gémeas a ensaiar um playback no carroçado. Filhas da Maria Suália, aquela que andava a ser emparelhada com uma brasileira que o homem conheceu pela Internet. É provável que se lembrem dela na televisão, num programa sobre sexo a dizer num vox populi que gostava de o fazer com a boca. Há quem diga que o marido se lhe escapou porque ela não o fazia só com a boca. Ferrava-lhe os dentes na cabecinha que eram dores de parir. Seja como for, o tipo era um cata-vento. Coisa de família, dizem. Sabia rir quando era para rir; era delicado quando assim convinha; exibia competências alheias, se fosse caso disso. Em suma: desenrascado com as mulheres. Para mim nunca passou de um biltre, um desprezível bajulador. Dizem na cidade que os lojistas fogem dele como quem se arrepia de tempestades. Quis-se perto dos outros na aparência, o débil, e agora perdeu-se de si. Adiante. O senhor Presidente da Junta já se pavoneia pelo pelado. Mete-se com o Cipriano: «Arranha lá um fado que há muito não cantas!» Ao que o castiço retorque: «’Tou farto de cantar pa’ paneleiros.» Sente-se o incómodo, apesar do presidente fingir que não ouviu a epístola. Sabe fazer-se despercebido. Tem arte. Já o velho Cipriano, é um espalha-brasas do piorio. Não se lhe conhece endecha, discórdia ou amena conversação sem remate ordinário. Todos o escutam. Uns atentos, outros afogados de fastio. Mas todos o escutam. Nas cartas já há bulha. Rica parelha! Taranta, de olhos cavados, alto de pernas e esguio no tronco. Picota, semblante alongado no discurso, fala como se berrasse. Ajeita-se nos engates. Dizem que anda a comer as gémeas. Houve mesmo quem tivesse afiançado tê-lo visto entre parras a foder o cu a uma delas. Isto é assim: todos vêem, ninguém prova, há alguns que se vêm. É como nas cartas. Batem-nas como quem quebra nozes. Bons de boca no gargalo, não hão-de ser vencidos pelo sono. Há quem argumente que possuem genialidade nos dedos. Nota-se. Na forma como baralham o maço; como pegam na mini; como acendem o cigarro, pendurado ao canto da boca enquanto olham de baixo para cima os vincos na testa dos adversários. São espertos, podiam ser inteligentes. Há um certo lirismo na forma como vivem, nessa modorrenta condição de ir vivendo apenas. Em contramão, na rua principal, Cu de Chumbo vem à pressa na direcção do presidente. Atravessa-se-lhe um camião pelo meio. Nem as santinhas lhe valeram. Costelas sem arranjo, perna pó galheta, quilómetros de guita em vários pontos do corpo rasgado. É a vida, o que é que se há-de fazer... O arraial perdura. Com o Presidente da Junta engabelado. Recusa-se a trabalhar mais que as oito horas diárias exigidas pela lei. «Quem for garganeiro, que o faça.» - diz. A rapaziada vai de alho e de algodão doce, apanhadas, escondidas, toca e foge. «Aqui vai alho!» - gritam, para que todos os ouçam e vejam. Sabem-na toda. Pode ser que mais tarde lhes calhe um chupa-chupa na rifa. Pode ser que sim. Enquanto tal, vou eu à parede. Apetece-me fechar os olhos, nem que por meros segundos.
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QUEIXAS DE UM UTENTE

Pago os meus impostos, separo
o lixo, já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.

Já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum.

José Miguel Silva
José Miguel Silva nasceu em Maio de 1969, em Vila Nova de Gaia. O seu primeiro livro, O Sino de Areia, foi publicado em 1999. Sobre o seu mais recente livro, Movimentos no Escuro, Pedro Mexia escreveu: « José Miguel Silva demonstra uma vez mais uma arte poética que se distancia de um espontaneísmo ingénuo e escolhe um trabalho poético intenso mas discreto. Não se vislumbra aqui nenhuma espécie de formalismo, apenas uma sensata sabedoria estrófica que desencadeia poemas construídos palavra a palavra, que evitam clichés e jogam no inesperado vocabular.» Outros livros de José Miguel silva são Ulisses Já Não Mora aqui (2002) e Vista Para um Pátio seguido de Desordem (2003).

Cheira-te bem...

O Povo Vencerá!
A minha decisão de não votar está em processo de revisão. Cheira-me que não é só a minha.

14.1.06

A minha contribuição para a campanha de Manuel Alegre

Na página de apoio à candidatura de Manuel Alegre há uma secção denominada Galeria de Arte com obras a leilão. Aí deparamos com contributos de vários artistas e escritores para a campanha. São-me especialmente caros os contributos provenientes de escritores. Manuscritos de poemas, prosas, mais ou menos ilustrados, que chegam a atingir 500 euros. Veja-se, a título de exemplo, o contributo de Nuno Júdice. Apesar de por lá pararem pessoas que me são queridas, não resisti a deixar aqui neste meu canto o meu contributo pessoal. É certo que ninguém mo pediu, talvez por estar disposto a privar-me dele de borla. Ei-lo:

Aos poucos quanto passa se embacia.
E, sob o acto de embaciamento,
a idade se ilumina,
conferindo ao ar do tempo
aquela limpa douração esquecida
ao fundo do cristal. E envelhecendo.
Por isso embaciar-se traz acima
uma outra luz. É instrumento
daquela espécie de sabedoria
que envelhece no invólucro, à medida
que ver se timbra na ampliação de dentro.

Fernando Echevarría

Fernando Echevarría nasceu a 26 de Fevereiro de 1929 em Cabezón de la Sal, Santander, Espanha. Filho de pai português e mãe espanhola, veio para Portugal com dois anos de idade. Cursou Humanidades em Portugal, Filosofia e Teologia em Espanha. Vive a partir de 1961 exilado em Paris e Argel. Regressa a Paris em 1966, aí passando a residir com permanência, dedicando-se à actividade do ensino. Em 1956 publicou o seu livro de estreia, Entre Dois Anjos, que lhe garantiu um reconhecimento imediato. Em 1989 reorganizou e ordenou as suas primeiras obras em Poesias: 1956-1979. Colaborou em revistas como Graal, Hífen, Colóquio / Letras, Limiar, etc. A sua poesia, premiada e traduzida, está representada em várias antologias. P.S.: faz parte da comissão de honra do professor Cavaco. » » »

13.1.06

A peste

fotografia respigada aqui

O Y desta semana traz João Peste, vocalista dos Pop Dell’Arte, na capa. O pretexto é a edição de POPlastik 1985-2005 que, tal como o título indicia, colhe 20 anos da história da mítica banda pop portuguesa. O conceito de mítica cai-lhes muito bem. Os Pop Dell’ Arte, como muita coisa boa, nunca passaram de um mito com alguma piada. Por isso mesmo o panegírico traçado por João Bonifácio, repleto de epítetos hiperbólicos dirigidos a João Peste, é claramente despropositado. Porque não quero alongar-me na descrição dos disparates, sigo direitinho à conclusão: «O único génio da pop portuguesa». Meu caro, nem génio nem único. O homem pode ser um “ganda maluco”, tem a sua aura de marginal atraente, reconhecem-se-lhe todos os condimentos de uma estrela rock’n’roll "à maneira". Não se pretenda porém aureolar o que é da ordem de Satã. Peguemos nas palavras do próprio: «Tenho um conceito de pop muito aberto, onde cabem os Einstürzende Neubaten, os Velvet Underground, os Beatles, o Zeca Afonso ou Antony & The Johnsons». Português, apenas um. Esse sim genial e único. Como foi Carlos Paredes. Como foi António Variações. E para maldito, chega-nos o Zé Leonel dos Ex-Votos a cantar o Calimero.

A quem servirão as boas intenções?

O jornal Público convidou 14 intelectuais a pronunciarem-se sobre o estado político da nação. O primeiro intelectual a ser escutado foi Gonçalo M. Tavares, escritor cuja poesia me anima mas cuja prosa me enfada. Em 10 pontos no seu habitual estilo cilíndrico, o autor de Jerusalém diz de sua justiça. Entre várias premissas, esta conclusão de estilo mais hipotético que categórico: «Em poucos anos os manifestantes transportarão acima da cabeça não cartazes, mas pequenos ecrãs». A ideia soa-me a “já vi isto em algum lado”, mas é boa. Eu comecei logo a imaginar no que poderiam esses ecrãs mostrar. O que cada um dos manifestantes (pensa que) sabe dos candidatos? O que cada um dos manifestantes (sabe que) pensa dos candidatos? O efeito, desconfio, seria eloquente e esclarecedor. Sempre que olho para uma manifestação, sempre que observo as amálgamas de gente anónima rodeando candidatos, interrogo-me sobre o que motivará essa gente. A esperança? O clubismo? O tacho? Ideais, valores, ideias? Que será que “o povo” vê nos seus líderes? Que móbeis levarão as pessoas ao espectáculo da política? Ser de borla? Não sei, mas sempre me interroguei acerca disso. Se há coisa que me complica a mioleira é esse arrebatamento, é esse entusiasmo, com que alguém se manifesta por um outro no qual deposita a “fé” de um rumo a ser traçado. Apesar de desconfiar sempre das boas intenções, dou de barato que existam. Tenho é duvidas sobre a quem elas servirão.

Os pontos nos és

Um dos erros que mais se encontra pelos jornais: discriminação, no sentido de segregação, vir escrito descriminação, do verbo descriminar, que significa absolver ou justificar.

VOTA LOUCOMOTIVA.COM (clique)

O único candidato que tem inequívocas, indesmentíveis, razões para se queixar da comunicação social é Garcia Pereira.

Nos Joelhos do Silêncio

in Ma-Schamba.

JPT escreve sobre o livro de Heliodoro Baptista: «Eu confesso os meus problemas com a poesia de HB. Já com o Por Cima de Toda a Folha, AEMO, 1987, e com o A Filha de Thandi, AEMO, 1991, a distância notou-se-me. Neste livro que colecta poemas de décadas repete-se. (…) Sim, talvez que todo o incómodo ou, sendo franco, o des-gosto com os textos de HB seja o de eu ser de outro mundo e de lá não entrar. Talvez isso. Mas também talvez a forma. Que o conteúdo não é tudo - nem no que olhamos como documento». Permito-me acrescentar:


Calos no Cu

(Ao Arménio Crecheu Vieira,
caboverdianamente)

Onde e quando, li ou ouvi, que quem sabe se conter
terá sempre, emabalado no tumulto, força para se proteger?
Dizem, populismo frouxo: a liberdade experimenta-se;
mas, por cá, pela cruel indiferença, berramos: Foda-se!

Maputo, 1988

Essa gente não sabe dos corpos a linguagem da desordem.
Esboça, quando muito, pequenos gestos
periféricos.
É uma longa aprendizagem
que pouco lhes diz. Pervertem-se na ignorância
de tudo e de si mesmos e vão (sobre)vivendo com a lentidão
e o sensabor de quem tudo desistiu.
Subsistem.
A praia que lhes sobra chega para a dessatisfação
do largo mundo.
Percurso rastreado dia a dia onde não cabem
os Melquíades da infância.

Neles, a contiguidade do desejo é vital e extemporânea: um vinho
resinoso e a polpa de algumas azeitonas
configuram
padrões de vida não vivida.
Assumem-se, outrossim, como a geração do martini.
Progridem de snack para snack ao sabor de liofilizadas
cerejas, outros fumos, vários palpites
gustativos.
Entre a magia do sound
e a inutilidade de alguns lances
vão auscultando um tempo de procura e
merecimento.

Eduardo Pitta

Eduardo Pitta, poeta, ficcionista, ensaísta, nasceu em Lourenço Marques a 9 de Agosto de 1949, tendo vivido em Moçambique até Novembro de 1975. Publicou o primeiro livro, Sílaba a Sílaba, em 1974. A sua obra poética foi revista e fixada em Poesia Escolhida, volume de 2004 publicado pelo Círculo de Leitores. Na revista LER, da mesma casa editora, manteve o poeta uma coluna de crítica de poesia singular entre as nossas letras. Alguns dos seus ensaios encontram-se reunidos em volumes como, por exemplo, Metal Fundente (Quasi, 2004). Outros ensaios da sua autoria são Comenda de Fogo (2002) e Fractura (2003), no qual aborda a condição homossexual na literatura portuguesa contemporânea. De salientar ainda a colaboração dispersa por várias revistas e órgãos da imprensa escrita e online (Hífen, Inimigo Rumor, Ciberkiosk, etc). É uma das vozes mais activas no weblog Da Literatura.

12.1.06

Os dois posts anteriores

São da inteira responsabilidade de Quiosk e v. LEAL BARROS.

O Sapo

Um canto na noite sem ar...
— A lua põe-se a pratear
os recortes do verbo obscuro.

Um canto; um eco que ressoa
Sob o capim, cantando à-toa...
— Calou-se. Vem, é lá, no escuro...

— Um sapo! — Por que esse pavor,
perto do teu fiel soldado?
Ei-lo: é um poeta tosquiado,
Um rouxinol da lama... — Horror! —

— Horror por quê? Olha-o, escondeu
em sua toca o olhar ardente
e foi-se: frio, indiferente.
Boa noite — Esse sapo sou eu.

Tradutor desconhecido.

Tristan Corbière

Tristan Corbière, de seu nome verdadeiro Édouard Joachim Corbière, nasceu francês em 1845. Uma terrível deformação corporal valeu-lhe a alcunha de Morte. Levou uma vida boémia, passada a maior parte junto ao mar. Segundo Breton, que o incluiu na sua Antologia do Humor Negro, «vestia-se à maneira dos marujos, coxas despidas e pernas a cambalear todas dentro de umas botas enormes». Os seus poemas foram coligidos sob o título Les Amours Jaunes (1873). Foi Verlaine quem primeiro lhe prestou atenção. Os surrealistas fizeram dele uma espécie de inventor da escrita automática.

As pessoas de espírito crítico

As pessoas de espírito crítico acusam frequentemente a ausência desse espírito nos outros. Mas quando a crítica lhes cai em cima dizem-se quase sempre injustiçadas e ficam ofendidas.

11.1.06

A cultura dos estúpidos...

Só hoje reparei no diálogo interessante que este comentário de C. acabou por motivar. No primeiro encosto à querela Zazie afirma que a Cinemateca Portuguesa (faz muito bem C. em sublinhar portuguesa) deve continuar a fechar a 70 chaves algumas das raridades guardadas nos seus arquivos. Fala, certamente, de barriga cheia. Há tempos dizia-se que Portugal era Lisboa e arredores… Hoje já há quem acrescente o Porto à expressão. Seja como for, a verdade é esta: em termos de oferta cultural na ementa do estado há portugueses de primeira e portugueses de segunda. Por essas e por outras jamais assinarei petições do género desta, que outra coisa não pretende senão engordar os gordos à custa dos esfomeados. Devo dizer que odeio o culto museológico das obras de arte. Raramente vou a museus, cheiram-me quase sempre a cemitérios. Não gosto do cheiro dos cemitérios. Fechar filmes a 70 chaves num arquivo à mão de meia dúzia de privilegiados, a expensas de todo o contribuinte cumpridor, é quase tão digno quanto conservar carapaus grelhados num congelador. Os filmes fizeram-se para serem vistos até ao pó da película. Quero lá saber se as provas se vão deteriorando! É essa a sua lei. As obras fizeram-se para ser gastas, vistas, disseminadas pelos olhos e pelas manápulas de quem estiver disposto a consumi-las. Cultura de reservatório? Não, se faz favor. Eu nasci em Rio Maior, na modorra da terra vivi até aos 17, sei bem o que me custou a privação de coisas que só pude ver quando fui viver para Lisboa. Senti-me muitas vezes como aquelas criancinhas do interior que nunca viram o mar. E por quê? Porque há meia dúzia de privilegiados que se arrogam no direito de trabalhar, às custas de todos nós, no empacotamento, em arquivos de conserva, do que sendo de todos apenas chega a alguns. Estou farto disso. Se tiverem de se estragar as obras, que se estraguem. Mas que se estraguem cumprindo a função para a qual vieram ao mundo: serem vistas.