IVG # 3
Rui Tavares desmonta, com implacável mestria, um artiguelho publicado no Público onde alguém defende a utilização de imagens chocantes na campanha para o referendo sobre a IVG. A coisa é posta nestes termos: «Esconder, fazer evaporar a vítima do crime, é tão importante que se faz tabu de mostrar as técnicas do aborto e os restos mortais do embrião, do feto abortado.» Já agora mostrem-se também as mulheres, mostre-se, em grande plano, o estado em que ficam quando a coisa corre mal no vão de escada. Mostrem-se-lhes as partes, as pernas abertas, os úteros. Mostre-se tudo, mesmo tudo, como são enxovalhadas por uma lei injusta. E mostrem-se as crianças daquelas que foram obrigadas a parir, a quem não foi dado o direito de decidir sobre uma gravidez que lhes aconteceu. Mostrem-se essas crianças ranhosas, fanhosas, abandonadas, ao deus dará. Mostre-se tudo. Mostrem-se os fetos. Não importa que fetos, se mal formados, se de gravidezes forçadas. Que importa? Mostrem-se os fetos arrancados aos ventres de suas diabólicas mães, mulheres enjeitadas, assassinas, infanticidas, mesmo se violadas. Mostre-se tudo, chape-se com tudo na fronha destes articulistas, punheteiros de articulistas, esfreguem-se os fetos nas trombas destes opinion makers. Que abortos? Feitos aonde? Que fetos, de que abortos? Legais? Ilegais? Previstos na lei? Que importa! Uma mulher é violada e engravida. Aborta. A lei deixa, a sociedade não reclama. Mostre-se o feto. Que interessa se foi violada? É um feto. Não é menos feto por ter sido concebido à força. Ou é? Se o filho desse articulista tiver um acidente, se a cabeça se lhe esmagar contra o volante, mostre-se-lhe o filho. Mostre-se tudo. Previna-se a morte com a morte. Mostrem-se as vítimas da fome, as vítimas da guerra, o soldado esventrado, a criança cravada de estilhaços, as pernas e os braços espalhados pelo chão, as cabeças catanadas, apodrecendo a céu aberto, enquanto os soldados registam o momento ao som dos AC/DC. Mostre-se tudo. Sejamos pornográficos. Mostre-se como se abortam e como se fazem, eduquem-se as crianças com o sacrifício do Senhor, o rosto do corpo esfacelado, flagelado. Mostrem-se as mulheres a serem violadas por seus maridos bêbedos, mostre-se como são fodidas enquanto eles vomitam para o lado. Mostre-se tudo. Mostrem-se as hemorragias, os quistos, tudo. E, de preferência, à hora do jantar.
10 Comments:
Please don't talk about murder while I'm eating, não é? como diria o Ben Harper...
É engraçado como ultimamente têm voltado a aparecer aqueles mails com imagens de fetos. Imagens surpreendentes, achievments cirúrgicos, tudo com o dedinho da manipulação por detrás.
Estas manipulações de consciência enojam-me e, bem, também as pessoas que se deixam manipular.
Só espero e espero com muita força que a inércia do último referendo não se repita.
também espero sinceramente que a lei mude.
quem tem dinheiro vai Espanha quem não tem vai à habilidosa.
Assim como está só serve a hipocrisia.
Aurora
pois, às vezes venho e demoro-me no agrado (e até o digo). outras saio de mansinho, são os dias do opinar, e do desacordo. mas cada um como cada qual ...
mas ele há dias em que as teclas oscilam entre o alcazar e evita peron (a la madona, que seja). foda-se, essa dos maridos a vomitar enquanto fodem as mulheres? porra, que mundo é esse, puta de demagogica
e faz-me lembrar uma cena do pasolini (acho, acho), meio orgiástica, um tipo a foder uma tipa enquanto ela come uma sanduiche, de tão desinteressada. serve para a campanha ?
Mostrem mesmo tudo, eu prefiro nem ver, mas sei que a violencia impera. Porque é que não mudam a lei de vez, sem referendo? Isto é tudo uma hipocrisia.
Maria João
JPT, você não sabe por que me indignam tanto certas coisas, nem tem que saber. Há assuntos na vida que não são partilháveis em post. Mas olhe que neste post não há nada de metafórico, ainda que tudo lhe possa parecer demagógico. Podia haver, mas não há. O tom, digamos assim, irónico (demagógico?) do texto até desculparia a metáfora (lá que seja pobre, é matéria para crítico literário decidir). Mas não é metáfora, isso lhe garanto. Quanto ao resto, gosto muito de o receber por cá.
P.S.: antes deste, havia aqui outro comentário meu que foi apagado. Como disse, há coisas que não são para post.
Saúde a todos,
Bravo Henrique!
A Diamanda Galás diz algo do género: "Please, don´t chat about despair." É o que esses "articulistas" andam a fazer...
bem, sigo um bocado em paralelo. já aqui deixei há dias um comentário a propósito do almodovar, um pouco na mesma linha. Acho que há um remorso ocidental, sempre no coitadinhos dos pobrezinhos do 3º mundo (o remorso do homem branco, um livro-pontapé de P. Bruckner), que esconde a realidade e, nada paradoxalmente, menoriza os tais coitadinhos (pretitos, amarelitos, mulatinhos e outras misturas, coisas assim).
E, junto a esse remorso do homem branco, anda por todo o lado o remorso do homem (que salta neste post, coisas pessoais e intransmissíveis à parte, claro está). coisa que tem o mesmo conteúdo ideológico - obscurece a realidade. menoriza os índios, perdão, as mulheres. vitímas inactivas, chamemos-llhe assim
enfim, um quadro ideológico cada vez mais reaccionário, cada vez mais louvado.
era isto, em termos impessoais, repito, que não me atrai agora a polémica, que me apeteceu resmungar ao ler
Leu mal.
pois será, acontece(-me). E muito.
(mas, continuando em paralelo, tenho saudades e curiosidade, de textos/filmes em que as mulheres sejam tratadas como hoje o são os homens. e, acima de tudo, para ver/ler as reacções que surgiriam)
A falta de humildade:
Em pequeno, quando os dias eram compridos e a vontade de aprender mais que muita, finda a época dos fardos, arranjaram-me lugar na parelha do arado. No pasto ao lado o pastor passava os mesmos dias de cabeça posta nas mãos que seguravam o cajado.
Ao fim do dia, com metade do campo ainda por lavrar e dois conjuntos de arreios partidos, vem o feitor a cavalo "aliviar-me" da carga dos dias seguintes. Pela minha insistência, o Eng. Carpo, Agrónomo, latifundiário, com cota no bar da aldeia, solteiro de trinas, conta aberta na bôite ( ou lá o que lhe chamam), veio ao monte passar sua senrença: "este puto tem é uma grande falta de humildade". E o feitor: "falta de humildade, é o que lhe tenho dito, sr Eng, desde o dia em qu'este maltrapilho m'apareceu p'la frente. A ele e os da láia dele".
Fui pelo caminho a pensar, pela noite a pensar e acordei de manhã, convencido, mais p'la idade dos que proferiram que p'la razão com que me cobriram.
Creio que muito se resume a esta pequena estória; com os dias que passam e mudam; mudam os nomes, mudam os lugares, mudam as pessoas, mudam...
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