O meu primeiro encontro com a voz de Daniel Filipe
Isto já se passou há mais de dez anos. Não tinha eu, portanto, vinte primaveras concluídas. De um encontro com um amigo, como tantos outros encontros, surgiu, no entremeio da conversa circunstancial, a partilha de leituras, gostos literários, obsessões. Calhou que nesse dia o meu amigo me presenteasse com uma cassete de áudio, uma daquelas cassetes BASF que já não se encontram nem nas lojas dos chineses, com um alinhamento que trago à memória por razões que vão-se tornar evidentes. O Lado B era composto por dois poemas de Vitorino Nemésio, do livro Limite de Idade, mais quatro de Alexandre O’Neill, do livro Entre a Cortina e a Vidraça, e um outro de David Mourão-Ferreira. Todos esses poemas eram ditos pela voz dos próprios autores. O Lado A da cassete continha três poemas de Grito Plural, de José Gomes Ferreira, o Monólogo de Orfeu e O Dia da Criação, de Vinicius de Moraes, mais a Defesa do Poeta, de Natália Correia, todos eles declamados igualmente pelos respectivos autores. No entanto, o que importa aqui recordar não são bem esses magníficos momentos de poesia dita a alta voz. É que a abertura desse Lado A dava-se com dois actos poéticos que foram o meu primeiro encontro com a voz do poeta cabo-verdiano Daniel Filipe: A Invenção do Amor, dito pelo próprio, e o primeiro poema da sequência intitulada Canto e Lamentação na Cidade Ocupada, pela voz dramática de um saudoso Mário Viegas. Passados estes anos, interpreto esse primeiro encontro com a voz de um poeta, proporcionado por um encontro com os gestos de uma amigo, como prenunciador da relação que vim a desenvolver com a poesia de Daniel Filipe. Passo a explicar. Dos amigos a gente não espera obrigações, a gente espera apenas disponibilidade. Aos amigos, pelo menos eu encaro os meus desse modo, não se fazem exigências que não sejam as de, isso mesmo, continuarem nossos amigos. Pessoalmente, sinto uma enorme dificuldade em compreender a ideia de tipos inferiores e superiores de amizade. Reconheço no desejo de bem para o outro, sem outras motivações senão as encerradas no próprio acto de desejar, uma possível conceptualização da amizade. Isto porque a amizade não pode ser uma espécie de panela de pressão onde misturamos certos ingredientes com vista à obtenção de um determinado efeito. A amizade não é um mimo momentâneo, um aconchego servido como quem serve aperitivos. A amizade tem de ser mais do que o prazer de nos fazermos ouvir ou de nos sabermos ouvidos. A amizade só faz sentido se for um dever sem compromisso, um sentimento espontâneo e desinteressado. Não que a amizade proceda do desinteresse, mas encontra aí a sua razão mais profunda. É quando encontramos os outros dentro de nós, metamorfoseados num sentimento de querer bem, que a amizade deslumbra. Porque a amizade, quando transformada numa obrigação, facilmente se confunde com comércio de afectos, negócio ou especulação sentimental. Algo muito semelhante sinto eu por alguns poemas. A Invenção do Amor, de Daniel Filipe, é um desses poemas pelos quais nutro uma profunda amizade. Julgo mesmo ser mútuo tal sentimento, pois sempre que necessito lá está o poema a marcar presença, disponível como um amigo, pronto para me dar um pouco desse consolo que a vida na cidade nos vai permutando quotidianamente. Eu podia vir para aqui falar da poesia de Daniel Filipe como uma exímia manifestação da poesia de intervenção (como se toda e qualquer poesia o não fosse), da poesia que viu no amor uma arma, a mais bela das coisas odiadas pelo poder, o poder que odeia o amor tanto (ou mais) quanto odeia todas as coisas belas. Recentemente, num filme sobre o poeta cubano Reynaldo Arenas, o realizador e pintor norte-americano Julian Schnabel passou-nos exactamente a mesma mensagem: os ditadores odeiam tudo o que é belo, o belo ameaça-os como nenhuma outra coisa e, por isso mesmo, o amor, enquanto a mais bela e indomável das matérias humanas, é temível. É por isso que «é preciso ir mais longe / destruir para sempre o pecado da infância / erguer muros de prisão em círculos fechados / impor a violência a tirania o ódio». Perdoem-me os teóricos, desculpem-me os académicos, mas à voz de Daniel Filipe (n. 1925 – f. 1964) eu não vou exigir mais que aquilo que ela já me deu: a reinvenção da amizade através d' A Invenção do Amor.
Henrique Manuel Bento Fialho
Em resposta a uma solicitação que me chegou por e-mail.
Henrique Manuel Bento Fialho
Em resposta a uma solicitação que me chegou por e-mail.
4 Comments:
concordo plenamente com o que afirmas neste post em relação à amizade: a amizade não pode ser uma obrigação porque se torna um atrofio.
Maria João
e aqui se resenrola um excelente texto sobre amizade e afectos. partilho-o por inteiro. Obrigada pela partilha (partilho; partilha, ai, ai...). Bjs de luz e paz
Gralha: «desenrola» em vez de resenrola
Obrigado pelos vossos comentários.
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