MUDAR DE CANAL
Um dos argumentos mais vulgares quando se discute a qualidade dos programas de televisão é o de que só vê quem quer. Reduzido ao absurdo, este argumento aparece geralmente enunciado da seguinte forma: podes sempre mudar de canal. A possibilidade é inegável, mas o argumento é falacioso. Revela ingenuidade, quando não estupidez. Vamos pensar um exemplo extremo que nada tenha que ver com televisão. É verdade que as pessoas podem sempre evitar a vida se não gostarem de viver, podem sempre desviar o olhar dos cancros se pela degradação dos cancros não se quiserem deixar ferir, podem sempre precaver-se de todo o tipo de agressões recolhendo-se num mosteiro, fazendo casa num deserto, enterrando a cabeça na areia. São sempre possibilidades em aberto e inegavelmente tentadoras neste mundo em que vivemos. A mim, por exemplo, chateia-me imenso a publicidade. Eu podia não ter e-mail, podia não ter caixa de correio postal, podia não andar na rua, evitando, desse modo, os inúmeros outdoors que se me impõem à vista, podia prescindir do telemóvel, dos meios de comunicação social, podia tornar-me eremita, anacoreta. A verdade é que a publicidade invade o meu espaço todos os dias, a toda a hora, de todas e mais algumas maneiras. A luta é inglória. Eu nunca invadi o espaço da publicidade mas ela invade o meu sem que me seja possível proteger-me dessa invasão. Posso sempre mudar de canal, claro. Posso sempre fechar-me no quarto e definhar. Mas se quiser viver, ambição e direito que ninguém me pode negar, tenho que aprender a viver com a publicidade. Sou eu quem cede. Passemos agora o mesmo problema para a televisão. Eu já cedi à publicidade, pelo que tento tornar-me indiferente às horas de publicidade que a televisão me impinge entre os meus programas preferidos. São cada vez menos, é certo. Por isso raramente vejo televisão. Além disso, tenho apenas 4 canais. Não tenho dinheiro que sustente o luxo que é poder mudar de canal as vezes que se quiser, quando se quiser, como se quiser. Eu só tenho 4 canais e pago para isso. Se num canal está a ser exibido um programa que fere a minha sensibilidade, eu posso tentar outros três. O problema é se nesses outros três canais estão a dar programas que ferem igualmente a minha sensibilidade. Suponhamos que não gosto de tourada. Mudo da SIC, onde está a dar um programa chamado “O Momento da Verdade”, para a RTP 1, onde está a ser transmitida, em directo, uma tourada. Resolvo então experimentar a TVI, onde passa mais um episódio de uma dessas telenovelas portuguesas intragáveis. Finalmente, passo pela RTP2. Nada feito. Na 2 estão a transmitir notícias que eu já vi, comentadas por fazedores de opinião que eu não quero ver nem ouvir. Bem, posso sempre desligar a televisão e ler um bom livro. Posso vir para o computador escrever um post sobre os meus dilemas. Posso alugar um filme, ouvir um bom disco, posso ir dormir. Ou talvez não. Eu estou de visita aos meus sogros, estou no café onde vou beber a bica, estou em casa de uns amigos, estou, como aconteceu ontem, num restaurante a comemorar uma porrada de anos de casados dos meus pais. Parece algo pretensioso, mesmo impertinente, exigir-lhes que mudem de canal ou apaguem a televisão só porque eu sou um rapaz sensível à estupidez. Eles vão achar-me arrogante, vão pagar-se da minha arrogância, mais tarde ou mais cedo, atirando-me à cara o meu carácter altivo. Que fazer? Um tipo cede. Posso evitar o restaurante que tem a televisão ligada. Mas não posso. Estou ali a convite de pessoas que muito estimo. Já cedi à publicidade, que mal fará ceder a um programa obtuso? Isto prova a existência de circunstâncias em que mudar de canal não chega. Talvez a pensar nisso mesmo, ou talvez não, nunca passou pela cabeça de ninguém liberalizar radicalmente a programação das televisões. Que mal haveria em transmitir um bom filme pornográfico em vez de um programa como “O Momento da Verdade”? Por que não um programa com criancinhas diabólicas a abaterem animais indefesos? Que tal um concurso de arrotos, peidos e escarradelas? Suicídios em directo? Por que não? O mercado que ditasse as regras. Quem não quisesse ver, isso mesmo, mudaria de canal. Ou talvez não.
P.S.: a imagem no topo reproduz a capa do meu livro Estórias Domésticas (E Outros Problemas), o qual pode ser adquirido nas melhores livrarias do país ou encomendado directamente ao editor. Quiçá a leitura do mesmo não seja uma boa alternativa à estupidificação televisionada. Uns dirão que não, outros dirão que sim. Eu sugiro-lhe que experimente. Vai ver que custa menos do que mudar de canal.
P.S.: a imagem no topo reproduz a capa do meu livro Estórias Domésticas (E Outros Problemas), o qual pode ser adquirido nas melhores livrarias do país ou encomendado directamente ao editor. Quiçá a leitura do mesmo não seja uma boa alternativa à estupidificação televisionada. Uns dirão que não, outros dirão que sim. Eu sugiro-lhe que experimente. Vai ver que custa menos do que mudar de canal.
3 Comments:
Isto é a versão intelectual do "Amor, amor, desliga a televisão" da Claudisabel.
só reparei agora. os "ventilan". ainda ando com ele no bolso, pelo sim pelo não.
Ó anónimo, essa canção é da Micaela, não da Claudisabel. Como é da autoria do Ricardo Landum, só falta saber se é mais um plágio como os do Tony Carreira.
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