7.2.07

«És um cowboy muito Zen.»


É muito fácil acabar com os males do mundo. Para isso basta uma pistola e não ser mau de pontaria, acertar bem no centro da testa ou procurar o céu-da-boca. Se não te quiseres matar, para com isso acabares de vez com os males do mundo, então esquece e dança, fecha os olhos, faz-te à vida com sete palmos de indiferença entre as retinas e o chão que pisas. É isso, é isso: se não te queres matar, então por que te queres matar? Esse teu tédio é um insulto não aos que vivem mas aos que morrem, ninguém insulta os que vivem senão cuspindo-lhes na morte. Os que vivem são já dejectos induzidos do esquecimento, são o veneno que atapeta os sonhos dos jardins onde crescem, como sementes de um cemitério interminável, células, embriões, fetos, bebés, crianças, adolescentes, homens e mulheres, velhos, esqueletos. Mas entre a célula e o esqueleto há uma dor que nos atravessa, uma dor com a qual ou aprendemos a viver ou procuramos o céu-da-boca. O coração a nu de Baudelaire foi muito claro: «Quanto mais o homem cultiva as artes, menos se entesa. Cria-se um divórcio cada vez mais sensível entre o espírito e o bruto. Apenas o bruto se entesa bem e a fornicação é o lirismo do povo. Fornicar é aspirar a entrar num outro, e o artista nunca sai de si próprio». Sai pois de ti próprio, ousa fornicar o mundo e tenta, tanto quanto possível, fornicar a alma dos que convivem contigo a angústia e o desespero de um mundo sem causas nem princípios, de um mundo esquivo, mudo, pedante e demagógico, de um mundo vigilante, sombrio, ingrato, de um mundo escravo da inveja e do ciúme. Esse mundo da corja divorciada do bruto, esse mundo da corja que não se entesa, esse mundo da corja deprimente. É muito fácil acabar com esse mundo, basta uma pistola na mão e não ser mau de pontaria. Mas se te queres matar, então por que não te queres matar? Porque há um outro mundo, um mundo de fogachos, com criados generosos e prostitutas virgens, um mundo onde «o homem e a mulher sabem de nascença que no mal se encontra toda a volúpia». Esse mundo é o do jogo sem resultado, das vinganças puras, como um corpo a proteger-se do frio e da chuva, como um corpo a vingar-se dos milagres que ainda estão por acontecer. Vou falar-te um pouco desse outro mundo de não te quereres matar, apesar de exausto eu vou dizer-te um pouco desse outro mundo, um segredo que ficará entre nós como entre nós caminham hoje as pessoas de ombros encolhidos. Vi esse outro mundo, pela primeira vez, quando mergulhei num rio de diáfanas águas. É certo que esse rio já não existe, mas desde Heraclito que os rios estão sempre a deixar de existir. Era um rio, dizia, de águas diáfanas, um rio onde subíamos ao topo das árvores sem qualquer receio de cair, um rio onde pelas margens cresciam papoilas e pássaros de rabo comprido vinham depenicar sementes, era um rio sóbrio, destemido, maneável. É certo que esse rio cresceu e, como sabes, quando as coisas crescem tudo cresce com elas deixando de ter graça. Pelo menos é assim neste mundo de que te falo, não no outro de há pouco. Este mundo vi-o, pela primeira vez, quando mergulhei nas águas desse rio extinto, um rio de pequenas descobertas, ingénuas expedições. Hoje em dia, quando de novo me quero não matar, busco esse rio dentro da memória e penso que talvez seja possível, algures num sítio longe dos lugares que conheço, voltar a encontrar um rio assim, um rio semelhante àquele que um dia me fez não me querer matar. Não é esperança nem fé, é desejo. Às vezes, confesso, encontro-o no silêncio da tua voz. Pena que fales tanto e não me deixes ouvir mais vezes o silêncio da tua voz. Às vezes, confesso, encontro-o na luz dos teus olhos. Tento escrever poemas sobre isso, poemas que me acusam de fracos e sentimentais. Tem razão quem assim me acusa, mas esses que o dizem são a corja do outro mundo, uma corja que seria tão fácil acabar com ela não fosse o silêncio da tua voz e a luz do teu olhar. Por isso, que posso eu fazer senão seguir os conselhos de Baudelaire?

1 Comments:

At 9:35 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Da importância do policiamento - II

Aparece-me por vezes,
em sonhos lisos,
uma grande quantidade de sangue idílico.

Respeito os vivos e roubo,
sem qualquer tipo de prudência
ou sentimento de culpa,
o vinho doce destinado à garganta dos mortos.

Quando nos habituarmos à gangrena
louvaremos o sangue
derramado pelos hereges a caminho da loucura.

Porém ficarei encostado à minha infância.
Serei cruel.

 

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