1.3.09

Fragmento #74 - Encontro na charneca

Para o meu irmão Joaquim

Era um dia que já ia longo, onde tive de voltar a pé para casa, caminhando pela estrada de terra batida dentro do montado que me era tão familiar, as árvores repetiam-se espaçadamente, em cada passo ritmado. Reconhecia cada sobreiro em meu redor, sabia em que anos foram despidos e como voltaram a vestir-se com o tempo; desde que me conheço que estou nas tiragens de cortiça destas terras, quando era miúdo davam-me a árdua tarefa de marcar com tinta branca a data da tiragem em cada um deles; os sobreiros aparentemente iguais tornaram-se assim uma sucessão de números, com espaços invisíveis de nove anos em cada tronco, que apenas o meu interior reconhece. Voltava, então, àquele montado para fazer recolhas de cortiça e as analisar no laboratório, fui na minha 4L; estava a viver numa aldeia próxima, era já um especialista na área florestal, todos os que me conheciam de pequeno começaram a tratar por Sr. Engenheiro e achavam estranho não ter comprado ainda um jipe; eu deslocava-me sempre na minha carrinha velhota, que mais uma vez ficou atascada, só no dia seguinte a poderia vir buscar com a ajuda de um vizinho, o material recolhido estava guardado no seu interior.
Ao anoitecer, o verde seco das copas tornou-se mais intenso, deixando a terra e o meu caminho para segundo plano, esfumando-o até desaparecer; continuei, no entanto, a sentir o chão debaixo dos meus pés em movimento, entre duas bermas que se pressentiam no escuro. O céu estrelado já tinha iniciado o seu reinado, como se a terra de noite diminuísse de propósito, só para me dizer que sou um quase-nada, um pequeno ponto que se move no espaço, uma poeira das estrelas que aqui caiu. Os sobreiros tornaram-se silhuetas no azul-escuro, percorria-os ouvindo o movimento das suas copas em diálogo com os grilos no vento, a passagem no tempo tornou-se mais intensa na noite. Tirei então a lanterna do bolso para iluminar o caminho, a sua pequena luz dizia-me onde estava, comprovou que já faltava pouco para chegar, “é já ali agora” como dizem por cá; prossegui, seguindo a lanterna que me indicava as bermas da estrada, assobiando a primeira melodia que me veio à cabeça; depois da curva seguia-se a lomba, comecei a subir em direcção à charneca, quando chegasse ao topo poderia ver ao longe as luzes das casas onde os granitos e os arbustos me iriam levar; avancei, repeti a mesma melodia, a paisagem no escuro também era minimal, o meu assobio apenas servia para me assinalar no vento, acompanhando os grilos e a vegetação, agora sem árvores, as folhas dos arbustos assim sabiam que estava de passagem. Depois da lomba, já dentro da charneca, senti uma presença em movimento no sentido contrário, parecia vir lá debaixo. Um enorme arrepio de frio percorreu o meu corpo e calei-me. O vulto aproximava-se do outro lado da estrada, ainda distante, eu detive-me, não me conseguia mexer. O vulto parecia uma mulher. Há quanto tempo ela estava a ouvir o meu assobio? Retomei o meu passo hesitante, ela não se deteve, resolvi prosseguir assobiando, mas não me saiu nenhum som; olhei o foco de luz no chão em movimento, levantei então os olhos e a lanterna para a desconhecida, vinha de negro no escuro sem hesitar, tinha uma silhueta elegante, saia comprida e larga, um lenço cobria-lhe os cabelos; por fim, olhou-me de lado quando se aproximou, fuzilou-me com um brilho que nunca tinha visto, como se me cortasse em duas metades. Eu parei novamente e disse boa-noite; ela continuou a fixar-me de soslaio, não me respondeu, passou assim por mim, prosseguindo em silêncio o seu caminho na noite.

Maria João