extraordinário, sábio e vulcânico texto:
POEMA ACOMPANHADO DE PREFÁCIO
Um muro incolor
A felicidade e a infelicidade (e o medo das duas) andam comigo desde que me lembro de escrever. Só muito depois do horror e do contentamento, da mortalidade e do vazio, só muito depois da queda na minha biografia, nos meus desaires e na minha inteireza, me dei conta da outra importância, que já estava envolvida em todos os meus desejos: os lados expressivos da prosódia, as exigências sentimentais dos ritmos, o ardil das técnicas que serviam para figurar os sentidos e o seu sentido e, até, o seu sem sentido.
Talvez por isto, fiquei sempre muito surpreso com os especulativos do em redor da poesia: como conseguiam ser tão densos e tão inteligentes acerca de tantos pormenores impensáveis para mim; e para mim indiferentes ou risíveis, sobretudo inteiramente desnecessários. Nada daquilo tinha (e tem) um valor de aplicação. Não seriam capazes nunca de me dar mão para ler e contar. Mas continuaram sempre a causar-me admiração e espanto, tal como me seduzem as carapaças trôpegas das tartarugas, o labor imbecil das abelhas e o descaramento mal cheiroso dos cães caseiros. É uma questão de mestria incapaz de obra; apenas supostamente atenta a essa outra mestria, que é um trabalho indiferente, nas obras maiores. (Nas suas boas intenções e nas dos que neles crêem está a propliferação de prensado mole a que chamamos a literatura e muito do seu ridículo e do seu desgosto.)
Por isso, nunca me seduziu prioritariamente o artifício que não pode deixar de ser a poesia. Foi melhor não o assumir sequer como barreira, que ficasse para aí, já que não podia deixar de ser. Dificilmente consigo gostar dele a sobrepor-se em mim ou noutro qualquer autor, como uma espécie de erudição sem estrutura, um susto sem mãos em noite escura tocando sem se saber de onde. Sinto que a poesia que principia por ser assim é um artefacto de aulas, seminários, conferências, essas situações malsãs por onde o humano hoje se entretém com a literatura. Melhor dizendo, com o seu uso empresarial.
Eu ligo sobremaneira a poesia a esta outra coisa: ainda não estou a sofrer.
Ou, já não estou a sofrer.
Se estiver imerso nos padecimentos, (os da alegria, os da paixão, os da doença, os da ansiedade), não consigo escrever. O tormento, a sua ameaça e a sua cvonsciência - não a sua efectiva presença e concretização - move a minha transpiração de palavras naquilo a que podemos chamar versos.
Por outro lado preciso da ideia de partilha e da crença na ajuda, por mais irreais e vãs que sempre sejam. Não é conforto ou alívio, é apenas a confirmação (de mim a mim) de que pode haver a seguir, num tempo remoto, um entendimento, um encontro extremo, fora de mim, com um idêntico, embora sem o encontro real.
O pressuposto de encontro, da partilha, da necessidade intrínseca da dádiva na vida - essa que não se sabe a quem damos ou de quem recebemos e que está num poema - é o impulso prioritário para aquilo que mais vitalmente me faz transpor para as palavras. O alfabeto dos versos é capaz de construir um intermediário de flagelo, em mim que o pressinto, em alguém que está atento à sua chegada, a todos que sempre o viveremos.
Eu sei, repito, que tudo isto tem de ser enquanto não sofro ou depois de deixar de sofrer. Enquanto sou apenas veículo da imaginação dessa anomalia. Sempre que me encontrei imerso na realidade daquilo a que chamamos a dor, nunca fui capaz de escrita. Suponho mesmo que, do centro real de dor, o que se verbaliza é excessivamente patético para funcionar senão como suporte votivo. Antes - pela imaginação -, depois - pela evocação -, a felicidade perigosa ou a desgraça irremediável podem ser isso a que Goethe chamou a transformação do sofrimento em obra. Mas só antes, mas talvez só depois. O resto é mero trabalho da morte e a morte é a única inimiga certa da arte, embora seja a sua melhor conselheira.
A simultaneidade do desastre e da criação não consigo discerni-la. Mas sei que sem uma intensidade a caminho da sua própria extinção (insisto, a alegria, a depressão, o pânico, a doença, a paixão, um sem fim de enumerações aparentemente contraditórias), embora num outro tempo que não o do jugulamento, a minha poesia não existiria. E isso por o momento puro do pathos pessoal ser um tempo intransubstanciável, ser o mero esmagamento das palavras pelo absoluto além da linguagem, o reino do sem sentido para os sentidos, o caos improdutor.
A arte é sempre uma experiência da arte, um egoísmo em estado imaginante. É sempre da sua própria poesia que um poeta pode falar ou acaba por falar quando de poesia ou de qualquer outra arte fala. Sobretudo se o faz à altura de uma intensidade perceptível. Este limite, - que muitos julgam não existir e por isso tanto especulam por generalização -, é o único lugar de palavras donde posso partir e a que posso pretender chegar. E o que fala para mim nesse lugar é ainda, de um modo último, a prova ausente da partilha, a esperança sem aparecimento da ajuda. É a matéria da realidade, das realidades, a sobrefigurar-se em nós por crermos que haverá um semelhante. Um, como nós.
Este ofício de uma hora idêntica que é sem momento simultâneo e até quem sabe, sem ocorrência, faz-me o aparecimento dos versos em horas fora de qualquer cálculo. E eles são para cada um daqueles que, irreconhecível, poderá como eu desejo encontrar-me num instante em que a vida o esteja a perder, por um excesso de rasgão, por uma das tantas coisas pelas quais a vida se perde de nós.
Gostaria de poder acreditar que também aqueles que padecem da cintilação do corpo gostam de se encontrar na plenitude das palavras de outrem. Tal como os que padecem a efusão daquilo a que, para encurtar razões, chamo alma é noutra voz que muitas vezes procuram identificar uma ressonância. Tal como os que padecem a aniquilação íntima mais inconfessável podem conferir-se na desarmonia em que desagua o jogo falso e inócuo em lume do mais vivo que lhes leva a identidade da arte.
Quando escrevo, o meu egoísmo imagina, o meu organismo obriga-me e até o desalento provém de um humor que é o de conseguir dar voz ao que vem de mim. Mas esta ausência de liberdade é um gesto que quer tocar em alguém. Essa pessoa que me lerá e de quem eu gostaria de ser, nos versos, uma confirmação de vida, sua e minha, nessa obliquidade com que ele e ela e eu nos prendemos a um mundo. De quem eu gostaria de ser, em suma, o amante ideal.
Escrevo por causa da realidade, desta realidade. Aquela que os sentidos me dizem ser o mundo e me permitem adivinhar que será o mundo. Escrevo porque os meus sentidos são um sentimento que sofre a caminho da amargura ou do esplendor de alguém. A realidade e o sofrimento são os motivos. A imaginação anseia por eles. Mas antes da sua chegada; e depois da sua partida. E tudo isto por causa da morte. Da minha. Da tua que me vieste ler.
Sei que só chegarei, integralmente, a alguém da minha língua, o português hoje falado aqui; deste universo muito reduzido onde me movo é que pode chegar o conjunto dos que procuro que cheguem. E parece muito vasto este nada de espaço e de tempo. Mas, entre a imensidade de que nem sequer sou capaz de ter uma visão, uma escassa quantidade qualquer será quase a totalidade dos mundos. Penso que sem o desejo deste mútuo comprazimento a poesia não tem razão de ser. E porque não cessa de ter razão, esta razão de ser é possível de atingir.
Foi lamentável a perda de público para a poesia. A arte mais pública ainda há duzentos anos atrás tornou-se uma espécie de cadáver dependurado ao pescoço do nosso tempo, em parte por culpa dos próprios poetas a partir do monaquismo modernista, em parte por culpa do consumismo que tudo teatraliza para o social, em parte pelos biombos da verbiagem supostamente necessária para chegar aos poemas.
A poesia é uma actividade trans-acidental. Tem de chegar ao incidente dos outros sem qualquer transcendência entreposta. Num acto de boas-vindas a um lugar muitas vezes insuportável, mas onde sempre já está alguém que o conseguiu suportar. Onde já estão muitos, em silêncio, a escutar um dizer inaudível e que se distingue tão bem. E há um afago.
Sou eu que tenho de conseguir vencer todos os obstáculos para chegar a alguém; não é ninguém que tem de encaminhar-se a contra-gosto para mim, obrigado pelos funcionários que tratam destes assuntos da divulgação literária. A poesia não é uma actividade essencial, apenas pode aspirar a tornar-se uma actividade essencial. E isso depende do que eu conseguir, além de todos os simplismos, de todas as demagogias, mas sem perder de vista que pretendo atingir alguém, que pretendo trazer alguém para dentro da monstruosa crepitação do que consegui. Com que palavras? Ouço-me às vezes responder, depois de ter lido e amado tantos poetas, e um pouco envergonhado por tudo quanto tive de esquecer que mais ou menos sei: se repararmos bem, depois de alguns nexos a que temos de nos habituar, com o mesmo intuito de palavras com que compramos pão. Sem inúteis complexidades, sobretudo sem inúteis banalidades.
Também eu, às vezes, imagino os meus leitores. E o que vejo primeiro é a traição. Depois, estou pronto para tudo. Embora consiga vislumbrar uma névoa de alguém a quem consegui diminuir a inércia do riso ou a pedra das lágrimas. Tudo coisas fundamentais mas, se pensarmos melhor, sem importância nenhuma e apenas de valor para os momentos secundários. Os outros, (aqueles em que tudo quanto somos precisa só de nós e só a nós tem), nesses, a arte, a poesia, os versos, nada lá irão - esta mágoa é irremediável - fazer.
GAZE
À foz do patamar do bloco inoculado
hei-de vir dia após dia até levar-te.
Só a maca sossega cada incauto fardo
no auto sem fé da enfermaria à parte.
Do hospital telefonaram. Tinhas alta.
Sei afinal que voltas porque já não voltas.
Um féretro em riso, tua voz assalta
a falta dos meus braços, estas vãs escoltas.
A ronda dos dedos com luva protectora
massaja os teus tendões e neles se demora
esse prazo da sonda em que te sei vivo.
E quando a febre, corpo findo, esmorecer
talvez um rés de amor possamos acender
no bunker impotente do preservativo.
hei-de vir dia após dia até levar-te.
Só a maca sossega cada incauto fardo
no auto sem fé da enfermaria à parte.
Do hospital telefonaram. Tinhas alta.
Sei afinal que voltas porque já não voltas.
Um féretro em riso, tua voz assalta
a falta dos meus braços, estas vãs escoltas.
A ronda dos dedos com luva protectora
massaja os teus tendões e neles se demora
esse prazo da sonda em que te sei vivo.
E quando a febre, corpo findo, esmorecer
talvez um rés de amor possamos acender
no bunker impotente do preservativo.
MAGALHÃES, Joaquim Manuel, Hifen-Cadernos de Poesia n.º8, Porto 1994, p.63/66
Direcção: Inês Lourenço
Arranjo gráfico: Jorge Figueira
7 Comments:
N tem nada a ver com o texto que, obliquamente lido, me pareceu de muito interesse. Mas para te dizer q acabo de ter uma "experiência de sobreposição": vim para aqui a ouvir o "All Tomorrow's Parties", e de repente casou-se com o teu "I'll be Your Mirror". Saudações revolucionárias.
Gostei de ler.
dama, eis uma experiência limite.
hfm, eu também.
Henrique,
Passei aqui e reparei.
Apesar de ser um texto com 13 anos, que ainda não vi publicado em mais lado nenhum, é de uma flagrante actualidade. E os 3 ou 4 leitores de que falo, incluia-o a si.
Vi.
Muito agradecido.
É, sem dúvida, um texto muito bom.
Só discordo de um pequeno pormenor. Tão pormenor que não interessa.
Abaixo o Papá Magalhães, mai-los seus pigmeus(manuel de freitas, pedro mexia, joão luís barreto guimarães,carlos luís bessa, josé ricardo-nunes, josé miguel silva, enfim todos os poetas do mictório)
isto n tem nada dem jeito
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