A múmia de Pessoa no colchão de Tàpies
Folheio o catálogo da exposição antológica de Antoni Tàpies, em 1996, no Centro Cultural de Belém. Com a pintura tudo parece ser diferente, o mais cativante é o que não se compreende, há como que um diálogo que se estabelece com as imagens que nos obriga à suspensão temporária do pensamento. Tive um amigo que fechava os olhos para assim melhor contemplar as obras expostas, dizia que com os olhos fechados as imagens anteriormente observadas adquiriam dentro de si uma configuração que escapava aos olhos. O órgão físico é apenas um meio, uma porta aberta, por onde as imagens nos penetram. É já dentro de nós que elas ganham o corpo que as aguarda, o corpo que cada um lhes dá, o corpo inexplicável, o corpo sem corpo onde confluem nervos, sensações, ritmos, numa complexa mecânica de processos químicos que escaparão sempre à razão. Há aquele poema de Fernando Pessoa, A Múmia, que começa assim: «Andei léguas de sombra / Dentro em meu pensamento». Mais à frente, na penúltima estrofe, o poeta diz: «Na alma meu corpo pesa-me. / Sinto-me um reposteiro / Pendurado na sala / Onde jaz alguém morto». A gente não sabe como se sente um reposteiro pendurado na sala, mas desconfiamos, por vezes estamos mesmo certos, de que nos sentimos tal qual esse reposteiro pendurado na sala onde jaz alguém morto. E eu sinto-me muitas vezes como as texturas de Tàpies, como uma mancha equilibrada no interior de um manto branco, como aquela linha vermelha que atravessa o espaço vazio e o enche como se fosse uma pegada no cimento, algumas letras reunidas de forma indecifrável, um colchão de palha rasgado e manchado, os contornos de uma mão, de um seio, de um pé, de um tronco perfurado por pregos, um ovo marcado, uma cruz, uma frase enigmática, como aquelas frases que escrevemos na areia da praia e se perdem para sempre, uma porta fechada do avesso, um bocado de madeira rasgada, um pouco de tecido partido, um divã sobre um losângulo. Folheio o catálogo e lembro-me do efeito das obras de Tàpies ao vivo, de quão intrigantes são os enigmas que nos sugerem, enigmas que o meu pensamento recusa mas que o meu corpo aceita como se fosse uma criança espantada com o ruído do papel amachucado. Espanto-me com a associação ao poema de Pessoa porque foi de Tàpies que me lembrei quando visitei as múmias no Museu do Cairo, aquela frustre tentativa de conservação de um corpo ao qual a alma regressará, como se aquele corpo não fosse todo o peso da alma, como se fosse possível guardar para sempre o bolor que se dissemina pela parede. «Não há / Cá-dentro nem lá-fora», diz o poema de pessoa. É como nos quadros de Tàpies, porque é preciso fechar os olhos e saber que, nesse instante, são eles que nos contemplam e não o contrário. Porque há objectos que nos olham como se tivessem uma vida autónoma e independente da vida que lhes damos quando os observamos, quando os utilizamos, quando os manipulamos. Projecções do nosso corpo, os objectos são a sombra de nós mesmos sem a qual não fazemos sentido, são o que há de vivo na nossa morte, são a música das ossadas.
2 Comments:
excelente.
Belo texto.
Tàpies desperta tudo isso ao transmitir uma espiritualidade desenvolvida. sua obra é mágica.
seu universo de formas e valores de textura como que prolongam sua poética e conteúdo filosófico.
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