27.5.08

BOCA DE AFTAS

Há uns anos - não mais que 5, não menos que 3, provavelmente 4 -, numa troca de e-mails com uma senhora entretanto redescoberta por aí, foi-me perguntado se eu achava que toda a boa arte era triste. Ou terá sido se a arte boa nasce da tristeza? Bem, mais coisa menos coisa, foi algo parecido que me perguntaram. Eu não soube responder, nunca soube responder a questões deste género. Sei que há na arte uma dimensão de riso que nunca dispenso, seja sob as formas de ironia, sátira, sarcasmo ou cinismo. O riso, o sentido de humor, é algo poderosíssimo e esplendorosamente revolucionário. Hoje, durante uma conversa de trabalho, alguém que eu estava a entrevistar dizia-me que o sentido de humor é o que mais aproxima as pessoas da infância e menos as envelhece. É capaz de ter razão. O Lourenço diz que não sente “que a vida seja uma busca de felicidade”. E acrescenta: “Os modelos de pessoas infelizes dão ao mundo algumas das coisas que mais gosto, nomeadamente, romances e música de qualidade. São coisas que não fazem as pessoas mais felizes, pelo contrário, embora se pense que sim”. Tendo a convencer-me de que os espaços de criação são também espaços de recreação, mesmo quando têm origem nas fontes do mal, da tristeza, da agonia, mesmo quando assumem as contrariedades do trabalho, qualquer que ele seja. Não há nada mais engraçado que uma obsessão. Também não há nada mais desesperante. Talvez esteja errada essa divisão entre a felicidade e a tristeza, isto é, a ausência de felicidade (temporária ou permanente). Talvez todos sejamos, de alguma forma, seres bipolares. Talvez sendo bipolares, todos sejamos, de outra forma, únicos, singulares, uma unidade onde várias forças fervilham de um modo mais ou menos equilibrado. O desapego não resulta duma indiferença, de um desinteresse, muito menos da recusa autoimposta. O desapego, como via para a felicidade, assemelha-se mais, creio, a um sacrifício involuntário, como uma irresistível gargalhada numa boca cheia de aftas.

2 Comments:

At 11:40 da tarde, Blogger MJLF said...

"Talvez todos sejamos, de alguma forma, seres bipolares",não concordo, o termo mais apropriado será ciclotimicos, porque a bipolaridade é quando apenas se vive nos extremos, ser ciclotimico é oscilar entre a tristeza e a alegria sem entrar em ruptura. Utilizado no sentido de a criação acentar em dois pólos,ter algo de dionisico ou maniaco, mas também um aspecto saturnino, agustiante e depressivo, acho que concordo e a obsessão oscila entre os dois, é a eterna vontade humana a lutar com o destino. Este texto é uma boa reflexão sobre isso.
Maria João

 
At 9:05 da tarde, Blogger hmbf said...

Não concorda, e faz muito bem...

 

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