4.9.08

“UMA EXISTÊNCIA DE PAPEL”

Atolam-nos a caixa postal com toneladas de papel, o paraíso anunciado em cores infernais. Deus começou por escrever na pedra. O homem, fraco de músculo, optou por imprimir a voz de Deus em folhas muito finas, vegetais, de um livro imenso que ao longo de séculos foi adquirindo o estatuto de sagrado. Há muitos livros imensamente sagrados. As boas livrarias deviam reservar um espaço nas estantes só para esses livros, colocá-los entre as centenas de milhares de títulos arrastados para o esquecimento. Era justo e fazia sentido. Quase todos os livros partem directamente da vida precária que levam sobre a Terra para a guilhotina. Outros andam aos trambolhões, de mão em mão, de boca em boca, comidos pelo tempo como se fossem seres humanos, pendulares, buscando um equilíbrio impossível, atravessados pelo fogo e caídos na má sorte das cinzas. Fôssemos antes nós como os livros são a nossa imagem: inúteis, porque invendáveis, seríamos imediatamente enviados para a guilhotina. Há máquinas envelopadoras, máquinas de abrir cartas e destruir recados, há máquinas de dobrar papel e outras para o reciclar. Houvesse máquinas para fazer tudo isso ao nosso corpo. Passamos pela vida como quem rabisca historietas na carne, como quem desenha extensos romances no sangue. Precisávamos de máquinas que nos guilhotinassem o sangue e de outras que nos dobrassem os ossos e de outras que nos enviassem para bem longe com a mesma indiferença que dedicamos às toneladas de papel todas as manhãs distribuídas pelas caixas postal. Livros sagrados, sagrados livros. Esquecidos nas estantes inexistentes das livrarias, aí esquecidos, vegetando, porque para eles não descai a mão das nossas necessidades. O olho pende-nos para a chama, somos mais energúmenos que querubins. Não fosse assim, o nosso arquivo de factos não estaria tão manchado de sangue. As doutrinas que advogavam a pureza da espécie humana foram traídas pelo objecto da sua própria devoção. Muito se escreveu sobre o bem ou o mal essencial, fazendo essencialmente bem ou mal a um mundo imenso que vive para lá desta necessidade absurda de perpetuar os dilemas de sempre. Não somos bons nem maus, somos tudo isso num corpo que um dia se amarrotará como quem amarrota a página manchada pelo erro, pelo insucesso, pelas falhas. E depois, atirados para uma cova como quem atira papéis para um cesto, seremos reciclados. Ao contrário do papel, poderíamos ser nós a escrever a nossa própria história. Resta-nos algum tempo para essa empresa, entre a geração e a morte podemos ser nós a escrever a nossa história. Podemos não, poderíamos. Não fosse o caso de sermos já tão-somente um papel amarrotado que a natureza mandou para o mundo.






Em sentido descendente, as imagens são da autoria John Latham, Michelangelo Pistoletto, Dennis Oppenheim e Kirby Doyle.

2 Comments:

At 2:41 da tarde, Blogger Inês Ramos said...

Ah! Até que enfim! Bom regresso! :-)

 
At 10:55 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Porra, estava a ficar preocupado.

 

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