28.2.07

Do moleskine enquanto moscardo

Comprei o meu primeiro moleskine. A minha actualidade resume-se a pouco mais que isto. Até agora só tinha cadernos de apontamentos para pobres, cadernos de apontamentos pobres. Mas hoje comprei o meu primeiro moleskine, o que fará de mim um pouco de Hemingway, Picasso, Chatwin. O meu moleskine tem história, ao contrário de outros cadernos que tive até hoje. Nos outros escrevi estórias, neste terei história à mão de semear. A primeira coisa que fiz quando abri o meu primeiro moleskine foi escrever o meu endereço. Em caso de perda, o meu moleskine deverá ser devolvido ao meu endereço. As a reward: $ gratidão. Qual será o preço da gratidão? O meu primeiro texto no meu primeiro moleskine não é sobre a gratidão, mas devia ser. Ou então sobre "rewardes" com cifrões. O mundo é cada vez mais uma recompensa com cifrões, mas eu não vou nessa: eu apenas ofereço gratidão a quem me devolver o que, a partir de hoje, é meu por direito. Vou partilhar aqui no Insónia o primeiro texto que escrevi no meu moleskine, é um texto que diz haverem pelo menos duas coisas que distinguem a escrita em computador da escrita em papel. Primeiro, a constatação de que o computador protege-nos da rasura. No papel a rasura faz a sua história, o seu percurso, fica incrustada na página como bolor na parede. Essa história termina quando nos é dada a possibilidade de caiar as paredes da escrita, a possibilidade de apagar, de limpar a rasura sem deixar qualquer vestígio da sua existência. Ora, a rasura é a prova de uma hesitação que parece não existir na escrita em computador. Uma hesitação aparentemente superada pelo poder de apagar. Isto leva-nos a uma outra distinção, relacionada com a primeira por consequência. É que a iminência do erro, na escrita em papel, pode levar a uma relação de medo, desconfiança e intimidação com a rasura. Escrever no computador confere-nos um poder que nos liberta desse medo, ao mesmo tempo que nos usurpa de uma certa respiração do pensamento. Digo isto a pensar na minha experiência pessoal, partindo da experiência da escrita em papel como uma escrita mais pausada, mais ponderada, enquanto a outra parece sempre encurtar a fronteira que separa o pensamento dos dedos. O computador veio globalizar o pensamento no mundo do corpo escrevente, os dedos estão já contaminados pelo pensamento quando premimos as teclas. Escrever em papel, pelo menos para mim, como que obriga a pensar, enquanto escrever directamente no computador apenas me obriga a descontrair. É provável que a frouxidão generalizada da literatura mais actual tenha aí uma das suas causas, o que me leva a pensar no meu novo moleskine como no Sócrates da Apologia quando este afirmava que o defeito dos poetas era dizerem muitas coisas lindas, mas não se aperceberem do que diziam por estarem contaminados pelos instintos e pela inspiração divina. É isto que o meu primeiro moleskine me diz. Talvez ele venha a ser o meu moscardo, o moscardo que jamais me deixará adormecer, o moscardo que, a partir de hoje, encontrarei em todo o sítio, pousado perto de mim.

6 Comments:

At 9:16 da tarde, Anonymous Anónimo said...

No meu caso, Henrique, escrever no computador traduz-me numa possibilidade maior de distanciamento em relação a mim mesma. Escrevo em primeira mão, abandono o texto a esmo, por trás de uma tela que desligo, e regresso no dia seguinte: olho, não é a minha caligrafia, logo poderá ser, sempre, um texto outro de uma outra pessoa que não eu. De repente sou a leitora daquilo, de repente volto a ser autora daquilo, para no final, quando largo definitivamente as letras, já nada daquilo me pertencer. Esta possibilidade de jogo de pertenças e assomos de múltiplas identificações (há quem prefira chamar-lhes identidades) só o posso gozar escrevendo no computador ou na máquina de escrever. Se o faço à mão, estou sempre contaminada por mim mesma, sempre cativa da minha mão caligráfica, de uma única eu.

Uma provocação, os seus ensaios, Henrique.

 
At 9:40 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Esse distanciamento, Sandra, é tão mais consistente quanto, querendo-se, os computadores não têm memória. É também da memória que fico cativa quando escrevo nos meus cadernos, nas minhas agendas, no que tenho mais à mão (ainda assim, prefiro o papel).
P.S - Henrique, o Moleskine contou-me que está feliz de ser seu

 
At 10:45 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Ana:

A história da escrita (manuscrita) remete para um campo de intimidades que não se compadece com a sua substancialização virtual (informática).
Não há só uma história (semântica) dentro dos traços mais ou menos caligráficos (quero dizer, esmerados) que nós copistas traçamos à mão; há também o próprio tempo desses traços. Um tempo longo - de século para século - que foi definindo e marcando diferentes tipologias gráficas, mas também denunciando o cansaço do tabelião, os erros do copista, nas margens os desabafos do notário, os sinais de regularização do documento muito belos, desenhados à mão, os reparos do escrivão, etc., etc. Nesta medida, sim, há uma história que se constrói, uma história da própria escrita e, também, uma validação mais íntima dessa escrita.
Era mais ou menos aqui que eu queria chegar.
Mas claro, Ana, concordo consigo quando traz à colação a palavra-chave: memória. E essa, seja no papel, seja na tela, seja no papiro, no pergaminho, nas tabuinhas de cera ou em matéria alguma, é sempre e circularmente o derradeiro refúgio (a meta) e a linha de novo arranque. Mesmo que nunca venha a ser materializada, há sempre plataforma na nossa cabeça que vem suportar a memória; a mesma memória que desencadeia muitas vezes uma linguagem agramatical, a mesma que vai sempre estar à margem de qualquer suporte da escrita.
Quando digo que o computador me permite um maior distanciamento face a mim mesma, digo-o no sentido da matéria física, todavia não quer dizer que em escrevendo nele não esteja a penalizar a própria história da grafia. Porém, jamais penalizarei a minha própria história, visto que a minha memória não poderá ser aferrolhada em matéria alguma. E a ficar acorrentada, fica-o nas limitações da linguagem, escrita ou não.

Henrique, é sempre muito valioso o testemunho manuscrito. Di-lo quem passa os dias a ler documentos antigos, dos séculos XIV e por aí adiante. E tenho um especial carinho pelos testemunhos quinhentistas.

[Escrito a correr e talvez não me tenha feito entender, mas obrigada pela pachorra.]

 
At 5:09 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Sandra
Não fosse esta a casa do Henrique, e eu deixava-me por aqui ficar à conversa consigo ;-)

É um prazer ler o que escreve, Henrique e foi um prazer lê-"la" Sandra

 
At 11:49 da tarde, Blogger Oásis said...

De facto... o que escrevo no Moleskine nunca fica bem à primeira... no computador sai logo tudo, como se houvesse uma ligação mais directa entre o pensamento e os dedos. Na escrita, é como diz a Sandra Costa, fico muito mais presa a mim própria daí, talvez, as hesitações.
Contudo, não prescindo nem do Moleskine nem do computador.

 
At 10:56 da tarde, Blogger ze milho said...

epa...passei por aqui e tive que deixar o meu comentario...porque eu também tenho um moleskine!!!...caderno de apontamentos fantastico que nos fazem sentir que é mais que um pequeno caderno de apontamentos!

fiquei espantado a verificar que em quase todas as series policiais, o polícia que desvenda os mistérios todos, tem sempre o seu moleskine...

comentario relativamente fraquinho..mas tenho de te dizer que eu também fui contaminado pelo prazer de escrever num moleskine..


ja agora..o meu foi oferecido e tambem tem uma historia adjacente...k ainda tem mais significado... =)

 

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