5.5.06

Canção do monstro

(Eros vendo-se num vídeo amador feito em férias no Algarve)
Pudesse eu ser
não esse que veio
o que chegou
mas outro.
O que não veio
nem nunca chegou
o que ficou sempre de fora
para lá de todas as fronteiras
o que mesmo quando foi esperado
festejado, desejado, aclamado,
jamais reclamou o seu regresso.
O que partiu de vez
o que cerrou os dentes
e se fez frio e cortante
como a lâmina
o que ficou além de todo o apelo
perdido na noite
entre o que era mais baixo.
O que se perdeu e se esqueceu
de vez.
O que no meio do seu coração mais fundo
e mais secreto
guardou só o que lhe era essencial.
Esse que não se viu
ou que – se alguma vez foi visto –
tinha o rosto esculpido
como a pedra.
O que tanta estranheza suscitou
no seu passar abrupto
que de o enfrentar se guardaram
baixos e em recato
todos os olhares.

Bernardo Pinto de Almeida

Bernardo Pinto de Almeida nasceu no Porto em 1954. Poeta, crítico de arte e literatura, professor de História e Teoria da Arte na Faculdade de Belas Artes no Porto, é autor de extensa obra ensaística no âmbito das artes visuais. Começou a publicar poesia nos anos 80, estreando-se com o livro Escalas (1981). Ainda na década de 1980, publicou As Sublimes Súplicas (1988). Seguiu-se um longo interregno, para, em 2002, retomar a actividade de poeta com os livros Sem Título, E outros Poemas e Depois que tudo recebeu o nome de luz ou de noite.