Um poema* de Vitorino Nemésio e uma foto de Jack Spencer
CANADÁ - FLIGHT, LISBOA / SANTA MARIA
Já voamos na rota do alumínio,
Com ar de bomba, iões de rampa, poços de ar.
Na fuga de desejos das senhoras
Há uma grande ternura de acepipes,
Panos de plástico, o medo à Morte na algibeira
E o ar altimétrico, o eterno ar.
O ozone é longe, vertical, escudo a raios:
Oh, redução de tudo a poucos elementos!
Levo hélio nos leves pensamentos
E plutónio pesado na consciência.
Tão bom, voar a fio de morte na Energia,
Lendo Simone Weil cheia de Peso e Graça!
Meus pecados contidos, se explodissem,
Fariam bem pior que eu morto a voo.
Velocidade, qual? De sedimentação?
900 km à hora e ao ar é pouco,
E mesmo assim o trem de pouso encurta já.
Ai, o burro Junot da minha infância,
Como era mais ligeiro na inocência,
Tão aerodinâmico na humildade!
Já desço à ilha que me chama às lamas quentes,
Metano e amónia que me arquitectaram.
Mais baixo fica a cucumária dos abismos,
A estrela-do-mar, que faz de cada raio um filho,
Os mil olhos e a umbela pulsátil da medusa,
Pais do meu coração de vagabundo,
Testemunhas do mar que me deu plâncton.
Meus amores flutuantes eram as rosas-dos-ventos,
Eu fui tu-cá tu-lá com sargaços e cúmulos,
Tratei aves, pintou-me a moreia malhada,
Um goraz na mão lesa do Lestinho
Deu-me fósforo aos versos
E o anel de hemoglobina a um amor taquicárdico.
Agora voo mais que o -peixe aéreo,
Plano mais que a gaivota flutuante:
Mas sempre a cálculo, a reactor, na combustão da pena,
Revelado com Deus, lido em Job e Niels Bohr,
Ondulado na luz cogitada e fotónica,
Muito pouco fiel aos mendigos de côdea
Que só apertam o cinto ao descolar da fome,
Que não viram os Andes na Falperra
Nem tocaram o Rio a pés de feltro no Galeão:
Quando muito, uma estrela ou um papagaio
Levantaram seu olhar ingénuo a fio de grude
(Olhar de pobres):— Olha! Ena! Que guita!
A lágrima é ramela
Na cara de quem só tem a pista calculada
No voo de pés juntos para a vala comum.
Mas suspendo. Aterramos sossegados,
Chega a hora do cinto na barriga:
Oprime o pensamento, aperta a esperança.
Desatá-lo ao remorso significa
Parar, pedir ao chão outra vez planta
E juízo comum, modéstia. Oh, nuvens
Furadas para baixo, à busca de destino,
Já vistas para cima em chuva como outrora
Quando a chama a petróleo era o farol de todos,
A luz do pão por Deus e o sinal do silêncio
Na comunhão dos pobres sem aviões.
Meus ouvidos registam a pressão
Da descida ao traído coração.
*Selecção de Jorge Aguiar Oliveira
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