22.2.07

A PROPÓSITO DE “A POSSIBILIDADE DE UMA ILHA”, DE MICHEL HOUELLEBECQ



Toda a metafísica é do corpo e Michel Houellebecq sabe isto muuuito bem. “Nós somos corpos, somos antes de tudo, principalmente e quase unicamente corpos, e o estado dos nossos corpos constitui a verdadeira explicação da maior parte das nossas concepções intelectuais e morais” (p 179). Somos corpo e a metafísica pertence-lhe, estou de acordo. Não está de acordo quem repete o erro de Descartes: achar que há um ponto a partir do qual as coisas não são explicáveis pelo corpo, sendo, por isso, do domínio do espírito. Quem pratica muito o erro de Descartes (dominante num país português) não percebe António Damásio quando tenta explicar que (um) sentimento não é menos nobre ou verdadeiro pelo facto de ser o resultado de uma reacção química a ocorrer algures no nosso cérebro (cf. “O Erro de Descartes”). Temos a definição de animal/ais: “tubos digestivos sobre patas, terminados por dentes, cuja vida se resumia a procurar outros tubos digestivos a fim de os devorar e reconstituir as reservas energéticas” (p 377). Alguma coisa a acrescentar?

Ainda que seja bonito, o amor é no nosso universo necessidade, coisa obrigatória. Sendo o palco das realizações do espírito (a História para Hegel) motorizada no cavalo desse tal amor. Por outras palavras: “a sua natureza levava-a a amar, como uma vaca a pastar” (p 262). Quer dizer, o amor é bonito, lindo e maravilhoso. Além disso, também é violento e terrífico. Seja como for, esquecer a “sua importância na economia genética da espécie” (p 383) é idiota.

Como exemplo da acção da infra-estrutura (corpo) na superestrutura (pensamento) temos o seguinte: “começamos por nos sentir pouco à vontade na vida, e acabamos por aspirar à implantação de uma república islâmica” (p 285).

Não há mais psicologia sem biologia. As inclinações morais, filosóficas ou estéticas são a parte visível de uma glândula. A hormona, enquanto é invisível, chama-se espírito, ou Deus. Quando se torna conhecida, perde a qualidade espiritual ou divina e passa a chamar-se hormona X, Y, Z. Um chefe machista pretende castrar os súbditos. Tudo porque, outro exemplo, “na maior parte dos símios, a produção de testosterona dos machos dominados diminui e acaba por se esgotar” (p 229). Quantas pessoas conhece que se tomaram de amores por alguém com lepra (ou equivalente pós-moderno)? Nenhuma, suspeito. É que a beleza serve propósitos de combinação genética, ou seja, é um truque da natureza para nos fazer tentar aproximar do macho ou fêmea convenientes. Conveniência genética.

Continuamos a ter o problema do sofrimento. A extinção do sofrimento passa pela extinção do ser humano. O ser neo-humano poderá não ser obrigado a sofrer. A passagem para um mundo sem sofrimento não é possível sem uma mutação genética, uma mudança de hardware. A biologia pode conquistar a felicidade, não as nossas boas intenções sabiamente aplicadas. A meditação zen procura evitar o sofrimento através da redução da biologia, melhor dito, diminuição do metabolismo, logo, do peso das condicionantes biológico-genéticas. A felicidade pode ser conquistada, mas não pode deixar de ser cinzenta – aos nossos olhos humanos. Podia continuar.

Pormenores de enredo, quantos anos tinha, cor de cabelo e quantas vezes casou, ficam para os críticos.


Rui Costa

17 Comments:

At 7:02 da tarde, Blogger margarete said...

gostei muito, concordo com o que dizes, não li "A Possibilidade de uma Ilha", mas passa a fazer parte da lista dos "para ler proximamente"
(fez-me lembrar uma conversa :))

 
At 7:24 da tarde, Blogger Filipe Guerra said...

bvNão acredito, Rui, são muitas páginas de «espírito» para explicar que tudo é físico, tal como para o erro de Descartes. Também aqui são demasiadas linhas de raciocínio para para dizer que tudo é corpo. Um sentimento pode ser bioquímico, mas dizê-lo em palavras já é abstracção do espírito. Não há literatura física, é treta, é contra-natura.

 
At 8:41 da tarde, Blogger MJLF said...

Bom, isso de tudo ser corpo parece-me tão exessivo como pensar que tudo é espirito, desconfio um bocado do que me soa a extremos.
Maria João

 
At 9:57 da manhã, Anonymous Anónimo said...

e eu acho que quando se puxa pelo espírito, fode-se o corpo.

 
At 12:36 da tarde, Anonymous Anónimo said...

etanol: isso de ser excessivo depende da posição do observador. para quem está em lisboa, os extremos podem ser o minho e o algarve.o que para uma pessoa parece excessivo, para outra é o mínimo da razoabilidade. daí que o que te pareça uma posição tolerante, seja apenas o resultado das tuas forças e limitações. há outro tipo de argumento que é assim: quem acredita em coisas que não existem é o verdadeiro radical.

fag: boa tarde, não acredito em abstracções.

hmbf: não, tudo é caca de pomba.

Rui Costa

 
At 2:11 da tarde, Blogger MJLF said...

Rui: o teu minimo de razoabilidade talvez seja resultado apenas das tuas forças e limitações. Acreditar apenas no que existe pode ser falta de imaginação e acreditar apenas no que não existe é demencia. Bom, criatividade não me falta, mas ainda bem que sou desconfiada, porque assim tenho um dos pés neste mundo, assim posso relativisar. Já agora, o mundo para mim não é Lisboa com o minho e o algarve nos extremos, tenho viajado bastante e gosto de sair de mim própria.
Maria João

 
At 7:48 da tarde, Blogger MJLF said...

Henrique:
eu gosto de visitar o teu mundo! o mundo mais fisico e metafisico que conheço é a música, é totalmente corporal e fisico para o auditor ou intreprete e em simultaneo é pura abstração.
Maria João

 
At 4:39 da tarde, Anonymous Anónimo said...

de abstracto a música não tem nada.

Rui Costa

 
At 4:47 da tarde, Anonymous Anónimo said...

...isso é (resquícios de) pensamento (neo-)platónico.

Rui Costa

 
At 10:40 da tarde, Blogger MJLF said...

Eu nunca afirmei que a música não é um fenomeno fisico, estou de acordo,mas é totalmente abstrata em simultaneo. Agora o espiritual resumir-se a hormonas, duvido, em parte poderá dizer-se que é assim, mas explicar tudo desse modo, ou com os genes, não acredito. E o amor ser apenas necessidade e economia genética, os católicos já defendem isso há muito tempo, o amor terreno resume-se à procriação, depois há o amor a deus que deve funcionar como no budismo zen(isto é uma piada). Bom, os católicos não me converteram, substituir a religião pela ciência também não me parece boa ideia. Como é o teu raciocinio, quem acha que tudo é corpo é detentor de uma verdade universal? e quem acha que tudo é corpo e espirito? A genética agora é o grande boom das ciências,é a polvora contemporanea, descobrem genes para tudo, para o autismo, para o raio que parta, já agora, o gene da homosexualidade, essa então era linda! As ciências poderão descodificar muitas coisas, mas não sei se dão resposta para tudo, ou se resolvem tudo- espero que resolvam cada vez mais, no caso de doenças mortais ou para melhor a qualidade de vida dos doentes. Tenho alguma fé nisso, mas não sou dogmática.
Maria João

 
At 2:55 da tarde, Anonymous Anónimo said...

hmbf: sim, o tempo e o infinito são coisas "genéticas", por isso é que o infinito de um peixe não é igual ao teu. mas dá jeito ter sempre um deus à porta a quem encomendar escape à nossa cara sempre igual no espelho.

etanol: ninguém quer reconhecer na ciência uma substância divina. a ciência, até agora, só conseguiu provar condignamente a falibilidade dos fazedores da ciência. já tamos fartos de saber que o cientista encontra aquilo de que vai à procura (se quer provar que os homens são diferentes das mulheres, encontra um milhão de provas disso; se quer provar o contrário, tb encontra milhões de provas disso). Agora, se vês no amor uma substância divina (ou coisa do género), então...força nisso.

Rui Costa

 
At 7:52 da tarde, Blogger MJLF said...

amor como substancia divina? Não acredito em deus como figura antopromorfica que vive nas nuvens e manda nisto tudo, que é lei e castiga e etc... tenho uma relação com o que me transcende, isso sim, mas tenho consciencia que também sou bicho,sou natureza; tenho também uma relação com a natureza que é algo que existe para além mim e me é superior. Acho que nem tudo é corpo, mas em parte também é corpo. E o amor, a arte, a criatividade são substancias que me dão algum sentido à vida,são espirituais e corporais em simultaneo, da ordem do visivel e invisivel, são apaziguadoras; sinto tanto a criatividade como o amor elevam-me a existencia, são modos de saír de mim própria, são formas de libertação. Estas substancias, nesse sentido, têm algo de transcendente. Não sei se são substancias divinas, mas são actos onde sinto que estou bem viva e acordada, e só podem existir com paixão. Tenho fé na criatividade e no amor; no entanto, sei que a sobrevivencia é o que me faz levantar da cama todos os dias, mas o que me move realmente é a paixão e a esperança, se não já não estava por cá.
Maria João

 
At 3:17 da tarde, Anonymous Anónimo said...

hmbf: não me lembro, da última vez que tive corpo de peixe foi há uns milhões de anos.

etanol: acho que percebo o que queres dizer, não vejo as coisas assim.

Rui Costa

 
At 7:17 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Os monges do séc. IX que entoavam o canto gregoriano nas abadias dos mosteiros estava proibidos de entoar o intervalo musical de 4ª aumentada- fa-si-, na escala diatónica, tendo este intervalo sido denominado pelos eruditos musicais da altura, pelas suas propriedades de frequências "perturbadoras do espírito" (ou será do corpo?) de "DIAVOLUS IN MUSICA". Será que o Papa S. Gregório (a ele se deve o Canto Gregoriano e a famosa recolha desses cânticos no Antifonário) se preocupava muito com o espírito dos monges ( e monjas, já agora)e dos católicos em geral? Nâo ouvimos recolhas como "Carmina Burana" onde a paixão e o corpo coexistem? Não se pode transcender e re-acender o corpo pela paixão e pela entrega? Experimentem, se quiserem.

 
At 7:31 da tarde, Blogger MJLF said...

huuuummmmmm sobremesa fa-si uma maravilha!
Maria João

 
At 11:07 da manhã, Blogger MJLF said...

Sobremesa fa-si: é o intrevalo disonante proibido durante seculos pela igreja. As disonancias provocam estados de tensão e foram usadas e abusadas na música do século XX, sobretudo na música atonal - que não tem tónica ou seja não tem um centro, pretence a um mundo sem deus. Eu acho esses fenomenos apetitosos.
Maria João

 
At 2:39 da tarde, Blogger MJLF said...

Estás a ver como lá chegaste com tua boa formação filosófica, são as mónadas do Leibnitz ( deve estar mal escrito, isso deriva dos meus problemas com os alemães), existem muitas bananas fritas apetitosas no mundo e não apenas A BANANA ou deus! o mundo tem muitos mundos, muitos centros em simultâneo, a física, a arte, a metafísica, a biologia, a quimica, a genética, as hormonas e tal e tal, tudo gira sem parar e por isso é que tem piada - não é apenas bananas fa-si, mas também maçãs fa-si ou ananás - estou aqui a imaginar um pessego dó-si - 7M huuuummmmmmm, nunca provei, ou manga si-dó - 2m huuuummmmmm!
Maria João

 

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