21.5.06

A cólera

A cólera visitou-nos no começo da estação. Esculpiu-nos a vontade, trabalhou-nos o coração como alguns artistas trabalham a pedra. Logo após a primeira noite, ao calor do fogo descoberto a cólera suprimiu a corrente que nos ligava e separou-nos para sempre. A cólera condenou-nos aos esquemas, às estruturas de borracha, a uma vida de sombra. Quando finalmente cairmos de novo em nós, vislumbraremos a mancha da cólera estendida sobre todos os actos que nos desuniram. Mas ela não é causa, não é motivo. Ela não é intenção nem finalidade. Ela é o que nasce de não nos contentarmos com a miséria e de nos querermos sempre além do que a natureza permite. Como uma poça de óleo espalhada no asfalto, ela é o que nos mete os pés a derrapar para as margens; como a geada num tapete de mármore, ela é o que nos faz patinar até ao choque final, brutal, corpo com corpo. Até ao sangue. Longe daquilo que algum dia nos terá unido, pode a cólera reinar. E, convenhamos, tem reinado mais do que seria desejável. Porque tem sido táctica (por vezes de morte). Porque tem sido estratégia (por vezes de poder). Porque tem passeado pelo palco da vida como uma metáfora da morte, bem mais real que a própria morte. Porque tem-se metamorfoseado de astúcia nas bocas dos especialistas. Porque tem sido jogo ao serviço da acuidade (por vezes económica). Porque à maneira dos muros que circunscrevem os povos, ela tem traçado a geografia dos ideais sem identidade. Desmoronando o amor, a cumplicidade, a solidariedade, aquilo que nos une, com o talento transbordante dos arautos da miséria. Impõe-se que chamemos à forca a moral da cólera. Essa que amplia o ódio por dentro da fé, transformando os homens em lobos disfarçados de santos; essa que dispõe dos indivíduos, na vida quotidiana, como se eles fossem instrumentos, utensílios ao serviço duma obra que jamais desfrutarão; essa que sujeita a vontade a ideologias afundadas no cínico pântano dos interesses financeiros. A cólera condenou-nos a uma imensa solidão. Estejamos nós desatentos, levar-nos-á a uma eterna servidão.

22 de Fevereiro de 2005

1 Comments:

At 2:52 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Excelente texto!
Não diria melhor!
Um abraço

 

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