26.9.05

um espelho do tempo em que vivemos

«Quer queiram quer não queiram aí estão na minha frente, ridículos, maníacos, pueris, nesta marcha desordenada para o sonho; tenho-os na minha frente, e com eles a hipocrisia, as explicações confusas, as leis, as regras, os hábitos fétidos, e tudo o que lhes serve para encobrir as duas ou três realidades de que se não podem libertar, com a sua filosofia, os seus livros, as suas teorias - e no fundo instinto! instinto! instinto!; tenho-os aqui só bichos em frente da necessidade fatal, da verdade iniludível, com olhos abertos de espanto, com bocas murchas de mentir, a suar grotesco e a gritar de desespero. Tenho-os aqui ridículos, só ridículos, só enfim ridículos, mas já prontos para todas as infâmias. A vida espalmou-os, secou-os, deformou-os a todos. Andou por aqui a mão da desgraça, a mão do vício, a grande mãozada de ferro que deprime e esmaga. Um alimentou-se de lascívia, outro de sonho, outro de avareza, outro de fel. Todos diante da nova visão do universo se sentem grotescos e inúteis de corpo e alma, com lepras que nunca mais se limpam, com nódoas que nunca mais se lavam, com ideias e palavras entranhadas, com ímpetos de gozo e monstruosos apetites. Os anos passaram, os anos marcaram-nos. E ei-los nus, uns em frente dos outros, nus e reles, nus e grotescos, com o esplendor cada vez maior, cada vez mais doirado, cada vez mais sôfrego diante de si. Nus e obscenos, nus, com doenças e infâmias secretas. Aqui está a embófia e o orgulho, aqui está o que come e digere, mas, no fundo deste estômago que esmói, há ainda um resto de sonho; aqui está a velha que envelheceu ridícula, mas este ridículo é atroz. Tudo isto contém ânsia, ressuma dor até nas plumas, até nos trapos. Todos os sonhos absurdos, os sonhos que ninguém se atrevia a declarar, os produtos fétidos de noites sobre noites de relento e insónia, os ridículos sonhos de almas embrionárias, transformam-se em realidade e resolvem-se em gritos, em dor e em grotesco. A puerilidade que constitui o fundo do nosso ser, as pequenas misérias que formam montanha, e as grandes tragédias desgrenhadas afundam-se em grotesco. A todo o drama se mistura grotesco, a toda a dor rictos, e toda a convulsão emerge a escorrer grotesco.»

Raul Brandão (1867-1930), Húmus, Frenesi, 2000 (1ª edição, 1917).