Alegadamente
«Os portugueses são um povo do futebol.» Tenho tentado recordar-me da autoria de tão arguta definição, porém não consigo. A memória anda gorada, sinal de tempos em que tudo agoira a memória. Talvez por serem um povo do futebol, os portugueses são um povo de memórias agoiradas. Rectifico: não sei se tal atributo é exclusivo dos portugueses. Eu até sou dos portugueses que crê piamente na impossível objectivação dos portugueses. O que sei é que temos, vamos tendo, as memórias agoiradas. Deve ser por isso, só pode ser por isso, que ultimamente tudo o que é notícia se fica por ser alegadamente notícia. Qualquer dia deixamos de ser um povo do futebol para passarmos a ser alegadamente um povo. Mas que raio será isso do alegadamente? Alegar significa, segundo os dicionários cá de casa, «citar – e passo a citar – um facto ou razão para prova». Serei apenas eu a notar algo de errado aqui? É que o alegadamente aparece amiúde utilizado no sentido de possivelmente, hipoteticamente, provavelmente, presumivelmente. É a memória que nos anda agoirada, somos um povo do futebol. Somos o povo do clube dos “alegadamentes”. Alegadamente um sem-abrigo foi assassinado, alegadamente era um sem-abrigo travesti, alegadamente passou a ser um sem-abrigo travesti toxicodependente, alegadamente um sem-abrigo travesti toxicodependente transexual, alegadamente prostituto, alegadamente seropositivo, alegadamente assassinado, alegadamente homem, alegadamente mulher, alegadamente: cidadão brasileiro, imigrante, de nome Gisberto, conhecido por Gis. Tenho uma teoria acerca do assunto. Os portugueses, enquanto povo do futebol, são um povo tipicamente clubista. Temos uma grande dificuldade em pensar pela nossa própria cabeça, pelo que preferimos – reparem que me faço incluir na generalização, não vá alegadamente ferir susceptibilidades – pensar pela cabeça dos clubes dos quais fazemos parte. Depois é no que dá. Passa a ser tudo alegadamente. Não é por acaso, por exemplo, que os portugueses não foram participativos aquando dos referendos a que foram convocados. A razão é esta: os clubes estavam divididos no seu âmago, fragmentados, o que levou a que os portugueses ficassem sem saber o que pensar. Isto porque os portugueses só se manifestam quando sabem que as suas manifestações reflectirão as perspectivas dos demais membros do clube. É a chamada “clubite”. Já não há heróis, tipos solitários a pensar pela sua própria cabeça. Os poetas morreram, estão todos mortos e enterrados. O português é aquele tipo que nasceu para ser mandado, não nasceu para ser livre, para pensar pela sua própria cabeça, nasceu para fazer o que lhe dizem. Somos um sucesso tremendo na estranja. Não é o que se diz? O alegadamente vem desta fadada prática. Não há nada a fazer. Quem estará por aí disposto a remar contra a maré? A ir contra os demais? Quem se quer armar em herói? Haverá por aí alguém que alegadamente queira correr o risco de um discurso assertivo? Ou preferiremos todos, quais “ovelhinhas” de rebanho, continuar a seguir a marcha do clube? Restarão ovelhas negras? Alegadamente, diz que…
3 Comments:
O presente post parece-me um exemplo da possibilidade de um discurso assertivo por estas bandas...
Ser assertivo num blogue é como pregar no deserto. A rebanhada gosta que os outros pensem por ela. Ouvi dizer que, alegadamente... a velha história do país do faz-de-conta.
Agradeço os comentários. Assertivamente.
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