ISENTO
De facto, Ruy, «é realmente uma desgraça ter nascido em Portugal. Sentimo-lo quando nos nasce um filho. Parte para a vida em desvantagem». De facto, Ruy, tudo isso me parece muito razoável, embora Portugal nada tenha que ver com isso. Temos boas praias, boas serras, temos pitéus de levar ninfas ao desespero e néctares de transformar deuses em energúmenos. Os nossos anjos, Ruy, andam todos muito equivocados. Ainda não perceberam que as estações pararam neste país, pararam num tempo que está dentro do sangue, que corre dentro do sangue, não de Portugal, que esse só tem veias de pedra, mas dos portugueses. De facto, partimos em desvantagem. Não por termos pouco espaço, mas por, sendo pouco o espaço, serem tão deploráveis aqueles que o ocupam. As contas são tuas: «Se toda a gente nos lesse, seriam nove milhões. Ora treze milhões nasciam há uns tempos por ano na China». Mas a China, Ruy, com tantos milhões, não há-de ser muito mais agradável do que Portugal. No outro dia vi um documentário sobre uma tribo nómada da Amazónia. Chamam-se Zo-é, se bem me lembro. Terão eles preocupações destas? O problema deles não é o espaço, Ruy. Nem o tempo. Muito menos não haver quem os leia. O problema deles é o nosso problema, ainda que o nosso problema não tenha árvores gigantescas, cascatas translúcidas, papagaios de mil cores e raízes do tamanho de casas. O problema deles é o nosso problema. Chama-se sobrevivência. Mas o nosso problema não tem tanta vegetação. O nosso problema tem relatórios, resmas de papel timbrado, tem paredes de cimento, dióxido de carbono, farmácias e hospitais, químicos, facturas, recibos verdes, contratos a prazo, trabalho temporário, ordenados mínimos, reformas, cemitérios de mármore. A nossa sobrevivência tem capas grossas, títulos em relevo, badanas douradas, textos de contracapa, prefácios, posfácios, introduções, notas de rodapé. E tem artigos nos jornais, títulos, muitos títulos, artigos, imensos artigos, tem articulistas, tem fazedores de opinião, a nossa sobrevivência tem muita opinião, e tem críticos, mesmo antes de ter caçadores, e tem analistas, mesmo antes de ter caça, e tem lombadas multicolores e gente que se queixa disso. De facto, Ruy, partimos em desvantagem. Afinal, nascemos em desinfectados hospitais, somos, durante a vida, controlados ao milímetro por inspecções periódicas, seguradoras, bancos de sangue, altas autoridades, fiscalizadores. E, ainda por cima, temos que refazer as contas: porque não há, na melhor e mais utópica das possibilidades, nove milhões predispostos à leitura de axiomas inúteis. Porque temos imensos escritores, escrevinhadores, escriturários, temos imensos editores, toda a gente a viver do ar, ou quase, porque ninguém paga a ninguém o trabalho de pegar numa caneta, assim como ninguém paga a ninguém o trabalho de viver. Temos saldos negativos, contas para pagar, taxas, impostos, assinaturas mensais e muita, mesmo muita, falta de respeito por quem cria e faz e se atira de cabeça e corpo e membros para o abismo do futuro. O nosso problema, ainda para mais, é termos depois de tudo que aturar a imbecilidade dos pobres de espírito, tão afoitos no anonimato, na especulação, no elogio podre de perfídia, insinuante, nas críticas vazias de conteúdo e cheias de inveja e de ódio e de cobiça e de comichão. Porque há sempre aqueles que, mordidos pelas melgas, em melgas se transformam. E não vêem para lá dos bolsos vazios, não vêem para lá das prateleiras dispersas, não vêem para lá dos quinze minutos que anseiam de abraços, citações, menções, medalhas, lembretes, foguetes, colunas, recortes de jornal. Os Zo-é, Ruy, até as mulheres partilham, entre eles o ciúme parece não existir, vivem numa espécie de território desnascido ainda antes de havermos caído em desgraça. Não perdem tempo a olhar o erro, a sonhar com o altar, a selar envelopes para concorrerem a prémios, não perdem tempo a admirar um inimaginável sucesso nem a pensar no que possa ser ou não ser o sucesso, pois para eles sucesso não mais há-de ser do que ter o que comer, mulher e crias para dar continuidade a uma forma de vida tão distante e tão viva e, por isso mesmo, tão ameaçada. Porque nós ameaçamos tudo o que vive, porque nós, irremediavelmente moribundos, ameaçamos tudo o que vive com o nosso desespero, a nossa desgraça, o nosso desalento, as nossas ilusões, as nossas utopias, os nossos deuses de barro, os nossos desaires, os nossos malogros, as nossas frustrações, a nossa indústria, a nossa divina economia. Vê bem, Ruy, como ainda antes de termos sido concebidos, já nos andamos todos a abortar uns aos outros. Vê bem, Ruy, e diz-me: se é desvantagem ter nascido em Portugal ou se, por outro lado, é antes desvantagem ter nascido português.
2 Comments:
Um post realista e afiado como um bisturi.Parabéns!
(uma letra torcada, em "absimo")
Agradecido.
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