1.5.06

UMA VIDA SIMPLES

Annie Ross

Uma vida simples, já não se pode ter uma vida simples. Onde é que eu já ouvi isto? Num aforismo das favas contadas, pois claro. Tout va bien. Pagar as contas: água, electricidade, gás, condomínio, serviços municipalizados. Tout va bien. Segurança social. IVA, IRS. Tout va bien. Comida, bebida, roupa lavada. Gasolina. Pequenos luxos: livros, cds, cinema, teatro (quase nenhum), concertos (cada vez menos). O jornal e o totoloto ao fim-de-semana. Tout va bien. Uns passeios. Uma viagem por ano. Já não se pode ter uma vida simples. É Maio, Annie Ross lembra-nos um sonho antigo: uma vida simples tal qual a daquelas famílias na revista do Expresso. A gente vai equilibrar as finanças. A partir de amanhã, a gente já não alugará filmes, comprará livros e cds, dvds, luxos inúteis. A gente vai equilibrar-se. Nada de cinema, concertos, teatro, exposições. Uma vida simples, equilibrada, poupada. A gente vai deixar de sair à noite. O quanto a gente gasta à noite, o quanto a noite nos desgasta! Nada de restaurantes, pastelarias, jogos de sorte ao fim-de-semana. A gente vai poupar na água (1 banho por semana), no gás (comidas frias), na electricidade (nada de relógios electrónicos, tvs, rádios e aparelhagens, nada de fornos e microondas, etc… A gente vai dar cabo dos telemóveis, da tv por cabo, da internet. Uma vida simples, mais nada do que uma vida simples. A gente só vai comer frutas e massa, uma fatiota para cada caso, cuidados de e com a saúde. Em suma, uma vida simples. A gente vai ter uma vida simples, a gente vai deixar de viver. Mas antes disso tudo, a gente vai ouvir mais uma vez a Annie Ross. Londres, 25 de Julho de 1930. Annie was born just hours after the matinee! Os pais eram actores de vaudeville. Uma vida simples. Andou por Nova Iorque, Paris, norte de África, Europa, por aí. Escreveu canções, cantou canções. Uma vida simples. Gravou um álbum mágico na companhia de Gerry Mulligan, quando este tinha um quarteto por onde andaram Chet Baker, Art Farmer, Dave Bailey, Henry Grimes, Bill Crow. Esta versão de Give Me The Simple Life, um clássico composto pela dupla Rube Bloom/Harry Ruby, data dessa época - 1957. Entretanto Annie Ross envelheceu. Entrou em filmes. Por exemplo: Short Cuts, de Robert Altman. Uma vida simples, de canções e outras coisas mais.

4 Comments:

At 2:10 da manhã, Blogger mjm said...

Dass. Como ler isto me deu vontade de chorar

 
At 8:04 da manhã, Blogger hmbf said...

Muito obrigado pelos comentários. MJM, o texto era suposto fazer... sorrir. :/

 
At 8:32 da tarde, Anonymous Anónimo said...

não se descortinam grandes razões para sorrir. estamos a fazer demasiadas coisas pela última vez. o tom blasé não chega para animar ou fingir que tudo está bem. quase nada está.

 
At 11:58 da tarde, Anonymous Anónimo said...

olha, olha... agora tenho analista! :) (aqui entre nós, há razões que a própria razão desconhece)

 

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