30.1.07

mitos contemporâneos (1)

A blogosfera é um elemento do processo de “democratização” de um modo de vida globalizado. Esta democratização é servida entre aspas porque funciona (ou assim me refiro agora a esse perfil) sobretudo por um aumento da quantidade. Quantidade de quê? De tudo ou quase tudo. De livros publicados, de filmes disponíveis, de tempo de antena na televisão – entre shows e concursos, big brothers e festas de talentos. Quantas pessoas iam à televisão nos anos setenta-em-diante em Portugal? O Raul Solnado, o Fialho Gouveia, o Carlos Cruz e dez ou vinte outros. Quantos vão ou passam lá agora? Centenas ou milhares, entre concorrentes (alguns com sucesso a ultrapassar o fim do programa, embora de modo tendencialmente efémero), estilistas, escritores, futebolistas, domésticas, bruxas, a Maya, o Cláudio Ramos, o Saramago, o Animal, o anónimo, etc. Ora, se passa lá mais gente, e mais gente os vê a passar, acontece o mesmo que acontece com os livros: maior quantidade de livros chega aos escaparates ou às prateleiras (a exposição depende da hierarquia da “importância” – normalmente atribuída em função de…quantidade também, sublimada em número de pessoas que conhecem os autores da televisão, por exemplo, no caso dos apresentadores que escrevem), embora isso se passe com um óbvio sacrifício da elite da qualidade.

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Eu disse elite da qualidade de propósito. Porque aqui tende a gerar-se uma grande confusão. A literatura não parou de evoluir. Nem é prejudicada por este aumento de quantidade. Os melhores autores de “hoje” trabalham com uma linguagem mais sofisticada do que a que existia há 20000 anos. Deleuze e Derrida, herberto e Picasso, são o resultado do conjunto de possibilidades que constitui o universo ao tempo em que viveram ou vivem. Neste sentido, dizer, por exemplo, que um determinado autor “estava muito à frente do seu tempo” não pode ser entendido literalmente. Nenhum autor está à frente do seu tempo no sentido de que o que faz é possível no contexto do conjunto de possibilidades do universo naquele momento de sofisticação. Um autor só estaria à frente do seu tempo se fizesse alguma coisa impossível.

Isto vinha da questão da qualidade e da elite da qualidade serem coisas (subtilmente) diferentes. As pessoas mais cultas, há trinta anos, ficavam satisfeitas a ver o Vitorino Nemésio no seu programa de televisão. Também ficavam satisfeitas ao ver nas livrarias livros de bons autores sempre com mais ou menos (achava alguém) o destaque que mereciam. Com o aumento da quantidade, a elite da qualidade saiu a perder. Tem menos visibilidade, menos atenção (pelo menos em termos relativos de certeza que sim). A quantidade aumentada dos que não prestam prejudica a elite da qualidade.

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Mas será que a qualidade da literatura saiu a perder com o aumento da quantidade nos últimos anos e décadas? Acho que não. Claro que podíamos discutir a noção de qualidade e quem a estabelece e como. Aqui entram os limites da comunicação (pelo menos desta) e só me entenderão por empatia. Posso pôr assim a questão: se de todas as épocas da literatura só pudesse escolher uma, eu escolheria a nossa.

Claro que a elite da qualidade (os seus mais facciosos putativos membros), sentindo-se despromovida, argumenta que o movimento de “democratização” - do que é bom e também do lixo - prejudica a qualidade de tudo sob o céu, e não apenas (ou sobretudo) a elite da qualidade. São pessoas também, e as pessoas têm muito o costume de puxar a brasa à sua sardinha.


Rui Costa

7 Comments:

At 3:32 da tarde, Anonymous Anónimo said...

O texto é interessamte, Rui, mas as fotografias... ah, as fotografias... essas são, são... hum... fotografias... breathtaking... ufa...

 
At 4:50 da tarde, Blogger Filipe Guerra said...

Eu não estou de acordo com o raciocínio de que a qualidade aumentou com a sofisticação da linguagem (pelo menos entendi assim, porque o texto é um bocadinho ambíguo, ou sofisticado). Mas já estou de acordo com o raciocínio (pelo menos entendi assim) de que o aumento da quantidade é factor de aumento da qualidade, embora a elite da qualidade pense o contrário. Mas é um facto de que a visibilidade da qualidade é prejudicada pelo aumento da quantidade. Isto partindo do príncípio de que estamos a falar da mesma qualidade, até porque há pessoas para quem só há uma qualidade: a comercial, e aí todos os raciocínios terão se ser invertidos.

 
At 11:56 da tarde, Anonymous Anónimo said...

FAG: a linguagem disponível é cada vez mais sofisticada. Deleuze e herberto têm qualidade porque estão à altura do conjunto de possibilidades do universo (da linguagem) no momento em que vivem. Este estar à altura traduz-se pela “actualização de virtuais” (para utilizar linguagem de Deleuze) como partes que são de uma “matéria que pensa” (herberto). Digamos que esticam o limite das possibilidades, aumentando a linguagem e, logo, o mundo. E pertencem ambos a um tempo da rápida “democratização” pela quantidade. Se não fossem sofisticados não produziriam nada “de qualidade”. No fundo o que eu estou a dizer é que a qualidade não é uma média se pensarmos nos melhores, embora o aumento da quantidade estimule o aumento da qualidade média. A relação entre sofisticação (da linguagem, do mundo) e qualidade, é só esta e simples: um individuo semi-primitivo com uma linguagem de 200 palavras não poderá nunca, no universo de hoje, produzir uma obra “de qualidade”. Mas a questão central era a de a parte se arvorar em todo, fazendo crer que o prejuízo de poucos é o prejuízo da maioria, como bem viste.

Henrique: se quisermos confundir quantidade com qualidade, tornando-as indistintas, podemos dizer assim: “o aumento da quantidade de ligações entre os neurónios faz aumentar a qualidade da ligação ou das ligações entre os neurónios”. Quantidade no meu texto tem a ver com acesso a coisas. Mais pessoas hoje têm acesso a livros hoje do que há 500 anos. Quanto a ser difícil escolher entre tanta coisa, à primeira vista parece que sim, mas depois percebe-se que também se tem mais “recursos de circulação” no meio da informação toda. Provavelmente tu hoje demoras menos tempo a fazer uma lista de todos os livros que falam de “peixinhos amarelos de barbatanas peitorais” do que o Camões no tempo dele, ainda que haja mais livros hoje. Quanto aos iogurtes, parece-me que a probabilidade de encontrares um iogurte estragado, ou de má qualidade, em qualquer supermercado português, é muito inferior hoje à que existia há 500 anos numa loja onde eles se vendessem numa cidade que visitasses pela primeira vez (e onde não conhecesses, portanto, provavelmente o único sítio de confiança).

Rui Costa

 
At 11:59 da tarde, Anonymous Anónimo said...

ruilage: são os mais pertinentes rizomas que o meu sistema límbico hoje fez o favor de encontrar

Rui Costa

 
At 3:55 da tarde, Blogger Filipe Guerra said...

Continuo a pensar que, em literatura e em tudo, sofisticação não é qualidade, mas isto são apenas palavras. Gosto mais de exemplos e, quanto ao Deleuze, não sei, mas quanto ao Herberto Hélder li-o (a Poesia Toda), porque se deve dar sempre o benefício da dúvida, e, no fim, o que atingi foi o vazio. Significa que, em literatura, há mais leitor do que escritor, em quantidade e logo em qualidade múltipla, e que a sofisticação da linguagem (experimentação linguística? Ambiguidade? Complexidade? Magia, feitiçaria das palavras?) pode dizer alguma coisa a quem escreve mas não a quem lê (não a todos os que lêem). Os que não compreendem e não são atingidos são leitores de fraca qualidade? Falta prová-lo, assim como falta provar na relação produtor-consumidor o que é a qualidade, da literatura aos iogurtes. Quanto à magia das palavras, isso é para crentes, e não são precisas muitas palavras nem muita sofisticação para a fazer. Há milhares de anos que isso se faz, com pouquíssimas, menos de duzentas. O meu exemplo é outro: Daniil Harms, que nos anos 30 e 40 do século passado era poeta, fez muita experimentação linguística, sofisticou de tal maneira a coisa que, como não era parvo, caiu em si e concluiu que a literatura, moderna ou antiga, é simplicidade e, depois, cada leitor a interpreta à sua maneira, sofisticada ou não, não engolindo, por ordem da modernidade, uma literatura escrita como que numa lápide tumular.

“Não sei por que é que toda a gente acha que sou um génio; a meu ver, não sou génio. Ontem, digo eu para eles: oiçam, mas que génio sou eu? E eles: tal como é! E eu para eles: qual tal? Mas eles não dizem qual, apenas dizem: génio é génio. Ora, a meu ver, eu não sou, afinal, um génio.
Onde quer que eu vá, toda a gente começa logo a cochichar e a apontar-me o dedo. «Mas que raio de coisa, afinal!», digo eu. Mas nem uma palavra me deixam dizer, nota-se que, a qualquer momento, vão pegar em mim e levar-me aos ombros.”

Daniil Harms

 
At 9:57 da tarde, Anonymous Anónimo said...

fag: pois, enquanto formos indivíduos a qualidade continuará a ser um assunto subjectivo e as pessoas gostam ou não gostam por empatia e não por referência a um padrão objectivo de qualidade. mas olha que o daniil harms só parece simples porque é mesmo muito bom (só conheço o “crónicas da razão louca” mas bem que devia haver mais do gajo por cá).

Rui Costa

 
At 10:25 da tarde, Blogger Filipe Guerra said...

Rui, é verdade, a simplicidade do Harms é complexa, creio que assenta na auto-ironia da linguagem ao nível mais profundo. Faz cá falta mais dele, e mais tarde ou mais cedo há-de haver, por nós ou por outros.

 

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