MUDAR O MUNDO
Acabei agora mesmo de mudar o mundo. Se não acreditam, pensem. Também vocês, concretizando esse simples gesto de pensar, mudarão o mundo. Não que o mudem para melhor ou para pior. Apenas o mudam. Para tal, se bem repararmos, basta inclusive escrever a palavra mundo. E se a escrevermos repetidas vezes – mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo -, então mudaremos o mundo muitas vezes. Tantas quantas as vezes que o escrevemos numa palavra tão simples como esta, a palavra mundo. Pergunto-me quantas vezes será preciso escrever mundo para que o mundo caiba na palavra mundo? Pelo menos duas vezes há-de ser necessário, pois o mundo é sempre o que é e o seu contrário. Julgo que estamos sempre a mudar o mundo, mesmo quando não queremos que ele mude. O que eu queria mesmo era não mudar o mundo, andar nele sem que nem ele nem eu sentíssemos que andamos um sobre o outro. Quando ando sobre o mundo fico com cãibras, crescem-me calos enormes nos dedos dos pés, e abrem-se-me feridas incuráveis. O mesmo sucede ao mundo por andarmos sobre ele. Por isso, o melhor seria não andarmos sobre o mundo. Assim ninguém se feria. Mas já que andamos, é preciso andarmos com um certo cuidado. É preciso andarmos com o cuidado de quem evita ferir alguém e ser ferido por essas feridas. Não há ferida pior para quem fere do que aquela que se sofre como uma espécie de ricochete das feridas imprimidas nos outros. Sabe-se isso quando se anda pelo mundo, quando se olham as paredes do mundo, quando abrimos as janelas do mundo, até quando adormecemos o mundo que trazemos para dentro de nós durante o tempo em que andamos sobre o mundo. Sempre que mudamos o mundo, o mundo muda-nos. Esta correspondência inalienável entre o mundo e as nossas acções é terrivelmente opressora, sobretudo para quem não pretenda mudar. Há pessoas que, talvez temendo as feridas, não gostam de mudar. Preferem manter tudo na mesma, o que não deixa de ser absurdo. É que é impossível manter tudo na mesma, esforçarmo-nos por manter tudo na mesma é já mudar qualquer coisa. Mas há, sem dúvida, indivíduos que não gostam de mudar. Não gostam de mudar o mundo nem gostam de mudar a si próprios o mundo que trazem dentro de si. Compram uma casa para definitivamente habitarem, até ao fim do mundo, essa mesma casa. Assim que vêem uma racha abrir-se na parede lisa, retocam logo a parede para que ela pareça a mesma parede que era quando compraram a casa sem rachas nas paredes. Passam a vida a limpar o pó das estantes, a lavar o chão, a espanejar os cantos onde crescem teias de aranha do tamanho do mundo. As teias de aranha crescem como parte de um mundo que tem esta mania de se estar sempre a mudar, mas há pessoas que detestam isso. Sofrem de aracnofobia. As pessoas que não gostam que o mundo mude padecem de muitas fobias como esta. Por isso tentam manter tudo na mesma, escrevendo o menos possível a palavra mundo, andando muito levemente sobre as calçadas, quase flutuando, nem se dá por elas, são uma lentidão, tudo porque, temendo mudar o mundo, se entregam a esse sofrimento de o mudarem o menos possível. Eu não sei muito bem se sou uma dessas pessoas, mas julgo que não. O que sei é que nunca tive pretensões de mudar o mundo, nunca as tive na exacta medida em que convivo perfeitamente com a inevitabilidade de o estar a mudar a toda a hora. Por exemplo, escrevendo o que até agora escrevi, gerando dentro de mim um forte impulso que resultará no que passarei a escrever já de seguida. Por isso vos confesso que não sei o que significa pretender mudar o mundo, mas sinto que a toda a hora o mundo que há em mim do mundo se me transforma. Esse mundo, que é um pouco como a sombra de que falei, a tal sombra de por onde eu passo que é sempre arenosa, é um mundo terrível. Muito semelhante a um conto de Edgar Allan Poe, esse mundo é uma coisa terrível a degenerar dentro de uma coisa fantástica que, por sua vez, manifesta magnificamente o declínio de outra coisa ainda mais fantástica que nós nunca sabemos bem o que é mas convencemo-nos existir. Talvez no mundo das flores, no canto dos pássaros, talvez na espuma que se forma onde o mar flagela as rochas. Tal como vejo o mundo, a única coisa que eu mudaria nele, se pudesse, era essa mania de o estarem sempre a mudar não querendo mudá-lo. Essa coisa de tudo mudar para que tudo fique na mesma. Digamos que, fosse-me concedido esse poder, e cessaria agora mesmo a mudança do mundo no preciso instante em que a cerveja me escorre pela garganta abaixo. Faria aí uma pausa eterna. E, não sentindo mais nada, senão a cerveja a escorregar garganta abaixo, ordenaria ao mundo que continuasse o resto da sua existência a escrever-se a si próprio (mas que me deixasse, por instantes, na paz de uma cerveja a escorregar goela abaixo).
4 Comments:
Tira o n ao mundo e ele fica mudo.
:)
Maria João
odnum
mudamos e somos mudados a cada momento, ok.
essa história de mudar ou não mudar, de mudança, tem mais interesse como problema de linguagem-discurso. se reparares, sempre que alguém fala em mudança vem logo outra pessoa e diz: sim, sim, estás praí a falar e não fazes nada. Isto passa-se porque é difícil pensar sem subjectivizar tudo. Ou seja, é difícil pensar a linguagem em vez de só ver manifestações exteriores (o fenómeno que aparece).
Quanto à arte mudar ou não mudar, a minha perspectiva é mais esta: a matéria (nós e o resto) muda, e a arte (só para retomar ligeiramente o tema do meu post anterior) é um dos meios dessa mudança. Mas vejo este meu pensamento como (também) um produto da linguagem. Arte é linguagem, a linguagem cria-nos. O que acho que tem interesse é tentar perceber como é que a linguagem (o mundo; tudo) nos muda, incluindo a nossa ideia de mudança.
Mas claro que isto só faz sentido para quem acha razoável pensar a partir da ideia de que a linguagem nos cria. Sem achar que isso representa uma deslocação de deus para a natureza (a matéria que pensa) ou uma descrença na capacidade humana de criar e usar a liberdade dela como cerveja na goela.
Rui Costa
Rui, gostei muito do teu comentário. Este post não foi escrito como uma resposta ao teu, embora tenha sido motivado por um comentário lá deixado, o do AHAHAHAH. Mudar o mundo é inevitável a todo aquele que cria, embora essa mudança seja residual e de alcance imprevisível. Não sou dos que entendem essa mudança como uma transformação radical do mundo, num sentido político. Embora seja político tudo o que implica uma mudança do mundo. O que quero dizer, de uma forma muito simples, é que ninguém escreve canções, pinta quadros, compõe poemas, para acabar com a guerra no mundo. Mas a guerra no mundo serve de pretexto a muitas canções, quadros e poemas. E sempre que uma obra surge, o mundo pula e avança. Mesmo que sejam muitos a preferirem que ele fique quietinho no seu lugar, isto é, no lugar que é também o nosso e de todo aquele que cria e gera mundo.
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