Fragmento # 37 - Cozinha
Procura-se homem-a-dias que arrume a cozinha, lave a loiça e caiba no meu avental, que cada dia está mais largo e já não sei o que lhe hei-de fazer. Cozinho com requinte, sirvo calorosamente gelado de noz à sobremesa, agora limpar e arrumar não é comigo, só quando tudo se acumula em excesso e tenho de tomar medidas drásticas. Gosto de compartilhar o estômago e os sonhos. Adoro que me interrompam os sonhos com um café forte e quente. Não gosto de açúcar no café, prefiro um pouco de leite. Sou lenta a acordar, o meu coração também é lento, tenho a tensão sempre muito baixa, mas o aroma matinal do café faz milagres. Os vespertinos fazem-me confusão, mas consigo adaptar-me a eles com alguns limites, sobretudo se só falarem comigo depois de um bom café. Procura-se homem-a-dias porque há dias em que acordo e não gosto de ver ninguém, excepto a Lua que acompanha todas as minhas variações de humor com serenidade e sabe como me há-de acalmar. Nesses dias escrevo, desenho compulsivamente e detesto ser interrompida nos meus sonhos acordados; ou pesadelos. Oiço música que a média das pessoas não aguenta; por vezes oiço música que não se pode partilhar, que habita no meu interior mais sombrio um espaço inatingível; tenho também dias em que sou um barco à deriva no mar e Mahler é das poucas presenças humanas que tolero. Nos dias em que não suporto ver ninguém, viajo no mesmo sítio em pensamentos circulares imparáveis; também tenho dias em que mergulho num deserto de silêncio, encontrando fantasmas nas dunas de areia; nesses dias tenho miragens quando procuro algum oásis ao fim da tarde que me refresque e qualquer ruído me assusta. Procuro um homem que entenda que é a dias porque os dias não são todos iguais para mim; que seja o guardião da minha solidão, como Rilke me fez acreditar que é possível e que também tenha vida própria, força interior, porque só assim o poderei aceitar e fazer feliz; só assim ele me poderá compreender e aguentar. Um bom encontro só é possível entre duas solidões que se respeitam, como dois lagos que repousam um no outro, alimentando-se e mantendo as suas águas calmas. Procura-se homem-a-dias que saiba que em certos dias é melhor deixar-me em paz e sossego. Um lago sozinho seca mais depressa ou quando dois lagos se encontram correm o perigo de transbordarem as suas águas. Procura-se homem-a-dias que reconheça estes sintomas e que em certos dias me obrigue a sair de casa e a viajar nas suas mãos, porque as minhas estão calejadas, por vezes doem e ficam cansadas de criar mundos. Dois lagos quando repousam um no outro, alimentando-se sem agressões e com espaços próprios, mantêm as suas margens alegremente nesse encontro. Procura-se homem-a-dias que por vezes não me deixe cozinhar e me convença com arte e graça a ir jantar fora, a rir e a dançar durante toda a noite.
Maria João
Maria João
7 Comments:
Também procuro um primo desse, mas não está fácil. Raparigas que são de luas têm mais dificuldade em ver o sol:-)
Pois é Sofi, é dificil um que aceite ser a dias, se os deixamos à vontade sentem-se os maiores e abusam logo, enconstam-se e não nos deixam em paz quando é preciso, nem nos dão espaço para sermos nós próprias. Não podemos ser passivas, apanhar sol é optimo, mas também queima quando em excesso.
Maria João
este post é um mimo... interessante perceber que as mulheres cada vez procuram mais o que os homens tradicionalmente procuravam...hehehe (live and let live...sem muito stress)
este pedacinho de cumplicidade feminina aqui nos comentários não é menos interessante
e para que dias é que precisas? pode ser quintas?
um abraço
tas comprada joao
com essas qualidades todas ...
...podes vir para a semana.
se for para ir viver para aí
limpar essa quartalhada toda? nem penses.
so se for a 1000 a hora.
que lata joana.
ps: já sei que vais dizer que a mim nem de borla
Vitor, Luís e César, não levem a mal, esta do homem-a-dias é fruto do mau-humor, andaram a chatear-me a cabeça para variar. Reparem que o final até é apaziguador. O mundo onde vivemos tem coisas terríveis; o que pensar de uma sociedade onde o homem inventou o avião, conseguiu voar e só muito mais tarde inventou o penso higiénico? ( esta pergunta foi lançada numa aula pelo Prof. Trindade Santos, catedrático da Faculdade de Letras, especialista em Platão).
Um abraço para todos
Maria João
Bom texto, Maria João!
:-)
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