INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #28a
UM RESTO A CONTA-GOTAS
(CONTINUAÇÃO)
alimento a besta olhando-me ao espelho
lavando as ramelas do olhar
de algum perdão à deriva por aqui
trazer a vingança dentro de nós é pior que matar
o corpo contra o tempo do destino
a que chamavas a chaga do infinito
e tudo o que desejei para esta vida
ela mo deu ela mo tirou
duas e cinquenta e oito e abro outro ritz
entre o cinzeiro e um mata-borrão a meu lado
um molho de livros linhas de palavras
repletas de imitações de sangue
lágrimas mijos e esperma
ladroagens domésticas com cio
de bandidos pequenos a mentir
chafurdando na dor alheia
uns tantos a rabiscarem poemas
para caírem no goto da Opus Dei do amante
dos editores de regime e dos jornalistas
cometas vendidos ao recibo verde
vira-te rapaz abre a braguilha
e mostra-lhes o mangalho para taparem os olhos
chamarem-te ordinário com um olho
a espreitar entre os dedos
a senhora dança? e você mama?
este é um tempo de poemas de plástico
onde o p do poema sem côdea saltou
para o panrico e a escrita da moda
a um euro e de lápis que já foi azul
reinam nas latrinas dos intendentes literários
o senhor lambe aqui ou quer acolá?
o cego com o corpo cheio de chagas
sobe a escada a pedir esmola e adivinha
nunca leu o Pessanha mas eu lembro
na esplanada da Benard
havia uma gazela de permanente ruiva
bebendo chá de pacote levava no pacote e
pagava e nunca leu o Eugénio
não sei se o primeiro-ministro bebe leite
se algum dia bebeu do pacote mas aposto
que nunca leu um poema teu ou do Baião
um chuto numa bola de futebol dá um voto
o citar dum verso dá a perca de um tanto
se queres ser famoso rapaz
e apareceres na televisão vai até ao Parque
das Nações bate uma pivia aos berros
sem antes mandares um fax
para as redacções dos canais televisivos
sem nunca ouve bem nunca recites um poema
também o único que conheces
deve ser a letra do hino do teu clube
que é uma nação de boçais ignorantes
sem esquecer a tua professora de linguística
e literaturas que dos poetas
das últimas três décadas leu um
de que gostou encolheu os ombros
trocando o nome do dito por um astrólogo
é verdade a Amália era ponta-de-lança
e o Baia ganhou o nobel da literatura
vá minhas amigas levantem-lhe a saia
e mostrem-lhe a piça
para este país em dívida com as letras
pagar agora juros sobre juros de letras
e um verso lhit e fashion
lá fomos nós cantando e rindo ao fundo de novo
enquanto aquele orienta a vida o outro
orienta-se da vida com a sua mulher
entre carros abrindo as pernas e a boca
a troco duma nota
enquanto ele em casa fode a filha e
a irmã em tempos a cunhada
e o sobrinho do mesmo sangue
sangue do seu sangue
nada de mal nesse homem colectivo
e vibrante na pose de perna aberta
colar de cabedal com um búzio ao pescoço
trazendo a razão da vida ser tão curta
saboreia os prazeres sem um coto da moral
copulando galinhas cães
a burra sem sonho algum como ele
entre o fel do medo e a mordedura da morte
um vácuo de solidão serpenteia em alba
onde o tudo é alma do pó
uma mentira um nada
três e vinte e tresanda a filtro queimado
ligar a memória do último dia da nossa vida
como quem liga um rádio abandonado
na esperança de ouvir
a canção mais venenosa
e a sua picadela no coração
nos faça adormecer
num murmúrio moribundo nas traseiras
das lágrimas estreladas
sem ti não consigo olhar a lua
(CONTINUA)
Jorge Aguiar Oliveira
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