7.7.06

Fragmento #35 – Pátio

ao José de Carvalho Guinapo
Era Setembro da terra molhada ao sul. O pintor habitava o bairro árabe fora de portas, onde as casa eram brancas e secretas, fechadas para as ruas e os portões de metal abriam para pátios interiores, com muros altos e caiados. A cidade das muralhas assombrava os sonhos do pintor, uma cidade em sangue aparecia-lhe num corpo de mulher, vestida de negro e seguia-o no silêncio da noite, ele nunca conseguia ver-lhe o rosto. O pintor estava a construir uma torre em madeira no seu pátio, para poder entrar em diálogo com o seu grande mestre.
Era Setembro ao sul na terra ardente com o céu denso e pesado; um cinzento quase chumbo invadiu a planície amarela e o pintor subiu à frágil e alta construção de madeira no seu pátio; numa das mãos trazia um livro com pinturas do seu mestre El Greco, na outra uma cadeira de lona, fechada; ele tentou equilibrar a cadeira no topo da torre, mas o livro escorregou-lhe das mãos; ele aventurou-se a apanhá-lo e também caiu, seguindo-se uma derrocada da cadeira e de toda a construção; as tábuas caíram sobre o seu corpo, provocando-lhe dor e ferimentos, mas o pintor levantou-se das pedras do chão, desviando as tábuas em revolta, apanhou o livro, guardou-o furioso e retomou a construção, energicamente. Desta vez construiu, sem folgo, cinco paletas com as tábuas de madeira, quatro colocou-as na vertical, em equilíbrio com a quinta no topo. A torre ganhou forma ao entardecer, ocupando o espaço do pátio, quase não era possível circular em torno dela, a sua altura correspondia aos muros que a rodeavam; a atmosfera era pesada, os céus anunciavam uma tormenta, o pintor conseguiu equilibrar a cadeira de lona no topo da torre, mas a cadeira já não tinha assento; as mãos do pintor eram brutais, cheias de golpes e mazelas da sua labuta, tinham o poder de construir e destruir.
Era Setembro da terra molhada ao sul, a noite escura acordou em raios e trovões na planície, a terra ardente desejava as primeiras chuvas do verão. O pintor gritou e rasgou as suas roupas, subiu e conseguiu alcançar o topo da torre, desta vez não carregava nenhum livro, apenas o seu corpo ferido pelo trabalho, apenas a dor da sua luta; sentou-se na cadeira que já não era cadeira, era a terra ardente da planície que se fundira com o seu próprio corpo e ambos receberam as primeiras águas do Verão em clarões no céu, ouvindo as vozes da tempestade. O pintor finalmente entrou em diálogo com o seu grande mestre El Greco.

Maria João