13.1.08

SAGRADO CORAÇÃO

Damien Hirst


Mortos, todos mortos, nada mais que mortos, já mortos, mesmo falantes, caminhantes, gritantes, mortos, nem limbo nem purgatório nem inferno nem paraíso, apenas mortos. Sentimos o coração a bater, sentimos bater algo a que chamamos coração porque nos disseram para chamarmos coração ao órgão que palpita. Pode ser uma pedra, a lava rompendo a crosta da terra, pode ser qualquer coisa que nunca saberemos, que nunca decifraremos. O coração é uma cifra indecifrável. Está morto. Sentimo-lo a bater e, no entanto, está parado. O coração não respira.

Quando fumamos muito, quando bebemos muito, quando nos cansamos, ou quando corrermos desenfreadamente na direcção de um sonho, de uma meta inatingível, ou quando o coração parece dominado por uma vontade imparável de saltar para fora do peito... Somos a prisão de um coração, somos uma jaula, tudo o que encerramos dentro de nós é um animal impossibilitado de exercer o seu instinto da caça. Travamos o instinto da caça para não sermos caçados, receamos que as balas, a meio do caminho, se voltem contra nós. Por isso travamos o instinto da caça.

Vimos desse tempo em que os peregrinos caminhavam de lança na mão, apoiavam-se na terra com as pontas das lanças, bem afiadas, rasgando o ventre dos rastros, deixando para trás uma espécie de ferida que foi a marca da nossa passagem. Vimos desse tempo, caminhando incessantemente na direcção da morte. Pelo caminho: bebemos cerveja, fumámos cigarros, rimos, dançámos, fizemos a cama, engraxámos as botas, passámos a língua pela superfície de vários corpos. Pelo caminho: construímos casas, erguemos muros, edificámos lendas, arquitectámos segredos, promovemos a oração como um arcano fatal. Pelo caminho: fintámos a morte.

Mas fechados na jaula de um coração, impedindo o voo de um coração, somos pouco mais do que o aditamento da morte. Quem pode assegurar o rosto do suicídio? Quem pode garantir a explicação do desespero? Uma estrela enforcada é como um candeeiro aceso na sinuosidade dos negócios - pegam-lhe no corpo, atiram-na para debaixo da terra, para uma fogueira iconográfica, transformam-lhe a morte nas lanças com que abrimos as feridas da terra. Vampiros de dentes cariados, andemos desde sempre a alimentarmo-nos das dores uns dos outros. E mal dos que subsidiam a dor com um sorriso, com a busca prazenteira de um lugar para lá das ilhas onde caímos, a paz grotesca de quem se encontra, de quem investe nessa busca silenciosa de um silêncio agitado. Pois é sempre agitado o silêncio que se procura.

A gente pode erigir sonhos de uma vida pacífica, isolada, sem a oferta derreada dos nossos medos. A gente pode erigir as paredes desse sonho, entrar no sonho e nele instalar-se durante o percurso da vida. Uma casa perto do mar, isolada das garras agressivas e implacáveis da civilização. Para aí chegarmos é preciso soltarmos o coração, deixá-lo voar para lá do corpo, arrancar-lhe os espinhos como quem amanha um peixe. Para chegarmos a esse lugar é preciso, no mínimo, desaparafusar os ossos, o corpo, separar as águas do pântano para o qual nos atiraram logo à nascença.

Se estiver alguém a vigiar-nos, se formos vítimas das proibições obsessivas desses que não sabem viver sem dizerem aos outros como se vive, então desistamos de pagar o imposto da nossa incomensurável tristeza. Nunca foi preciso ser-se poeta para concluir que o mais importante é, antes de nos precavermos, atearmos o rastilho das bombas. O que virá depois da explosão já todos sabemos, mortos há muito que estamos.