6.4.06

Reprodução Interdita.

Os poetas que falam de poesia como se esta fosse o que de mais importante há no mundo. Os cães que ladram por ossos de plástico. As marcas registadas e as reproduções interditas. As antecipações históricas. Eu fiz primeiro que tu o que tu dizes que fizeste primeiro que eu. O mundo virtual é uma barroca gigantesca para onde são jogados berlindes que se confundem com os dedos dos jogadores. Os críticos que se julgam juízes do tempo, tal como os padres que se julgam juízes de deus. Os afilhados de bibe, os padrinhos de calças a caírem-lhes do cu. Os Hermógenes dialécticos: assim me parece, sim, creio que sim, certamente, exactamente, de modo algum, é isso mesmo, falas bem, creio que tens razão, é assim mesmo, sem dúvida, esse é o meu parecer, indubitavelmente, com toda a certeza, porque não? E os outros, sempre com o dever na ponta dos dedos: que deve ser assim, que deve ser assado, que devia ser cozido. Devotos da querela, reverentes no libelo. E ali ao lado a fome, a nossa indiferença, e ali ao lado a tortura, os nossos modos de dizer que nada é connosco, e ali ao lado um espelho a dizer-nos: que podes fazer? Olhamos para o lado e ali ao lado voltamos a cabeça para trás e ali ao lado subimos cheios de ar no pulmão e ali ao lado insuflamos um pouco de gás e ali ao lado explodimos e ali ao lado desistimos e ali ao lado voltamos a olhar para trás. No fundo, andamos todos a disfarçar a nossa incompetência. Porque fomos educados para dizer sim ao relógio, obedecer ao horário, trazer em cada bolso da fatiota um calendário de emoções, cumprir com brio a agenda dos milagres. Queres ser feliz? Compra. Vende-te. O poder de compra põe-te o conforto em casa. Produz. Sai de casa, volta para casa, abre a asa. E no entretanto os poetas continuam a falar da poesia como se ela fosse o que de mais importante há no mundo. Cães de plástico que ladram gemidos. Somos todos históricos, um pouco rebeldes. Quanto não vale uma vidinha entupida na honraria? Homens elefantes. Todos. Todos deformados à nascença, logo que no pulmão cai o primeiro sopro poluído da boca dos nosso pais. É preciso saquear a indiferença, é preciso nomeadamente ser mais estúpido ainda. Uma controvérsia para animar os habitualmentes. Uma discussão, uma polémica aveludada para tudo ficar na mesma. Como a lesma. Lesmas deformadas à nascença. A verdade é esta: o estado larvar do mundo é assegurado pelo instinto expectante. Deixa cá ver no que isto dá. E quando dá, ou dá para o torto ou dá para o direito. Se der para o torto, conspiraremos. Se der para o direito, logo teremos as nossas medalhas. Em suma: mata! Começa por matar-te a ti próprio, segundo a segundo, palavra a palavra. Depois mata todos os elementos da tua família. Aqueles com quem conviveste nos primeiros anos de vida. Mata a memória. Mata-te o mundo que há dentro de ti. Mata-te nos outros e mata o que resta dos outros no teu dentro. É preciso reconhecer, de uma vez por todas, que somos incompatíveis. Somos a marca registada das nossas próprias ilusões. Somos uma reprodução interdita. Venha então daí esse pedaço de glória, esse aplauso, esse carinho, esse mimo, esse encómio, esse elogio. Venha então daí esse Hermógenes concordante. Estaremos cá para lhe dizer, também a ele, que «a vida é uma grande cama».

6 Comments:

At 1:13 da tarde, Blogger Vítor Leal Barros said...

e as coisas que se passam nela!...
não vou reproduzir, nem concordar... apenas digo que de vez em quando são necessárias umas bofetadas assim para ver se um gajo acorda....

abraço

 
At 6:13 da tarde, Anonymous Anónimo said...

"assim me parece, sim, creio que sim, certamente, exactamente, de modo algum, é isso mesmo, falas bem, creio que tens razão, é assim mesmo, sem dúvida, esse é o meu parecer, indubitavelmente, com toda a certeza, porque não?";)

 
At 8:53 da tarde, Anonymous Anónimo said...

valente abanão Henrique.
muito bom texto.
ps: Rui Lage eu tambem estava lá no clube das 7 da manhã HEI!!! bem bom!
Aurora

 
At 5:55 da manhã, Blogger Nuno Gouveia said...

e já agora o post "serviço publico" no Abraxas. mas levem as carteiras recheadas.

wwwabraxas.blogspot.com

 
At 10:31 da manhã, Anonymous Anónimo said...

O melhor seria o silêncio. Mas o silêncio é um erro do caraças, e depois, como dizia o João Pedro George, A confirmação do valor próprio pelos outros é uma dimensão essencial da identidade, seja ela de escritor ou outra. Daí decorre a importância da crítica. Que o mesmo é dizer "quem não é visto, não é achado". Como os irmãos Dupont & Dupond, digo mesmo mais: o silêncio é um erro do caraças. Abraço.

 
At 11:06 da manhã, Blogger hmbf said...

MB: tens toda a razão. Aliás, pegando nas próprias teorias do George, eu diria mesmo que ainda bem que foi ele a transformar o que a Margarida Rebelo Pinto escreve em literatura. Como crítico, acho que fez muito bem em dar-lhe a sua atenção, ou seja, vida. Se não fosse o George, o que seria da Margarida?

Nuno Gouveia: Hei-de ir ao Abraxas, assim o tempo permita.

Alexandre Dias Pinto: o mesmo, assim que o tempo for meu amigo.

Aurora: Isto não é um abanão. Isto é um Não com abas.

Kaku: positivamente.

Rui Lage: na verdade ando a ler Ambrose Bierce, Vladimir Jankélévitch e Luckás.

Vítor Leal Barros: hei-de procurar a definição do Diabo para bofetada.

Saúde a todos,

 

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