26.2.07

Um filho doente


Francis Bacon, o pintor, foi quem melhor representou a doença. A doença é uma deformação, é um desequilíbrio. Todas as formas que deformam são uma representação da doença. Quando passeamos pelos corredores de um hospital constatamos que, nesse trépido jardim de mármores desinfectados, o nosso corpo é o que mais se aproxima de uma verdade que iludimos tanto quanto possível: somos uma doença a caminhar para a cura. Nada há pior que um filho doente, ele remata-nos o sentimento de pertença, apunhala-nos qualquer invocação de imortalidade. Olho os quadros de Bacon como quem visita um filho doente numa cama de um hospital, um corpo a caminhar para a cura, a fé numa ilusão que nos atrase a cura. É preciso acreditar no poder dos comprimidos, nos traços geométricos que enquadram a desfiguração. É preciso acreditar nos números como a balança que restituirá ao corpo a reverberação de uma pureza que se esvai na respiração dos dias. Bacon é como um ensaio de 200 palavras, um fragmento a inaugurar a violência das ideias, um pensamento inconclusivo. Secção de baconcologia: a pele mortiça dos gritos, o branco profundo da degenerescência, uma espécie de fraqueza que se resume na obscura colheita dos nervos a que damos, poeticamente, o nome de dor. Sinto os quadros de Francis Bacon como se fossem um filho doente, alguém a querer respirar por cima da respiração, como naqueles sonhos em que queremos gritar e o som agarra-se-nos às cordas vocais e não sai, nós sopramos e ele resiste lá dentro, agarrado, incrustado, um som terrífico porque ausente, silencioso. Sempre que resulta num grito calado, o silêncio é terrível – porque é uma deformação na cama da geometria, é uma doença.

7 Comments:

At 1:53 da manhã, Blogger perdida em Faro said...

Gosto muito dos quadros de Bacon e tive o privilégio de `vê-los ao vivo enquanto vivi em Londres.
Há coisas que a arte nos inspira que pura e simplesmente não são explicáveis. Há sentimentos que a arte despoleta que nos tornam parte do que ela representa e isso é tão bom (mesmo quando se tratam de sentimentos negativos ou tendencionalmente malignos).
Obrigada pela reflexão.

 
At 10:54 da manhã, Blogger MJLF said...

um grito silencioso é muito violento, o Bacon pintou-o com um corpo sem orgãos, como afirmou o Deleuze e concordo, diz mais que 200 palavras, são verdadeiros tratados.
Maria João

 
At 12:12 da tarde, Blogger margarete said...

gee, levaste-me a sentir a angústia de todas essas palavras

saúde.

 
At 12:16 da tarde, Blogger margarete said...

um autor que tb me leva para esses caminhos é o Jean Rustin
talvez possa dizer que o Bacon está para a fase de doença e o Rustin para a fase do luto

 
At 12:30 da tarde, Blogger margarete said...

vale a pena uma pesquisa ;)

(tenho alguns posts com trabalhos dele)

 
At 12:58 da tarde, Anonymous Anónimo said...

«um fragmento a inaugurar a violência das ideias, um pensamento inconclusivo. (...)»

A completude invisível ou latente no fragmento; ou o fragmento como totalidade em potência.

«Sempre que resulta num grito calado, o silêncio é terrível – porque é uma deformação na cama da geometria, é uma doença.»

A doença como um silêncio visível.

Não sei se Bacon foi quem melhor representou a doença, Henrique. Todavia, a leitura deste ensaio espoletou-me um grande prazer. Uma espécie de prazer sinistro, latejante. Em latência, também uma melancolia nua, muito próxima, poética.
Estranho tudo isto de encontrarmos beleza na deterioração, poética na deformação, geometria certa no desalinho, um sentido na suposta ausência de sentido, uma estética (enquanto posição) de completude sobre a incompletude. E por aí fora, que há muito por onde rasgar.

 
At 4:02 da tarde, Blogger Pedro Lobo said...

ACASO HAVERIA ALGUM MAIL DE HMBF?
É QUE DANTES HAVIA E AGORA HÁ O CLINT. NADA MAU, MAS PREFERIA O E-MAIL, AQUI FICA O MEU pedrolobo74@gmail.com

 

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