8.6.07

OS MERDAS

Na cidade onde eu nasci havia vários tipos de merdas. Havia as merdas que todos sabiam, as que não eram segredo para ninguém, embora poucos ousassem afirmá-las à boca alta. Isto porque normalmente essas merdas eram sobre uns merdas que detestavam ser visados no nevoeiro da vozearia, tinham um estatuto a preservar, um lugar reservado na família. Estes merdas tinham a sua importância, a sua influência, logo convinha não espalhar pelas ruas a fragrância que emanavam quando abriam as portas da boca para um cumprimento cínico. Importa esclarecer que as merdas que ficavam segredadas eram merdas que, bem vistas, não atingiam apenas os merdas visados como também os que as traziam entaladas no gasganete. O que espanta é como sendo merdas de todos sabidas continuavam por todos bichanadas, precavidamente bichanadas, zurzidas apenas no ringue dos álcoois, no recato das famílias, à luz de vela. Isto só prova a existência de uma espécie de hierarquia de gravidade nas merdas que se sabem. É que uma coisa é saberem-se merdas pelos cantos da orelha, de ouvido, outra coisa é serem elas cuspidas pela ponta dos dedos, assim como quem aponta, acusa, prova e dá a provar as merdas que diz saber mesmo quando saber significa desconfiar. Pouco mudou desses tempos para cá, o que me obriga a constatar estar a merda na mesma. Ainda que agora seja muito mais fácil propagar fragrâncias, muitas e mais sofisticadas são também as ventoinhas que protegem os merdas das merdas por eles obradas. O problema é que, como sabemos, quem caga contra as ventoinhas arrisca-se a levar em cima com alguns nacos do excremento. Mas isto parece não constituir problema para muitos, tão habituados que estão a chafurdar na dita. Como sói dizer-se, num mundo onde só cheira a estrume ninguém pode descortinar o odor dos roseirais. Há, no entanto, uma grande diferença. Os merdas andam mascarados, já não cochicham mas andam mascarados, cheios de base na venta, maquilhados até ao tutano, besuntados de mofo. Julgam-se uns heróis lá no bairro dos seus escritórios, nem os gatos domésticos que trazem por casa os admiram, mas eles sonham, anseiam pelo ronronar felino do assombro. Se os gatos não miam, logo os pontapeiam, logo os chutam para outras bordas. Resta-lhes o canto de alguns periquitos enjaulados, meticulosamente servidos a horas com a alpista dos louvores. No fundo, deixaram tão-somente de serem merdas para passarem a ser merdosos. É isso que os distingue dos demais que ficaram na cidade onde eu nasci.

8 Comments:

At 12:43 da manhã, Blogger o Reverso said...

é a primeira vez que aqui entro:
admiro profundamente qurem sabre escrever: comeste tema eu não conseguiria alinhavar duas linhas.

 
At 1:57 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Esta é forte ó Henrique!
(sou um piriquito?)
jr

 
At 8:19 da tarde, Blogger Unknown said...

é por não gostar de merdas que gosto de nietzche e de visitar o teu blog.
Jorge GP
loucomotiva.blog.com

 
At 2:16 da tarde, Blogger Pedro Correia said...

Excelente prosa. Para não variar.

 
At 9:49 da tarde, Blogger Unknown said...

Olá Henrique. Gostaria de te pedir autorização postar este teu texto na próxima segunda-feira no segunda-furia.blog.com. Se permitires gostaria que me o confirmasses por email (www@loucomotiva.com). Obrigado.

 
At 11:42 da tarde, Anonymous Anónimo said...

triliti, obrigado.

joaquim, piu-piu.

jorge, claro que podes. como não sei do teu mail, respondo-te aqui.

pedro, não exagere. :)

 
At 1:12 da manhã, Blogger Unknown said...

Ok, mensagem recebido ;) Grato uma vez mais pela tua disponibilidade.

 
At 10:16 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Mais merda menos merda, o companheiro fica sabendo que de merdas está o país cheio... ou seja, não coarcte a merda onde nasceu mas distribuir pelo país é concerteza GENEROSO

 

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