21.8.07

MUDAR O MUNDO

Acabei agora mesmo de mudar o mundo. Se não acreditam, pensem. Também vocês, concretizando esse simples gesto de pensar, mudarão o mundo. Não que o mudem para melhor ou para pior. Apenas o mudam. Para tal, se bem repararmos, basta inclusive escrever a palavra mundo. E se a escrevermos repetidas vezes – mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo -, então mudaremos o mundo muitas vezes. Tantas quantas as vezes que o escrevemos numa palavra tão simples como esta, a palavra mundo. Pergunto-me quantas vezes será preciso escrever mundo para que o mundo caiba na palavra mundo? Pelo menos duas vezes há-de ser necessário, pois o mundo é sempre o que é e o seu contrário. Julgo que estamos sempre a mudar o mundo, mesmo quando não queremos que ele mude. O que eu queria mesmo era não mudar o mundo, andar nele sem que nem ele nem eu sentíssemos que andamos um sobre o outro. Quando ando sobre o mundo fico com cãibras, crescem-me calos enormes nos dedos dos pés, e abrem-se-me feridas incuráveis. O mesmo sucede ao mundo por andarmos sobre ele. Por isso, o melhor seria não andarmos sobre o mundo. Assim ninguém se feria. Mas já que andamos, é preciso andarmos com um certo cuidado. É preciso andarmos com o cuidado de quem evita ferir alguém e ser ferido por essas feridas. Não há ferida pior para quem fere do que aquela que se sofre como uma espécie de ricochete das feridas imprimidas nos outros. Sabe-se isso quando se anda pelo mundo, quando se olham as paredes do mundo, quando abrimos as janelas do mundo, até quando adormecemos o mundo que trazemos para dentro de nós durante o tempo em que andamos sobre o mundo. Sempre que mudamos o mundo, o mundo muda-nos. Esta correspondência inalienável entre o mundo e as nossas acções é terrivelmente opressora, sobretudo para quem não pretenda mudar. Há pessoas que, talvez temendo as feridas, não gostam de mudar. Preferem manter tudo na mesma, o que não deixa de ser absurdo. É que é impossível manter tudo na mesma, esforçarmo-nos por manter tudo na mesma é já mudar qualquer coisa. Mas há, sem dúvida, indivíduos que não gostam de mudar. Não gostam de mudar o mundo nem gostam de mudar a si próprios o mundo que trazem dentro de si. Compram uma casa para definitivamente habitarem, até ao fim do mundo, essa mesma casa. Assim que vêem uma racha abrir-se na parede lisa, retocam logo a parede para que ela pareça a mesma parede que era quando compraram a casa sem rachas nas paredes. Passam a vida a limpar o pó das estantes, a lavar o chão, a espanejar os cantos onde crescem teias de aranha do tamanho do mundo. As teias de aranha crescem como parte de um mundo que tem esta mania de se estar sempre a mudar, mas há pessoas que detestam isso. Sofrem de aracnofobia. As pessoas que não gostam que o mundo mude padecem de muitas fobias como esta. Por isso tentam manter tudo na mesma, escrevendo o menos possível a palavra mundo, andando muito levemente sobre as calçadas, quase flutuando, nem se dá por elas, são uma lentidão, tudo porque, temendo mudar o mundo, se entregam a esse sofrimento de o mudarem o menos possível. Eu não sei muito bem se sou uma dessas pessoas, mas julgo que não. O que sei é que nunca tive pretensões de mudar o mundo, nunca as tive na exacta medida em que convivo perfeitamente com a inevitabilidade de o estar a mudar a toda a hora. Por exemplo, escrevendo o que até agora escrevi, gerando dentro de mim um forte impulso que resultará no que passarei a escrever já de seguida. Por isso vos confesso que não sei o que significa pretender mudar o mundo, mas sinto que a toda a hora o mundo que há em mim do mundo se me transforma. Esse mundo, que é um pouco como a sombra de que falei, a tal sombra de por onde eu passo que é sempre arenosa, é um mundo terrível. Muito semelhante a um conto de Edgar Allan Poe, esse mundo é uma coisa terrível a degenerar dentro de uma coisa fantástica que, por sua vez, manifesta magnificamente o declínio de outra coisa ainda mais fantástica que nós nunca sabemos bem o que é mas convencemo-nos existir. Talvez no mundo das flores, no canto dos pássaros, talvez na espuma que se forma onde o mar flagela as rochas. Tal como vejo o mundo, a única coisa que eu mudaria nele, se pudesse, era essa mania de o estarem sempre a mudar não querendo mudá-lo. Essa coisa de tudo mudar para que tudo fique na mesma. Digamos que, fosse-me concedido esse poder, e cessaria agora mesmo a mudança do mundo no preciso instante em que a cerveja me escorre pela garganta abaixo. Faria aí uma pausa eterna. E, não sentindo mais nada, senão a cerveja a escorregar garganta abaixo, ordenaria ao mundo que continuasse o resto da sua existência a escrever-se a si próprio (mas que me deixasse, por instantes, na paz de uma cerveja a escorregar goela abaixo).

4 Comments:

At 9:36 da tarde, Blogger MJLF said...

Tira o n ao mundo e ele fica mudo.
:)
Maria João

 
At 10:59 da tarde, Blogger mulher said...

odnum

 
At 12:41 da manhã, Anonymous Anónimo said...

mudamos e somos mudados a cada momento, ok.

essa história de mudar ou não mudar, de mudança, tem mais interesse como problema de linguagem-discurso. se reparares, sempre que alguém fala em mudança vem logo outra pessoa e diz: sim, sim, estás praí a falar e não fazes nada. Isto passa-se porque é difícil pensar sem subjectivizar tudo. Ou seja, é difícil pensar a linguagem em vez de só ver manifestações exteriores (o fenómeno que aparece).

Quanto à arte mudar ou não mudar, a minha perspectiva é mais esta: a matéria (nós e o resto) muda, e a arte (só para retomar ligeiramente o tema do meu post anterior) é um dos meios dessa mudança. Mas vejo este meu pensamento como (também) um produto da linguagem. Arte é linguagem, a linguagem cria-nos. O que acho que tem interesse é tentar perceber como é que a linguagem (o mundo; tudo) nos muda, incluindo a nossa ideia de mudança.

Mas claro que isto só faz sentido para quem acha razoável pensar a partir da ideia de que a linguagem nos cria. Sem achar que isso representa uma deslocação de deus para a natureza (a matéria que pensa) ou uma descrença na capacidade humana de criar e usar a liberdade dela como cerveja na goela.

Rui Costa

 
At 11:24 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Rui, gostei muito do teu comentário. Este post não foi escrito como uma resposta ao teu, embora tenha sido motivado por um comentário lá deixado, o do AHAHAHAH. Mudar o mundo é inevitável a todo aquele que cria, embora essa mudança seja residual e de alcance imprevisível. Não sou dos que entendem essa mudança como uma transformação radical do mundo, num sentido político. Embora seja político tudo o que implica uma mudança do mundo. O que quero dizer, de uma forma muito simples, é que ninguém escreve canções, pinta quadros, compõe poemas, para acabar com a guerra no mundo. Mas a guerra no mundo serve de pretexto a muitas canções, quadros e poemas. E sempre que uma obra surge, o mundo pula e avança. Mesmo que sejam muitos a preferirem que ele fique quietinho no seu lugar, isto é, no lugar que é também o nosso e de todo aquele que cria e gera mundo.

 

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