31.5.06

Para reflectir com ponderação:

dama said...

«Lamento fazer esta objecção de forma leviana, isto é, sem ter tempo de apresentar grandes argumentos. No entanto, embora, como bem atesta o exemplo de uma George Elliott, nem toda a escrita por mulheres seja feminina (ou mesmo feminista, se quisermos), existe poesia (e literatura) de género a partir do momento em que a/o poeta decide escrever explorando esse conceito. É assim que também existe uma literatura gay. Por outro lado, há estudos de psicologia e linguística neuronal que parecem apontar para a faculdade da linguagem ter actualizações diferentes em mulheres e homens. Assim sendo, faz sentido o argumento, apresentado nomeadamente por Adrienne Rich em "When we Dead Awaken: Writing as Re-vision" (1971) em que se defende que as mulheres precisam de encontrar formas de encontrar voz própria e contornar (sem os rejeitar) os discursos e convenções literários quasi-exclusivamente determinados pelos homens ao longo de milénios. Virginia Woolf também pode ser chamada a esta discussão que, reconheço, não é nada linear. Já agora, tendo lidos atentamente os poemas de mulheres que aqui publicaste, houve uma coisa em que reparei: mesmo nas mulheres contemporâneas (que foram a maioria aqui exposta) há um recurso à prosódia e a efeitos de sonoridade muito mais acentuado do que nos seus congéneres masculinos (especialmente os da poesia dita do real; aliás, A. Lopes, que até pode ser alinhada nesta poesia, é também um exemplo do comprazimento na cadeia sonora). E fica a pergunta: será isso porque as mulheres escritoras têm necessidade de se afirmar como exímias esgrimistas naquilo que durante muito tempo foi instaurado (pelos homens) como a definição do poético, ou antes por uma forte identificação com um tipo de literatura oral (lenga-lengas, trava-línguas, canções mais ou menos nonsense) que vem da infância e que, de modo geral, são as mulheres que reproduzem aos filhos, assim mantendo o contacto com esse repositório? Por último, a julgar pelas amostras, não me parece nada que o tema da maternidade seja um feudo do feminino. Antes pelo contrário. Basta ver a antologia das 101 noites sobre a "Mãe" (ou lembrar o educador João de Deus) para ver que os homens muito têm discorrido, ou tres-corrido sobre o tema. Posso ainda lembrar o recente livro francês, supostamente organizado por uma suposta libertária de esquerda, Patricia Latour, com o título "101 Poèmes sur les femmes", em que cerca de 80% das composições são de autoria masculina.»

10 Comments:

At 1:30 da tarde, Blogger hmbf said...

Quero apenas esclarecer o seguinte:

1) A minha desconfiança acerca de uma escrita de género, no caso feminina, não pode ser contradita pela existência de quem se aplique na defesa de uma escrita de género. Não me é indiferente essa luta, embora julgue ser uma luta pouco consistente. (Tal como a de uma “escrita gay”. Há uma escrita que é, claramente, de pendor homossexual. Mas isso não faz dela, por si só, uma “escrita gay”. Um poema de amor é um poema de amor. Não tem de ser um poema de amor homossexual, isto porque o amor é o amor. Seja ele “gay” ou não.)

2) Quanto ao argumento de Adrienne Rich, faz-me algum sentido. Mas era importante que se esclarecesse quais são essas «convenções literárias quasi-exclusivamente determinadas pelos homens ao longo de milénios». Repare-se que apenas me limito a não negar à partida uma ciência que desconheço.

3) Eu não disse que o tema da maternidade é um feudo feminino. Limitei-me a constar algo que me parece óbvio: as mulheres abordam temas dificilmente cantáveis pelos homens, e a maternidade é um deles. Dizer que esse tema é dificilmente cantável por homens não nega a existência de homens que o tenham cantado.

Muito obrigado pelo comentário.

 
At 3:34 da tarde, Blogger Filipe Guerra said...

«há um recurso à prosódia e a efeitos de sonoridade muito mais acentuado do que nos seus congéneres contemporâneos»: esta não percebi ou, se é o que penso, é preciso prová-lo. Já Mandelstam criticava Tsvetáeva e as outras gajas que escreviam poemas por «gritarem» em vez de falarem. E quando lhe aparecia uma que falava em «voz humana normal», ele, pumba, dizia que ela tinha uma «poesia viril». Mas diga-se de passagem que Mandelstam dizia o mesmo dos homens, e que a frase um tanto misteriosa da dama ficaria bem na boca do grande russo se em vez de «prosódia» dissesse «prosápia».

 
At 4:24 da tarde, Blogger dama said...

Amigos, n/ é p/fugir c/o rabo à seringa, mas n/ tenho mm tempo. D qq forma, concordo com quase tudo, numa discussão q já reiterei não ser nada linear. (Lembrei-me agora q na poesia portuguesa o poeta q mais fala de menstruação é talvez o H Helder, possivelmente em paridade c/ a M Teresa Horta...). Obrigada, Henrique, pelo destaq ao post, m/ já agora faz lá a errata: n/ é "congéneres contemporâneos" m/ "congéneres masculnos". Relativamente aos efeitos de sonoridade e prosódia eu estava a falar a partir da amostra que o Henrique nos deu no último mês ou mais. Beijos.

 
At 5:07 da tarde, Blogger dama said...

Bom, n há hipótese, sou mesmo relapsa. É só p dizer q na verdade n concordo contigo, henrique, no ponto 1. Tenho p mim q os géneros, literários ou biológicos, são taxonomias culturais. Como tal, podem ser instauradas por agentes culturais, como um escritor influente, ou por um lobby de publicistas, ou p quem quer q possa dar cartas na matéria (é sofística e é pragmática, m é mm assim). Delimitando-se um género como "ficção científica" ou "narrativa gótica" ou "prosema" tb se pode delimitar o da "escrita feminina", o da "escrita feminista" ou da "escrita gay" ou qq coisa q o valha dito por outros nomes mais sonantes de quem possa soar. O q, aliás, dá mt rendimento, matéria e postos de trabalho à área das humanidades. Bjs outra vez.

 
At 5:16 da tarde, Anonymous Anónimo said...

henrique:

1.uma coisa é tu achares que não há ou não deve haver "textos" e "textas" (por isto ser dualista); outra coisa é perceber que dizer "textos" já é participar no dualismo, porque o "discurso" que permitiu a formação da palavra "textos" representa a eleição de um dos pólos do dualismo (sendo o pólo eleito o masculino, claro).

2.Há vários "feminismos", como há várias escritas "gay". Quando se designa as coisas desta forma pretende-se acentuar o seu carácter político - o seu posicionamento face a um sistema de poder, a um "discurso" dominante. Há "feminismos" que não prescindem da acentuação das diferenças entre os sexos, como há feminismos que se apoiam na acentuação das diferenças para vincarem a sua posição no tal jogo de poder.

3. Ou seja: Quem diz que há "escrita gay" penso que quer afirmar um posicionamento "político" face à questão gender etc. - e quer fazê-lo de uma forma que releve uma certa diferença (que pode ser simplesmente a diferença de pertencer a um grupo minoritário que não quer ser discriminado). Os processos, temas e truques utilizados nessa tal literatura "gay" ou "feminista" ou outra coisa qualquer, tornam-se importantes sobretudo na medida em que se revelam coerentes ou eficazes relativamente a uma determinada atitude "política" - a estética a reflectir uma ética de acção (escrever, dizer) e comprometimento (defender, apoiar os elementos de uma tribo política)
Rui Costa

 
At 6:41 da tarde, Blogger dama said...

Concordo c o Rui. Entretanto, deixo 1 poema "rap" (género musical) q uma vez escrevi em inglês (provavel/ c/ erros). Qd tiver tempo para a aperfeiçoar, afixo tradução lá no blog.

Resentful Women

Maybe deep down I believe
human beings will be pretty
much the same everywhere, but then
I figure women are the more.
The things we share,
the dustcloth, the tablecloth, the clothesline,
the shopping list, the marinade, the stove,
the basin, we cook our pans and rinse’em,
our errands, our bags, our eggs.

Surely they, for the most part,
shave their chins and love
the outdoors, but they are doctors,
farmmen, stockmen, stockbrokers and the
whole gamut, we are
all housetight, and

still don’t seem to agree, writing
this will do no good, narrow-minded
border etching, dualistic bullshit,
and poetry is descended from angels
who we all know are sexless.

Fine. Why do I bother,
I do my stuff and love my man,
have nothing nasty to complain,
he feeds my hunger so why
do I snarl? It’s not my shoes
I feel tight in, it’s your tarpaulins,
your high-heels, resentful women
I take in.
Your witty snippets, cracking the dishes,
your lipstick anger, your breasts
ajar, at the coffee-table
poisoning the air.

But when I talk of prejudice inherited,
of founding fathers, of floundering mothers,
you rage, you snap,
O for christ’s sake ya full of crap
what gives you the right to patronize?
I pay my bill, I rise, I pack, away
we break,

it was
my mistake.

 
At 6:42 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Esta discussão é deveras interessante. O meu incómodo aqui, confesso, é não ter pensado o suficiente sobre o tema. Também o pouco que li sobre o assunto nada ajuda. Todas as achegas serão, portanto, úteis a uma reflexão que ainda está por fazer. O post pretendia ser mais humilde do que, provavelmente, é. Vou só voltar a insistir nesta tecla: o falar-se em menstruação, parto, mãe, etc., até pela dimensão metafórica que os conceitos adquirem num discurso poético, não nega o facto de certas temáticas serem dificilmente, e não impossivelmente, tratadas por poetas... homens. Lembro-me por exemplo de «Três Mulheres», de Sylvia Plath, livro cuja temática, não necessariamente o tom, é marcadamente feminina. Quanto à “amostra” que eu fui dando, ela está, obviamente, viciada de um esforço de triagem que tem em conta mormente o gosto pessoal. Não aprecio de igual modo todos os poemas que aqui trago, embora todos eles possuam qualquer coisa que me agrada. Quanto à questão do chamado “género literário feminino” ser de ordem cultural, estou de acordo. Por isso mesmo embico com ela. Nada me move contra quem queira fazer discriminações de género (neste contexto), mas irrita-me que a poesia possa ser reduzida a rótulos tão pouco consistentes. Teorias diversas sobre o tema, apresentam sempre vícios e virtudes. Remeto-vos para este interessante texto de João de Mancelos (http://www.mulheres-ps20.ipp.pt/o_sexo_da_escrita.htm). Convém também dizer que distingo “escrita feminista” (com uma componente marcadamente política, como nota o Rui Costa) de “escrita feminina” (distinta das restantes por caracteres de ordem biológica, quanto a mim dificilmente decifráveis em literatura). Só para terminar, servi-mo de palavras de Inês Pedrosa para justificar os meus preconceitos: «Claro que toda a arte tem sexo, como tem coração, cabeça, estômago, bílis – corpo. Mas parece-me absurdamente redutor – e até humilhante – definir uma obra de arte – seja ela um livro, uma peça musical, uma tela ou um filme – pela orientação sexual nela inscrita ou inscrita no corpo do criador. (…)Como acessória é, em se tratando de mulheres escritoras, a questão da chamada “escrita feminina”. Toda a escrita autêntica é simultaneamente masculina e feminina (leiam o prodigioso "Orlando" de Virginia Woolf). No entanto, não há congresso literário, por esse mundo fora, onde não se junte o mulherio num ghetto para discutir, de mulheres para mulheres, os mistérios fascinantes da “escrita feminina”, enquanto os homens – que fazem parte da Literatura com L maiúsculo, ocupam os anfiteatros de honra, debatendo as Grandes Questões da Literatura do Nosso Tempo. Penso, por conseguinte, que o acantonamento dos/as escritores/as homossexuais pode ser-lhes efectivamente prejudicial, como tem sido para as mulheres “o feminino”. Além do mais, esta estratégia discriminatória acaba sempre por favorecer, por efeito de grupo, alguns artistas de menor qualidade que, fora destes sub-grupos, nem seriam considerados – o que, evidentemente, funcionará como discriminação suplementar (negativa) dos artistas que pensam que a sua arte não se cinge às questões de género e/ou orientação.» Demasiado simplista? Talvez. Mas faz sentido.

 
At 6:59 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Camarada Rui, essa conversa do primeiro ponto não faz muito sentido. É um preciosismo. É claro que a dualidade existe em abstracto. Em essência, ela transforma-se em “polaridade”. Mas esta polaridade, quanto a mim, deve ser entendida à luz dos cabalistas, do hermetismo, da filosofia zen, etc. Cito: «Tudo é Duplo; tudo tem pólos; tudo tem o seu oposto; o igual e o desigual são a mesma coisa; os opostos são idênticos em natureza, mas diferentes em grau; os extremos se tocam; todas as verdades são meias-verdades; todos os paradoxos podem ser reconciliados.» (O Caibalion) Ou: «Olhai para o vosso termómetro e vede se podereis descobrir onde termina o calor e começa o frio!» Tese, antítese, síntese. Para mim a poesia é síntese, hermafrodita, androginia. A gente quando escreve, arranca o sexo às coisas. A própria palavra, o conceito, enquanto síntese é já um anjo: não tem sexo. Se as palavras participam de um dualismo (masculino/feminino), é só porque culturalmente a gente começou a olhar assim o mundo. Opondo o céu à terra, o divino ao profano, o amor ao ódio, deus ao diabo, o dia à noite, etc. O que faz com que o substantivo «pedra» seja feminino não é as pedras terem sexo. No limite, eu sou disso mesmo: do sexo das pedras. Sou do crepúsculo. Do amoródio. Já o tenho dito.

 
At 8:10 da tarde, Anonymous Anónimo said...

henrique: não é preciosismo. para a linguagem poder vir a ser não-racista, não-dualista, temos primeiro que alterar o "poder" no mundo, já que a linguagem é linguagem-poder. Não basta dizer que a poesia é hermafrodita e falar do zen. Eu estou a falar da LINGUAGEM e no ano da graça de 2005 a linguagem disponível é dualista (incluindo a linguagem com que o mestre zen, manchando o silêncio e o jejum, pede um café na pastelaria).Porque é que o mestre zen gosta do silêncio? Porque sabe que todas as línguas do mundo põem a pata em cima do mais fraco.

Rui Costa

 
At 8:35 da tarde, Blogger hmbf said...

Rui: se estás a falar de linguagem, tendo a concordar mais contigo. Mas eu entendi o teu primeiro ponto noutro sentido. É que eu estava a falar de poesia. A minha questão é, desde o início, a poesia. E essa, quanto a mim, não tem sexo. Ela é linguagem, mas não se esgota nos convencionalismos da linguagem. Isto em sentido restrito. Porque se me disseres que o próprio silêncio é uma linguagem, então temos um imbróglio do qual dificilmente sairemos. Não confundamos porém língua com linguagem. São coisas, como bem sabes, diversas. A língua define-se, se bem sei, como um código formado por várias leis que permite as pessoas comunicar entre si. Já a linguagem é a representação do pensamento por meio de sinais diversos (palavras, sons, imagens, símbolos). A mim parece-me fazer sentido que a língua resulte desses jogos de poder. Mas isso tem que ser bem explicado. Será que em sociedades matriarcais, a língua é mais feminina? No que respeita à linguagem, entendida como representação do pensamento, ela só é dualista na medida em que há homens e mulheres que pensam e representam o mundo à sua maneira. Mas em arte, cada homem e cada mulher pode representar o mundo como bem entender, libertando-se dos grilhões da língua. Daí que a linguagem artística, poética, seja tão subjectiva. Neste sentido, a linguagem não é dualista. É pluralista. Cada um com a sua e quem quiser que se entenda. :)

 

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