"Era uma mulher belíssima, profundamente dócil, com um discurso coerente, assertivo e muito informado"
Confesso haver três ou quatro dogmas pelos quais procuro reger as minhas acções. Um desses dogmas parte do princípio de que nenhum homem nasce já feito, sendo o seu desenvolvimento resultado de uma relação permanente entre as potencialidades inatas e as influências do meio. Eu não acredito que Hitler tenha nascido a odiar judeus, assim como não acredito que um indivíduo nasça criminoso. Um ser humano, para mim, torna-se naquilo que é, faz-se, e, por isso mesmo, não deve ser considerado o último responsável por aquilo em que se torna nem lhe deve ser negada a possibilidade de, pelo esforço pessoal e alheio, poder modificar-se. Há muito que um aforismo de Nietzsche, intitulado Execução, me persegue moralmente: «Como sucede que cada execução nos ofenda mais que um assassínio? É a frieza dos juízos, a penosa preparação, a noção de que, neste caso, um homem é utilizado como um meio para intimidar outros. Pois a culpa não é punida, mesmo que a houvesse: ela reside nos educadores, nos pais, nas companhias, em nós, não no assassino – eu refiro-me às circunstâncias motivadoras.» No julgamento de um qualquer crime, seja esse julgamento de tipo moral ou judicial, o que pesa sempre mais são, julgo eu, as circunstâncias motivadoras. Interrogo-me então sobre o que terá motivado 13 adolescentes, com idades compreendidas entre os 13 e os 16 anos, a assassinarem uma mulher recentemente. Parto do princípio que a assassinaram porque um dos rapazes confessou o crime cometido em grupo; chamo mulher à vítima porque assim se lhe referiram as pessoas mais próximas; digo que foram 13 adolescentes porque, tendo eles entre 13 e 16 anos, não me parece acertado chamar-se-lhes (ainda) crianças ou (já) adultos. Acresce que a imprensa descreve a mulher assassinada como sendo «um transsexual sem-abrigo e toxicodependente», sendo também referidas as actividades de travesti e prostituto. Os adolescentes implicados são descritos como tendo raças diferentes, sendo internos em instituições de protecção de jovens em risco, oriundos de vários pontos do país e, alguns deles, «conhecidos do Tribunal por furtos em centros comerciais e por viajarem de metro sem bilhete». Trata-se, sem dúvida, de adolescentes problemáticos, com códigos morais muito específicos, a maior parte deles sem família, sendo que apenas um, de 16 anos, é imputável à luz da lei portuguesa. Há quem lhes tenha chamado gang, o que me parece forçado mas não descuro. Há quem se apresse a denunciar no caso motivações homofóbicas, o que se me apresenta como sendo precipitado. Ninguém sabe, para já, da relação que existia entre os adolescentes e a vítima (droga?, prostituição?, troca de favores?, retaliação?, exibicionismo?, selvajaria?, etc). Ninguém sabe. Sabe-se da eventual ocorrência de práticas violentas na instituição de que faziam parte, sabe-se da eventual existência de um pedófilo a assediar frequentemente um dos adolescentes, sabe-se de eventuais, prováveis, parece que, aparentemente, alegadamente… E, na verdade, muito pouco disso nos deveria importar saber. Quanto a mim, o que importa realmente, enquanto cidadão, enquanto professor, é salientar o facto de que mais uma vez nos lembramos de cerca de 15 700 jovens internados em lares de protecção pelas piores razões. São miúdos abandonados que apenas se fazem notar pela desgraça que provocam, nunca pela desgraça em que vivem. Infelizmente, é o país que temos. E assim como temos o país que temos, temos os tais sem abrigo, prostitutos, toxicodependentes, o que seja, a sobreviverem na mesma penumbra sem a menor atenção daqueles que apenas se lembram deles quando é para comentar a miséria. Querem apostar comigo que, daqui a uns meses, já ninguém se lembrará “do travesti” brutalmente assassinado no Porto por “um gang de delinquentes”? O circo que está montado à volta do assunto, isso mesmo indica. Vamos passar os próximos dias a discutir o que não é connosco, o que é com a polícia e com os tribunais, para nos esquecermos de discutir o que realmente nos diz respeito: como andamos a educar os nossos jovens, todos, não apenas os de colégio privado e escola pública, mas também aqueles que crescem e se desenvolvem na nossa indiferença sem que saibamos, nem queiramos saber, com que referências, com que padrões morais, com que práticas, com que agentes de socialização a trabalharem nesse sentido. E quem fala assim dos jovens, diz o mesmo sobre essas mulheres belíssimas, profundamente dóceis, com discursos coerentes, assertivos e muito informados que habitam prédios tão abandonados quanto elas. Coloquem só esta hipótese: se um dos adolescentes, o único que tem pai – assim escutei na televisão a uma pedopsiquiatria -, não tivesse confessado o crime, quem se lembraria de Gisberta?
4 Comments:
é mesmo verdade. acabaste de escrever quilo que eu escreveria.
lembro-me de feios porcos e maus. as pessoas sao quasesempre fruto do caldo social onde se desenvolvem. há muita exclusao e agora todos contam as istorias que lhe dão jeito...
Quando se diz que em Portugal há um milhão de pobres será que ninguém percebe que isso ignifica que, em cada 5 pessoas com quem nos cruzamos (por exemplo, numa sala de aula até ao 9º ano) 1 é pobre?
E será que ninguém também percebe o que significa isto de drama de vida para além da frieza dos números?
(No país que atribui reformas milionárias a indivíduos bem colocados socialmente, ricos, activos e ainda novos?)
E que, na miséria, os primeiros a apanhar com a sua violência são as crianças?
tocaste no cerne da questão, henrique. ontem no expresso li uma frase da professora dum dos miúdos: "Estar numa instituição não os faz piores, são apenas mais desgraçados". Esta frase dá que pensar...
Muito obrigado pelos comentários.
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