10.4.08

ÓCULOS ESCUROS


Tão chocados, com tantos choques, que parecem galinhas chocadeiras, carrinhos de, uns contra os outros, chocados apenas porque é chocante ninguém se chocar. Eles não se chocam com a minha pobreza sentada à beira-mar, nem com o tempo que perco à espera de uma aberta ou, na melhora das hipóteses, de um raio que me leve daqui para sempre. Eles cacarejam como poedeiras, são Colombo incubado no seu paradoxo post-mortem e ouvi-los é como acreditar que do ovo mexido surgirá um pinto com asas, a penugem de uma gemada, claras em castelo republicano. Eles não se chocam com a precariedade dos salários, mas chocam-se com a precariedade das ementas. A infindável miséria de quem trabalha e cumpre não é chocante, mas não haver guardanapos sobre a mesa é deveras preocupante. Eles não se deixam chocar pela revolta de quem não tem como fugir a um miserável destino, pois eles são chocados pelo destino de quem não tem revolta. Quem pode ocupar-se da fome dos outros quando vive de dar fome à fome? Eles são o mais plausível argumento da nossa falta de esperança. Desvio os olhos do mar, concentro-me no monitor e observo-os atentamente: galos de crista aparada, madeixas cinzentas, a franja caindo sobre a testa luzidia, pós que disfarçam as rugas de quem se curva, faz a vénia e dança o aperto das mãos, os abraços camaradas, as pregas das gravatas, os botões de punho, fatos aprumados, condizentes com o modo cinzento das palavras. Tudo o que dizem é óbvio, tão óbvio que de igualmente anódino se torna bárbaro. E elas, muito mais pós-modernas na sua feminilidade natural, gesticulam ao ritmo das teorias uma cartilha de insuportáveis lugares comuns. Chamam a isto o futuro? Pode o futuro ser um apontamento moralista, um vestido de cores leves? Pode o futuro ser uma entusiasmada repetição do passado? Se isto é o futuro, digam-me qual o corredor do passado. Quero regressar a essa maresia, a esse lugar onde não haja futuro, não quero este futuro, quero desistir do futuro, quero voltar para trás e não mais olhar em frente, quero perder-me num eco fundo, no fundo ecóico de uma brancura silenciosa, sem teorias, sem ideias para a vida dos outros, sem políticas, livre de caminhos, percursos, carreiras, estações, livre de tudo o que insinue uma certa forma de vida certa. Prefiro a ergonomia dos incultos, a mendicidade, prefiro o analfabetismo dos avós, prefiro o Perdigoto escarrando as botas, o Cipriano saltando por cima da sombra, o Mimi adormecido nos caixotes do lixo, os barretes piolhentos do Pé-Descalço, as figuras pífias de um cão vadio. Prefiro adormecer sobre o ombro dos meus pais, mesmo crente de que eles jamais entenderão a minha angústia, tão ocupados que andam com o aniversário dos netos. Não quero esse futuro curvado dos bons fatos, restaurantes gourmet, férias mecânicas em hotéis de luxo. Prefiro acampar no mato bravo do insucesso e morrer para sempre esquecido. Não troco o sal do mar ao cloro das piscinas, não troco as massagens do vento ao spa incensado das fábricas do belo. O futuro não pode ser essa beleza de roupão, chinelos turcos e barbas de silicone. Se vos vejo assim nesse presente, se vos desconfio assim nesse futuro, que poderei eu ansiar senão a paz e o sossego de uma voluntária solidão?