UM PRIMADO ABSOLUTO
«Pôr a nu as quimeras, eis o programa dos cínicos. Incluído o que diz respeito ao desejo, ao prazer e às relaçõs sexuadas. Qual é o objectivo de Diógenes, de Crates e de Hiparquia? Acabar com a hipocrisia, a linguagem dupla, a moral moralista, o falso pudor, a dissimulação, a vergonha e outras variações sobre os temas, que se tornaram muito cristãos, da culpabilidade, da falta, do pecado, da recusa do corpo, do desprezo pela sensualidade e da aversão pela sexualidade. Não há nada de condenável num corpo sujeito à necessidade de alimento e de bebida. Então, porque é que, quando está dependente da pressão da libido, isso há-de ser um sinal de maldição, um traço de vergonha? A carne, os átomos, a matéria também são vítimas de desejos, de pulsões, de necessidades. A regra é satisfazê-los de uma forma tão desculpabilizada como o fazem os animais na natureza: a cultura pressupõe e propõe, segundo uma lógica ética, a obediência máxima às leis naturais. O materialismo equivale a uma lição cosmogónica na qual o bestiário serve de ensinamento eficaz, rápido e claro.
Os cínicos fazem o culto do sexo pago, das mulheres em trânsito, das histórias passageiras relacionadas com o prazer puro e simples. Antístenes admira-se de ser acusado de ter uma parceira efémera mas que lhe foi, contudo, de grande utilidade. Responde que não se olha com maus modos para o barco para o qual subimos e que, contudo, já serviu a muitos outros para atravessar o Mediterrâneo. A primeira libertina que aparece faz o trabalho que tem a ver com a sua função e com o contrato estabelecido, e pouco importam a sua beleza, a sua inteligência, a sua posição social ou a sua virgindade, todas essas quimeras tirânicas. Até poderia ser feia, estúpida, pobre e prostituta. A única coisa que interessa é a relação contratual, na qual o desejo, que está a ponto de ser sufocado e de transbordar, encontra oportunidade para se libertar numa relação estabelecida de comum acordo. O objectivo é a expansão do indivíduo. Não há nenhuma necessidade de, para tanto, disfarçar essa necessidade com arrulhos, declarações, atitudes ridículas, promessas que não se podem cumprir.
O gesto de Antístenes dá cabo das mitologias sociais que se alimentam de monogamia, de fidelidade, de eleição amorosa, seguidas do cortejo habitual de enganos, hipocrisia e ciumeira. Trata-se de libertar o desejo das amarras gregárias que o justificam exclusivamente em termos de uma sujeição vivida segundo fórmulas conformistas. A dissociação cínica radical afasta o desejo e o prazer do amor e separa claramente estes dois registos. Destruindo o sagrado, o religioso e o espiritual que estão associados ideologicamente à sexualidade, os filósofos de mochila e cajado laicizam o corpo e as relações, fazendo o culto da carne e do contrato, da matéria e da vontade mútua. Quando ouvem falar de amor, os materialistas cínicos sacam da espada - e desatam a rir, como qualquer bom discípulo de Demócrito.
Por que razões os desmistificadores reduzem o desejo às suas componentes atómicas? Por que é que o sábio permanece livre, ignora os entraves e conhece a felicidade de aceder a uma liberdade plena e inteira? É o corpo ao serviço da ética. Nas filosofias materialistas, a liberdade tem um primado absoluto. Daí a necessidade de ultrapassar as alienações, de recuperar uma autonomia eventualmente perdida. Marx não se engana quando dedica a sua tese de doutoramento à diferença entre os filósofos da natureza, de Demócrito a Epicuro. A epistemologia atomista visa uma moral da liberdade, da apropriação ou da reapropriação de si. Nesta lógica, o desejo é uma ameça, estendendo uma sombra sobre as possibilidades de independência do indivíduo.»
Michel Onfray, Teoria do Corpo Amoroso, trad. Fernando Caetano, pp. 63-64, Temas e Debates, Lisboa, 2001.
4 Comments:
Michel Onfray é um prosador admirável, que perde um pouco na tradução. Nunca li este livro dele, mas lá chegarei, com tempo.
Tudo se faz com tempo.
É formidável, este livro!
Pois é.
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