3.3.08

MARIA GABRIELA LLANSOL (1931-2008)


Sinto sempre algum transtorno com a notícia da morte de um artista ou de um escritor que conheço. Não no sentido privado de conhecer, apenas no sentido público de conhecer. No sentido privado conhecemos pessoas, aprofundamos amizades, desfrutamos dos vícios e das virtudes de cada um, amamos e odiamos. No sentido público apenas conhecemos obras, palavras, imagens, sons, apenas conhecemos o fruto do trabalho, um fruto que, por mais que se confunda com aquele que o plantou e amanhou, nunca esgota o ser humano que lhe deu vida. Nos últimos tempos, têm sido muitos os autores a desaparecerem da nossa geografia pessoal. Fiquemo-nos pelos portugueses: Luiz Pacheco (1925-2008), Eduardo Prado Coelho (1944-2007), Alface (1949-2007), Alberto de Lacerda (1928-2007), Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), Mário Cesariny (1923-2006), Fernando Gil (1937-2006), Álvaro Lapa (1939-2006), António Gancho (1940-2005), Eugénio de Andrade (1923-2005), Fernanda Botelho (1926-2007)… E agora Maria Gabriela Llansol (1931-2008). Apreciemos mais ou menos a obra que nos deixaram, não podemos senão atestar a pobreza crescente de um país onde um belo par de pernas faz uma boa actriz e um pivot de televisão facilmente se transforma no pão-nosso-de-cada-dia de editoras desesperadamente à procura de consumidores de livros. Llansol viveu na margem desse mundo supérfluo e superficial, mentecapto e acéfalo, de notoriedades efémeras, fogos-fátuos, famas de á-bê-cê, cânones estupidificantes. Algum reconhecimento da sua obra inspirou controvérsia num meio que, querendo fazer-nos passar por carneiros moles, raramente escapa ao papelinho de actor secundário na tragicomédia desse tal mundo supracitado. Foi a ficcionista portuguesa que mais li até hoje, o que, no meu caso particular, é-me especialmente relevante pelo facto de ser um leitor deveras preguiçoso quando se trata de ficção. Encontro na estante Os Pregos na Erva (1962), O Livro das Comunidades (1977), Causa Amante (1984), Um Falcão no Punho (1985), Contos do Mal Errante (1986), Da Sebe ao Ser (1988), Amar um Cão (1990), Um Beijo Dado Mais Tarde (1991), Hölder, de Hölderlin (1993), Lisboaleipzig 1 – O Encontro Inesperado do Diverso (1994), Lisboaleipzig 2 – O Ensaio de Música (1994), Ardente Texto Joshua (1999) e O Jogo da Liberdade da Alma (2003). Não é sequer metade da obra de Llansol, mas já é qualquer coisa. O suficiente para querer ler mais, para perceber que se trata de uma leitura continuamente desafiante, uma leitura para lá dos géneros, dos catálogos, das convenções, talvez a mais musical de todas as leituras:


Seguindo o meu olhar até aos lábios de Bach, há sempre um espaço subterrâneo, uma fala que perscruta a sua boca aberta.
Baixo os olhos sobre as claridades cintilantes, enamoradas, visualizo um volume que, na minha língua, deve ter um nome. Procuro então um outro volume para que não encontro palavras, ou superfície e imagem:
água livre, nem de rio, nem de mar, nem de lago, nem de nevoeiro, água repleta de silêncio no momento do fogo, ou talvez clima vulcânico no centro das terras. Designações sobrepostas de múltiplas línguas voltam à unidade, é a explosão do nascimento do tempo; é o seu princípio de fuga estelar no seio das criaturas; (levanta-se uma brisa, sua descrição é impensável para além de uma meditação de neblina).

É uma visão de deleite tão intenso que fios de água escorrem por entre o fogo, que é circundante e leve. Ali estão compreendidos os seres vivos desde o início dos séculos ao fim das carreiras mortais e, sobre eles, os seres mortos não se distinguem da palpitação consumitiva: meus companheiros vêem por mim,
a quem eu cerro as pálpebras; acordo abrindo os olhos.

Maria Gabriela Llansol, in Um Falcão no Punho, 2.ª edição, Relógio D’Água, 1998.

6 Comments:

At 5:31 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Também me caiu o coração aos pés quando li a notícia.
Sara Monteiro

 
At 10:15 da tarde, Blogger marta (doavesso) said...

Henrique, é muito bom conhecer-te a ti, e vir cá com a certeza de que terias escrito algo sobre a Llansol. E aqui está o que esperava. Partilho a tua visão, e a Llansol é também a escritora portuguesa que mais li até hoje. É um universo de afectos que vivo há muito tempo.

um beijo neste dia de perda, mas como ela dizia, é dela agora "a sensualidade do invísivel".

 
At 12:03 da tarde, Blogger Darlan M Cunha said...

Prezado Sr. Henrique Fialho,

uma vez mais comento aqui - desta vez, para abraçar Portugal e, em todos os lugares do mundo, todas as pessoas capazes de se enriquecerem com o que outras - como Maria Gabriela Llansol - têm a dizer.

Li os livros: Contos do Mal Errante, Amar Um Cão, Um Beijo Dado Mais Tarde.

 
At 11:26 da tarde, Blogger fragole di bosco said...

O tempo pergunta ao tempo
Quanto tempo o tempo tem.
O tempo responde ao tempo
Que o tempo tem tanto tempo
Quanto tempo o tempo tem.

 
At 3:17 da manhã, Blogger J. D. S. said...

Desde que morreu, a Llansol tem, ao serviço do muito que deixou escrito (30 e tal mil páginas, os diários, por exemplo), gente empenhada em fazer dela não se percebe bem o quê. O Eduardo Lourenço apostou que ela seria o próximo grande fenómeno depois do Pessoa. E o Espaço Llansol bem se esforça por fazer dela uma espécie de Santinha a quem se deve devoção, tão excelente ela será. A mim aborreceu-me bastante quando a li.

 
At 3:19 da manhã, Blogger J. D. S. said...

Desde que morreu, a Llansol tem, ao serviço do muito que deixou escrito (30 e tal mil páginas, os diários, por exemplo), gente empenhada em fazer dela não se percebe bem o quê. O Eduardo Lourenço apostou que ela seria o próximo grande fenómeno depois do Pessoa. E o Espaço Llansol bem se esforça por fazer dela uma espécie de Santinha a quem se deve devoção, tão excelente ela será. A mim aborreceu-me bastante quando a li.

 

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