Lar de idosos
«Lar de idosos» é uma expressão terrível. Lembra-me uma casa mortuária de gente ainda viva. A última vez que entrei num lar de idosos foi para visitar a minha avó materna, poucos meses antes de ela partir para o lugar dos justos. Os meus avós paternos eram personagens dignas de conta. Pessoas simples, do campo, admiradores incondicionais das tabernas, tinham pormenores de distinta excentricidade. Meu avô, ainda mal o Sol se via, roubava dois ovos à capoeira, partia-os para dentro de uma caneca que enchia de bagaço e mandava a mistela goela abaixo. Era a sua forma de ganhar coragem para as treze horas seguidas de enxada na terra. Trabalhador incansável, vingava-se da subvida nas tabernas. Dizem que era um grande e original apostador. Certo dia, apostou uma pernoitada no cemitério lá da terra, comprometendo-se a trazer, como prova do feito, uma santinha que se encontrava na capela. Naquele tempo, de certa forma ainda hoje, os cemitérios eram lugares temerosos, sítios fantasmagóricos que se predispunham às mais eloquentes fantasias. Com o bucho atestado, caído de cansaço, não deu por uma beata mal apagada que acabaria a incendiar umas moitas que circundavam o cemitério. Foi um ver se te avias. O velho julgava-se, finalmente, a pagar pelos seus pecados. Minha avó também tinha das suas. Comia manteiga como quem papa iogurtes e ninguém se atrevesse a dizer-lhe que o homem tinha pisado a Lua. Ela logo indagava: Porque não foram antes ao Sol, que é muito mais bonito? Minha avó, na tal última visita que lhe fiz, usou de uma expressão que tenho conservado na memória que me resta dela: Que nossa senhora me guarde uma esmolinha no céu... Não pedia mais que isso, uma esmolinha no céu. Sempre que recordo meus avós, prefiro recordá-los desta forma. O contexto é pitoresco e risível, eu sei. Mas é como eles eram. Sempre prefiro lembrá-los bêbedos a lembrá-los senis, sós, entrevados no canto duma sala mórbida, à espera que a morte lhes desse uma boleia para esses leitos de pedra que, confesso, me atraem tanto quanto as palavras do Senhor.
3 Comments:
é a esmolinha que lhes damos na terra... neste inferno
Li tudo o que tinha por ler aqui na insónia que hoje também ronda...mas a doença fala mais alto, a tosse, os pulmões magoados, a garganta dorida e o corpo febril fazem-me o cérebro latejar e n consigo escrever e nem comentar..só afiançar-te e ficar eu de consciência tranquila: vou-me deitar e não vou dormir mas li tudo!
Bolas, Tânia, isso é que é dedicação! :)
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