Fragmento # 20 – O silêncio da escrita
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Um mapa é sempre imagem de um território, esquematização de um espaço que nos pode dizer de onde vimos, onde estamos, para onde vamos. Os mapas de Ana Hatherly não nos dizem, apenas sugerem: é possível seguirmos os rastros da sua escrita como se fosse o fio de Ariana. A escrita destes mapas é ilegível, o seu som foi obliterado através da forma da própria escrita, restando os traços do gesto que a mão da autora percorreu. Trata-se assim de uma catarse cartográfica.
Maurice Blanchot descreveu-nos um fenómeno apelidado de preensão perseguidora (L´Espace Littéraire, p-19), que sucede na acção de escrever. Neste acto, existe uma mão portadora de uma espécie de doença, que pega num lápis e não o quer largar para escrever infinitamente. A mão entra assim numa existência preciosa e o que tem depende da sua sombra. A mão escreve inserindo-se num outro tempo, num tempo infinito, tornando-se sombra no tempo. Existe porém outra mão, que interrompe a escrita, criando o ritmo, um cosmos nesse tempo não humano. O tempo no acto de escrever torna-se sombra do silêncio e a mão que pára a mão doente sabe como é importante o que forma nesse tempo, porque existe uma intimidade da escrita com o silêncio, com o que tem de autêntico, onde toma forma a própria escrita. Os Mapas da imaginação e da memória dão ênfase precisamente a este momento, ao acto de escrever. Este surge como traços dos gestos de um corpo ausente, sombras silenciosas que observamos em forma de mapas, memórias que não podemos ler, apenas seguir o seu curso ritmado. São rastros de um acto mágico.
A escrita no Oriente tem um carácter místico, sobretudo na China, onde os poetas são pintores e calígrafos. A escrita chinesa é ideográfica, a sua leitura exige uma correspondência de sinais visuais que se relacionam entre si. Assim, a escrita chinesa mantém um dualismo gráfico-verbal, permitindo um íntimo encontro entre a poesia e a pintura na própria estrutura. A escrita de consoantes perdeu essa dualidade, ao evoluir no linearismo do espaço, subordinando-se à linguagem verbal e tornando-se um instrumento de expressão racional. Ana Hatherly desconstrói o aspecto conceptual da nossa escrita, através da sua desemantização, pondo em evidência sobretudo o gesto de escrever, retomando o carácter mítico e simbólico que ele implica, como se fosse um calígrafo ocidental. As palavras tornam-se elementos expressivos num percurso ritmado através de gestos individuais. É a mão que pensa neste acto - pensa o incomunicável, o inefável, num gesto de pura magia.
Imagem: Ana Hatherly, Mapas da Imaginação e da Memória, 1973. Clique na imagem para a ver com melhor definição.
Maria João
2 Comments:
Excelente post, Maria João. Ainda assim, deixa-me perguntar-te. Quando falas na «solidão do individualismo», que queres dizer com isso? É que a mim parece-me que o individualismo, precisamente por ser a afirmação do indivíduo (que só é possível se existirem outros) não é solidão.
Tudo pode ser visto dos dois lados da moeda: individualismo no sentido positivo é a afirmação do individuo, que só é possível se existirem outros. No lado negativo é a afirmação do egoismo e egocentrismo. O primeiro é saber estar só, a solidão é um recolhimento para criar ou para meditar, é ter personalidade ou o que chamo vida própria, que premite construir algo pode compartilhar com os outros; o segundo é estar sozinho, pensar apenas em si, mesmo quando está com os outros; é não compartilhar nada, querer apenas receber e não dar, é a afirmação do individuo no mau sentido, a manipulação dos outros, o gosto pelo poder, a ditadura.
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