Fragmento # 19 – Da música
“Onde encontrarmos algo que se pareça com a música devemos deter-nos; na vida não existe nada que valha mais a pena alcançar do que o sentimento da música, o sentimento de ressonância e de uma vida com ritmo, da justificação harmónica da existência. Onde houver tudo isto, poderá haver ainda coisas por explicar; a verdade é que ainda há muito por explicar em todos nós.”
Hermann Hesse in carta a Ludwig Renner, (publicada em Música, p-169, ed. Difel, Lisboa 2003).
Hermann Hesse in carta a Ludwig Renner, (publicada em Música, p-169, ed. Difel, Lisboa 2003).
O sentimento de ressonância, de uma vida com ritmo, tem origem intra-uterina, num ambiente aquático que envolve e protege o embrião do ruidoso mundo exterior. Pascal Quinard em La haine de la musique (p-120, Édition Calmann-Lévy, Paris 1996) descreveu o ambiente sonoro do embrião como um “ronronar surdo, doce e grave”. No espaço interior do útero, o coração do feto, sincronizado com a mãe, consente e suporta os pulsares vitais de ambos. A existência intra-uterina tem um constante e grave pano de fundo, comparável a um “sopro surdo”(ibidem) onde existe uma audição longínqua do ruído do mundo exterior, que a placenta absorve e abafa, e sobre o qual apenas se eleva a voz da mãe. A música tem um carácter oceânico, que remete para a existência intra-uterina, para o ritmo interior da intimidade, para a sincronização das pulsões vitais, para um ambiente sonoro e longínquo que harmoniza a existência. A audição intra-uterina é mediada por uma envolvência aquática, que silencia os excessos exteriores, permitindo um sentimento de ressonância, um bem-estar flutuante, um interior propício ao desenvolvimento da vida, ao crescimento e fortalecimento do feto, preparando-o para a turbulência sonora do mundo. Deste modo, é uma iniciação silenciosa, envolvendo a fragilidade da origem, silêncio que também contém ruído no som reconfortante que impõe silêncio em todos os outros ruídos, que impõe silêncio à algazarra informe do mundo. A música que faz tanto ruído também é uma espécie de silêncio - “faz-se silêncio para escutar a música; faz-se silêncio para escutar a melodia do silêncio” (Vladimir Jankélévitch, La musique et l´ineffable, p-172, Édition du Seuil, Paris 1983). A música eleva a sua voz no ruído do mundo, ocupando o espaço vibrante como a voz da mãe se eleva sobre o fundo ritmado e grave no interior do útero. A escuta desta voz familiar e distante impõe silêncio nos barulhos em seu redor porque é um ruído diferente, compassado e melodioso. A música é som ordenado e melodioso, que nasce do silêncio, que vive rodeada dele, transporta silêncio no seu interior, na media em que é alternância organizada de som e silêncio e por fim, retorna ao silêncio. A música requer assim uma forma de escutar e entender privilegiada.
Maria João
6 Comments:
por isso e que gosto dos sigur ros, talvez dos musicos recentes que se aproximam mais do chocalhar da agua interna.
Rui Costa
Ó Rui, tenho muita dificuldade em entender o que escreves - gostas de "seguros"? Chocalhar de água, o que é isso?
Maria joão
nunca consegui fazer o silencio nesseçário, a minha cabeça anda sempre a mil à hora.
é pena
Aurora
SIGUR ROS, a banda da Islandia que faz musica "intra-uterina", nao conheces?
Rui Costa
Não Rui, bandas só conheço as filarmónicas e mal as vejo ou oiço começo logo a chorar, deve ser intra-uterino.
Da Islândia, ilha dos vulcões a norte, musgo verde e pedras negras vulcanicas? Sim, sim, tenho um amigo que foi lá e mostrou-me imagens, de facto também me deu a ouvir um som aquatico estranho que gostei muito, deve ser isso!
Já tive oportunidade de cantar peças tradicionais da Islândia no coro Ricercare, harmonizadas por um jovem compositor de lá, no Festival de Música das Beira em 2002. Eram muito interessantes, misteriosas, tinham o ritmo silenciosa da neve quando caí, fiquei cheia de curiosidade em conhecer essa ilha muito ao norte.
hás-de mostrar-me esses Sigur Ros.
Beijinhos
Maria João
no topo, música intra-uterina para a maria joão
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