Fragmento #59 – Breve encontro
Quando era professora no secundário apaixonei-me por um aluno. Não estejam já a imaginar coisas, foi uma verdadeira paixão platónica. Tudo começou com um momento mágico: numa turma do 9ºano de educação visual com cerca de 30 alunos, na Escola Secundária Rainha D. Amélia que já não existe, devia ser a terceira aula, tinha como objectivo fazer uma introdução à perspectiva. Então, pedi para desenharem a vista aérea de uma cidade, explicando-lhes o que é uma planta e um alçado a partir dos desenhos que faziam; de seguida, pedi-lhes para desenharem outra vista da cidade, mas avisei-os que era mais simples utilizarem apenas rectângulos e quadrados, para a poderem construir, posteriormente, em perspectiva – a ilusão óptica que permite representar o espaço tridimensional no plano da folha. Ao passar perto da carteira de um aluno estrangeiro, soube depois que era romeno, ouvi o seguinte:
- Professora, eu não desenho prédios direitos, sou um modernista como o Bartok!
Estava à espera de tudo, menos isto: Bartok?! Contei-lhe que cantava num coro de câmara, onde já tinha interpretado as suas quatro canções eslovacas; e que admirava profundamente a obra de Bartok, achava extraordinário o levantamento que ele tinha feito com Zoltan Kodály da música tradicional na Europa central, de como se tinha apropriado e inspirado nessa matéria ancestral. O rapaz ficou atarantado a olhar para mim, disse-me que a mãe era violinista, estava cá numa orquestra portuguesa e ele estudava piano. Contei-lhe que em Portugal também tínhamos um Bartok chamado Fernando Lopes-Graça, que investigou a nossa música tradicional com o Michel Giacometti e compôs peças maravilhosas a partir das nossas raízes. Deixei-o desenhar os prédios como queria, mas voltei a avisar que era difícil representá-los em perspectiva. Ele não se assustou, inventou prédios trapézios com janelas triangulares, elípticas ou semicirculares, uma cidade composta por formas irregulares, apesar de ser lento a fazer, sinal de inteligência e preguiça. Como a sua cidade era complexa, tive de lhe explicar como se representava com um ponto de fuga, deslocando-me à sua carteira, desenhando no meu bloco à mão levantada, assim ele viu como se unificava as partes num todo – mimetisando ou não, ele depois chegou lá no seu desenho e bem. Ele era um provocador nato, nunca produzia muito, mas o que fazia era excelente. Eu estimulava-o criando paralelos entre a música e as artes visuais, mantendo-o sempre debaixo de olho, porque distraía-se facilmente e era pouco amigo de trabalho. As professoras queixavam-se dele, achavam-no snobe, imagino as provocações que faria nas outras disciplinas. Dei apenas 3 meses de aulas àquela turma, fui-me embora antes do Natal, despedi-me deles cantando uma lieder de Mozart; ainda guardo uma fotocópia da cidade bartokiana desenhada por este romeno de 14 anos. Nunca mais nos vimos, mas acho que ele também não se esqueceu do nosso breve encontro.
Maria João
- Professora, eu não desenho prédios direitos, sou um modernista como o Bartok!
Estava à espera de tudo, menos isto: Bartok?! Contei-lhe que cantava num coro de câmara, onde já tinha interpretado as suas quatro canções eslovacas; e que admirava profundamente a obra de Bartok, achava extraordinário o levantamento que ele tinha feito com Zoltan Kodály da música tradicional na Europa central, de como se tinha apropriado e inspirado nessa matéria ancestral. O rapaz ficou atarantado a olhar para mim, disse-me que a mãe era violinista, estava cá numa orquestra portuguesa e ele estudava piano. Contei-lhe que em Portugal também tínhamos um Bartok chamado Fernando Lopes-Graça, que investigou a nossa música tradicional com o Michel Giacometti e compôs peças maravilhosas a partir das nossas raízes. Deixei-o desenhar os prédios como queria, mas voltei a avisar que era difícil representá-los em perspectiva. Ele não se assustou, inventou prédios trapézios com janelas triangulares, elípticas ou semicirculares, uma cidade composta por formas irregulares, apesar de ser lento a fazer, sinal de inteligência e preguiça. Como a sua cidade era complexa, tive de lhe explicar como se representava com um ponto de fuga, deslocando-me à sua carteira, desenhando no meu bloco à mão levantada, assim ele viu como se unificava as partes num todo – mimetisando ou não, ele depois chegou lá no seu desenho e bem. Ele era um provocador nato, nunca produzia muito, mas o que fazia era excelente. Eu estimulava-o criando paralelos entre a música e as artes visuais, mantendo-o sempre debaixo de olho, porque distraía-se facilmente e era pouco amigo de trabalho. As professoras queixavam-se dele, achavam-no snobe, imagino as provocações que faria nas outras disciplinas. Dei apenas 3 meses de aulas àquela turma, fui-me embora antes do Natal, despedi-me deles cantando uma lieder de Mozart; ainda guardo uma fotocópia da cidade bartokiana desenhada por este romeno de 14 anos. Nunca mais nos vimos, mas acho que ele também não se esqueceu do nosso breve encontro.
Maria João
8 Comments:
:) fragmento espectacular...
a minha pergunta não interfere na existência do meu sorriso presente, mas esta' fora de hipotese partilhar essa cidade bartokiana?
como e' bom aparecerem alunos/pessoas assim, inesperadamente!
bom fim de semana!
ka
Maria João, boa-noite e bom fim de semana.
deixei um prémio para o Insónia no meu blog. abraço, André
Ka_noz: obrigada, para partilhar o desenho desse aluno, teria de lhe pedir licença e eu nunca mais o vi, ele nunca soube que fiz uma fotocópia, sou uma platónica discreta, nem disse o seu nome no texto. Talvez se nos voltassemos a encontrar, ele agora já é adulto.
Gaf: boa noite e bom fim de semana!
benjamim: abraço insone.
Este comentário foi removido pelo autor.
E eu diria antes(e mais!): como é(ra) bom existirem (mais) profs assim!!!;-)
Boa recordação essa... Venham mais romenos e professoras assim!
Por acaso, fiz o liceu no O Rainha D. Amélia, onde tive a sorte de apanhar professores excepcionais. Esse romeno há-de-se lembrar de ti, certamente.
Boa semana!
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