17.11.06

Fragmento #40 – Cadeirão individual

A minha colega de carteira no secundário telefonou-me um dia para a ajudar a estudar na véspera de um teste. Saí de casa após o jantar, com os livros de geografia na mão e percorri o mapa que me era habitual na altura: fui para fora da muralha romana rumo ao bairro da moraria, com as suas ruas sinuosas, os televisores com o telejornal, o som dos pássaros ao fim da tarde e os miúdos a jogarem à bola nas calçadas. Na casa em frente da minha colega, àquela hora ouviam-se sempre gritos, por vezes alguém deitava restos do jantar pela janela fora, ou torradas queimadas, ou algum objecto voava e partia-se nas pedras da rua – a violência sempre me assustou, sobretudo quando se passa entre portas. Bati à sua porta e a avó atendeu-me, indicando-me o quarto de onde inesperadamente ouvi várias vozes e o som da aparelhagem de vinil a tocar. No interior do quarto, deparei-me com a minha colega e um namorado, mais dois casais muito entretidos e eu com os livros na mão a pensar no teste de geografia do dia seguinte. Cumprimentei toda a gente, observando onde me poderia sentar naquele mapa, descobri um cadeirão individual à minha espera; puxei de um cigarro e por ali fiquei como se nada em meu redor me dissesse respeito; olhava os livros no colo entre cigarros, já sabia que era uma ilha à muito tempo e que os outros também o são; tentei não dar importância ao que se passava. No fim daquela sessão, voltei para casa triste e sem saber o que pensar, não me lembro do que aconteceu no dia seguinte, mas acho que tudo seguiu no seu rumo natural. Durante muito tempo pensei que a colega era a minha melhor amiga, visto que a conhecia desde a infância, mas só mais tarde me apercebi que muitos amigos são apenas portos de passagem e nada é eterno. Entretanto, construi mapas por mares nunca antes navegados como qualquer portuguesa que tem curiosidade em conhecer o mundo, mesmo que seja em estado contemplativo. À medida que isso acontecia, apercebia-me que são poucos os amigos que crescem com vontade de compartilhar alguma coisa no momento presente, alguns tornam-se apenas passado. Por aqui vive-se numa civilização antiga em que tudo se encontra enterrado por descobrir, está tudo por camadas e por escavar; é por isso que os arqueólogos ainda arranjam emprego – e os antropólogos também têm muitos esqueletos para estudar. O momento presente neste país tem sempre um excesso de passado histórico, devo pensar assim porque dei cabo de muitos sapatos a percorrer as ruas de Évora durante os anos em que lá vivi. Quanto à minha colega, separámo-nos no primeiro ano da universidade porque tomámos rumos de vida diferentes. Um amigo telefonou-me na altura, estava doente a morrer, mas não me disse, deu-me sim uma enorme lição de vida avisando-me que eu não me podia rodear de pessoas que me querem comer energia, porque sou muito mais forte. Ele deixou-me como herança a paixão pela pintura. Telefonei à minha amiga quando ele morreu, mas ela não foi ao funeral, nunca entendi porquê. Entretanto, desisti de intervir na vida dos outros, sobretudo quando me sinto impotente ao observar a geografia onde se encontram; por vezes tento avisar de alguma coisa, mas normalmente não me dão ouvidos e ainda por cima me interpretam mal. No entanto, na despedida de solteira desta rapariga perguntei-lhe como é que ela podia confiar e se ia casar com um homem que já tinha encontrado em sua casa na cama com uma amiga da mãe. Perguntei-lhe se não seria uma grande falta de respeito por ela própria e pelo mundo. Ela não me respondeu, sorriu apenas cinicamente e aqueles olhos estavam num vácuo muito estranho. Encontrei-a há pouco tempo num concerto e os seus olhos estão iguais, limitei-me a cumprimentá-la com civismo. Outro amigo já me tinha avisado que ela mergulhou num deserto há muito tempo. Ele também já morreu, estava muito doente e não me disse quando me procurou antes de partir, deu-me também uma grande lição de vida ao pedir-me para escrever. Hoje escrevo e pinto, a minha geografia vai-se alterando todos os dias porque sei que apenas é importante alguns momentos de ternura que vivemos e compartilhamos com os que amamos.

Maria João

6 Comments:

At 10:13 da tarde, Blogger amok_she said...

Ontem dizia ao HF, após um seu reparo, q me havia enganado considerando o blog dele como 'individual masculino' porque, embora não desmerecendo a companhia dele q fazia deste blog um colectivo, apenas me prendia ( e citava) os textos dele...hoje sou "castigada" com a leitura deste belíssimo texto chegando ao fim e lendo 'Maria João'...bem feito por ser tão distraida...;-)

 
At 11:42 da tarde, Blogger MJLF said...

Amok, deixa lá isso dos castigos e culpas, não serve para nada. Quanto à distração, po vezes até nos ajuda em muitas geografias.
Maria João

 
At 3:35 da manhã, Blogger Vítor Leal Barros said...

João, não sei o que dizer e, no entanto, sinto uma enorme vontade de comentar este texto...

fica-me a sensação de o bom geógrafo ser aquele que consegue ver para lá da cartografia...quando lê-mos no mapa Rio Douro não imagninamos que ele possa realmente ser prateado... desconfio que tens alma de geógrafo... parabéns

 
At 1:02 da tarde, Blogger MJLF said...

Obrigada Vítor. O rio Douro é mágico, já fiz o percurso de comboio para o Pocinho e a partir do Peso da Régua é impressinante.
Maria João

 
At 9:28 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Senti-me em casa neste texto

 
At 4:39 da tarde, Blogger MJLF said...

Benvindo Mário, volta sempre.

 

Enviar um comentário

<< Home