Judas e Antígona.
O inglês Thomas de Quincey, autor de Confissões de um Comedor de Ópio e Do assassínio como uma das belas-artes, passou as passas do Algarve. Viveu os últimos anos de vida alheado do mundo exterior, com o qual contactava apenas a fim de ganhar algum dinheiro para pagar dívidas. De entre os inúmeros tratados, estudos e artigos que escreveu para, literalmente, ganhar a vida, há um publicado em Portugal que julgo especialmente interessante. Trata-se de Judas Iscariotes (& etc.), uma reflexão onde de Quincey antecipa, de certa forma, a reabilitação agora em curso do mais polémico dos 12 apóstolos. Como é sabido, Judas ficou para a história como o traidor que entregou Jesus Cristo aos romanos. Para o autor inglês este carácter de traidor atribuído a Judas falseava a verdade, devendo antes ser-lhe reconhecida a coragem de um estratega político. O crime de Iscariotes «foi um crime de uma presunção terrestre notável, procurando não impedir que os desígnios de Cristo se realizassem e ainda menos traí-los. Pelo contrário, tratava-se de promovê-los; e como? Através de meios que entravam em conflito com o seu espírito central. Tanto quanto se pode julgar, era uma tentativa para apressar o reino de Deus…» - diz-nos de Quincey. Eis uma possível reabilitação de Judas, aquele que desesperado, despedaçado, angustiado, não conseguiu suportar a responsabilidade de apressar o reino de Deus - enforcando-se. Judas Iscariotes é um paradigma, como Antígona já era, embora diferente, da nossa relação com o dever. Ambos considerados traidores, limitaram-se a cumprir, conscientemente, um dever com implicações trágicas. A desobediência de Antígona justifica-se pelo imperativo moral da consciência, simbolizando, assim, o cumprimento de um dever que era também uma necessidade moral. O gesto de Judas justifica-se pela consonância com a vontade do supostamente traído Jesus. A traição de Judas terá sido, aos olhos do seu Senhor, a satisfação de uma necessidade divina, ou seja, o cumprimento de um dever sagrado. É fácil esquecermo-nos destes dois quando julgamos as acções dos outros. Talvez eles se nos avivem mais na memória quando pensamos nas nossas próprias acções. Davam, porém, um belo casal.
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