16.8.06

AS COISAS QUE NÃO VEMOS

Não há remédio. Um tipo chega das férias, feliz e renovado, dá uma volta pelo mundo e logo esmorece. A Carla diz que a política estraga as pessoas, um amigo confessa-me que para onde quer que se volte só vê «facadas nas costas com um riso nos dentes», o “tom” dos weblogs de reverência cheira a sangue derramado. O Nuno, em nova toada melancómica, diz que tudo é ressentimento. O ressentimento, segundo informam as páginas amarelas da idade, dorme na mesma cama com a inveja em promíscua "ménage à trois" com a puta da vaidade. Vêm-me à memória versos de Nick Cave: «people just ain’t no good». Não sei se das pessoas, se do mundo, se dos outros, se de nós mesmos, se das más sementes, a verdade é que muitas vezes a culpa com que olhamos a vida parece querer virá-la do avesso. Fico-me pelos livros, pelas canções, pelos filmes, pela bola jogada em campos pelados, pelas praias onde os pescadores não vistam fatos de mergulho. Estou farto de gente que só tem certezas, a quem nada espanta e tudo contorna com a sabedoria da frase feita, do remate perfeito, da citação de pacotilha. Estou farto de gente para quem tudo é guerrilha, polémica, escaramuça. Na vacuidade dos debates, estrangeirismo-aqui-silabada-acolá, somos todos génios da palavra. Tudo será apenas isso se nada fizermos para que seja outra coisa. O primeiro álbum de Nick Cave & The Bad Seeds que adquiri tinha umas meninas angélicas, vestidas de branco, em torno de um piano de cauda. Abria com uma canção intitulada «Foi na Cruz». Por essa altura adquiri também um romance de Nick Cave, publicado em Portugal pela Editorial Estampa, com um título estranho: «E o Burro viu o Anjo…» Seremos nós burros à procura de um anjo que se veja? Fecho os olhos. Vejo mil burros cavalgando sobre o dentro da minha cabeça. Não vejo um único anjo. «You can see it everywhere you look / People just ain’t no good». Fecho os olhos. Vêm-me à memória palavras do romance de Nick Cave: «A clientela de Deus é pequena e seleccionada. O Diabo é que tem a pá.» Alguém que me explique uma coisa: qual o preço a pagar pelas coisas boas que não vemos? Quando foi a última vez que vimos um anjo, que o vimos de olhos fechados, com olhos de ver? Num verso de Rilke, talvez. Pouco mais. Às vezes é preciso arrumar a casa, limpar o pó das estantes, mudar de acento, espanejar as paredes, sacudir as almofadas. Às vezes é preciso desinfestar nos cantos mais insuspeitos a possibilidade de uma invasão. Talvez uma canção ajude.

4 Comments:

At 2:45 da tarde, Blogger manuel a. domingos said...

boa escolha. embora eu escolheria «loverman»

 
At 8:17 da tarde, Blogger Ísis Osíris said...

gostei tanto deste texto :)

 
At 10:53 da tarde, Blogger manuel a. domingos said...

é claro que uma música como «Fuck the People» dos The Kills também ficava a matar

 
At 8:11 da manhã, Blogger luis ene said...

quem é que dizia que os poetas eram anjos depenados?

 

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