23.11.05

Fragmento # 21 - Anjo dourado

Cruzei-me em pleno verão com um anjo de caracóis dourados, olhos cor de mel e mau feitio, aliás, com um rugir de leão; um anjo eborense, quase da minha geração, nunca me apareceu numa ruína de pedra, distraída como sou nunca dei pela sua existência na cidade das muralhas, devia habitar fora delas. Surgiu sim em Lisboa, à minha espera para ensaiarmos; um anjo pianista para me acompanhar a cantar num casamento. Ao telefone perguntou-me se eu era a noiva, deve ser doido, respondi-lhe que as noivas não cantam; ele resmungava com os pagamentos, que tinham de lhe pagar a viagem, o casamento não era o meu, estava apenas a tratar da música para o evento, também podia tratar de boleias e outros afins. Apanhei o autocarro, era necessário comprar um bilhete para a viagem, só tinha 5 Euros para pagar, o motorista sem troco, disse para me sentar e esperar, talvez conseguisse trocar o dinheiro com outro passageiro e eu não me podia atrasar; então sentei-me e uma senhora muito querida veio oferecer-me um módulo para a viagem que não recusei e agradeci, foi um gesto bonito, não é comum e quase me comoveu. O ser lá estava à espera, na última paragem da linha, era alto, sólido, tinha força a mais, com um ar alentejano profundo. Encaminhou-me para onde vivia, um rés-do-chão escuro, o piano ocupava-lhe o espaço da sala, o piano era a sua casa, o piano estava entre nós. Fiquei atrapalhada, ele notou que não tinha estudado as peças, estava um calor insuportável, só suava e ele rugia e resmungava, falava mal dos “amadores”. Deu-me uma rebocada que me deixou meia tonta, fiquei muito insegura. Combinámos outro ensaio e ele tentou ser mais simpático, tinha um brilhozinho qualquer para além do mau feitio, acompanhou-me até à paragem do autocarro, foi educado. No caminho para casa fiquei a pensar como poderia corromper este anjo, ele tinha a Bíblia sobre o piano, a Bíblia também estava entre nós. Lembrei-me de cozinhar um bolo de laranja e levar um bocado (um belo pecado) para ele provar no ensaio seguinte; ninguém fica indiferente ao meu bolo de laranja, quando provam querem sempre mais. Também faço um de chocolate que é muito potente. Nessa noite, tinha ensaio com o Coro de Câmara e no intervalo perguntei aos tenores se gostavam mais do meu bolo de laranja ou de chocolate e por unanimidade foi eleito o de laranja. Os tenores são quase sempre uns grandes gulosos e especialistas em sobremesas. Os baixos gostam mesmo é de comer o salgado, são uns belos garfos, não dão muito nos doces, apreciam sim bons vinhos e fumam. Não sei se estas características se podem generalizar em relação à cor de voz masculina, mas achei que devia perguntar aos tenores, visto que o anjo também tinha uma voz clara, ele também deve ser guloso. Os tenores ficaram cheios de curiosidade sobre o que se passava, o que andava a tramar, mas não lhes disse nada, deixei-os com água na boca – os tenores costumam também ser uns grandes coscuvilheiros, os graves pelo contrário são mais discretos e envolventes, estão sempre a contar anedotas e piadas entre eles, sem darem muito nas vistas.

Maria João