15.1.06

Alquimia do béu-béu # 28

Arraial
Naquele tempo o arraial era diferente. Havia foguetes e uma banda a tocar na cauda da procissão. Os foguetes desapareceram por imperativo governamental. Motivo: os fogos. Quanto à banda, mero equívoco. No ano passado, os encarregados da messe contrataram a banda. De boca, claro está. Combinaram a coisa para agora mas com o passar dos meses os assopradores esqueceram-se. As santinhas nos andores ficaram neste triste silêncio, tudo por causa do esquecimento. Ou por causa dos contratos de boca. Vá-se saber. Nem foguetes, nem banda. Restam as gémeas a ensaiar um playback no carroçado. Filhas da Maria Suália, aquela que andava a ser emparelhada com uma brasileira que o homem conheceu pela Internet. É provável que se lembrem dela na televisão, num programa sobre sexo a dizer num vox populi que gostava de o fazer com a boca. Há quem diga que o marido se lhe escapou porque ela não o fazia só com a boca. Ferrava-lhe os dentes na cabecinha que eram dores de parir. Seja como for, o tipo era um cata-vento. Coisa de família, dizem. Sabia rir quando era para rir; era delicado quando assim convinha; exibia competências alheias, se fosse caso disso. Em suma: desenrascado com as mulheres. Para mim nunca passou de um biltre, um desprezível bajulador. Dizem na cidade que os lojistas fogem dele como quem se arrepia de tempestades. Quis-se perto dos outros na aparência, o débil, e agora perdeu-se de si. Adiante. O senhor Presidente da Junta já se pavoneia pelo pelado. Mete-se com o Cipriano: «Arranha lá um fado que há muito não cantas!» Ao que o castiço retorque: «’Tou farto de cantar pa’ paneleiros.» Sente-se o incómodo, apesar do presidente fingir que não ouviu a epístola. Sabe fazer-se despercebido. Tem arte. Já o velho Cipriano, é um espalha-brasas do piorio. Não se lhe conhece endecha, discórdia ou amena conversação sem remate ordinário. Todos o escutam. Uns atentos, outros afogados de fastio. Mas todos o escutam. Nas cartas já há bulha. Rica parelha! Taranta, de olhos cavados, alto de pernas e esguio no tronco. Picota, semblante alongado no discurso, fala como se berrasse. Ajeita-se nos engates. Dizem que anda a comer as gémeas. Houve mesmo quem tivesse afiançado tê-lo visto entre parras a foder o cu a uma delas. Isto é assim: todos vêem, ninguém prova, há alguns que se vêm. É como nas cartas. Batem-nas como quem quebra nozes. Bons de boca no gargalo, não hão-de ser vencidos pelo sono. Há quem argumente que possuem genialidade nos dedos. Nota-se. Na forma como baralham o maço; como pegam na mini; como acendem o cigarro, pendurado ao canto da boca enquanto olham de baixo para cima os vincos na testa dos adversários. São espertos, podiam ser inteligentes. Há um certo lirismo na forma como vivem, nessa modorrenta condição de ir vivendo apenas. Em contramão, na rua principal, Cu de Chumbo vem à pressa na direcção do presidente. Atravessa-se-lhe um camião pelo meio. Nem as santinhas lhe valeram. Costelas sem arranjo, perna pó galheta, quilómetros de guita em vários pontos do corpo rasgado. É a vida, o que é que se há-de fazer... O arraial perdura. Com o Presidente da Junta engabelado. Recusa-se a trabalhar mais que as oito horas diárias exigidas pela lei. «Quem for garganeiro, que o faça.» - diz. A rapaziada vai de alho e de algodão doce, apanhadas, escondidas, toca e foge. «Aqui vai alho!» - gritam, para que todos os ouçam e vejam. Sabem-na toda. Pode ser que mais tarde lhes calhe um chupa-chupa na rifa. Pode ser que sim. Enquanto tal, vou eu à parede. Apetece-me fechar os olhos, nem que por meros segundos.
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