2.10.06

O AMOR

Ute Lemper
«Tell me, is love just a popular suggestion, / Or merely an obsolete art?» Com esta interrogação começa uma das minhas canções preferidas de Kurt Weill. Já tenho escrito sobre o assunto. Evitarei, por isso, repetir-me. A questão que Weill coloca em I'm A Stranger Here Myself é uma fatalidade. O amor está, definitiva e irremediavelmente, fora de moda. O amor não entusiasma ninguém, é um obstáculo à individualidade, uma chatice. Nos tempos que correm, o amor chega sempre atrasado, devendo, por isso, ser remetido para a caixa das boas recordações. Ele é o velho empecilho, o compromisso involuntário, o mais coercivo dos sentimentos humanos. Diz-se ainda, porém, não haver amor como o primeiro. Porquê? Porque o primeiro é aquele que não nega a paixão, é absoluto, rompe no peito como uma adaga de loucura, não há remédio para ele, não há razão que lhe chegue. O primeiro amor não nos faz sentir estranhos perante a vontade de amar, porque nada do que desconhecemos dentro de nós nos faz sentir estranhos com os outros - só quando descobrimos o amor e a ele nos rendemos, parvos, embevecidos, estupidamente alheados, é que a luz da razão se faz sentir dentro de nós. O outro passará a ser um inferno ou um paraíso, na medida em que corresponda ou não ao que sentimos e não arreamos. Os heróis negam a existência do amor. Os heróis não têm filhos, não sabem o que é dar tudo o que for preciso por alguém a quem queremos mais do que a nós próprios. Entre homem e mulher, dizem que o amor é apenas um pretexto, uma falsidade, uma aparência, um artifício. Mas, ao longe, a gente sente que não e teme sentir o amor. O que ninguém quer é amar, o que ninguém quer é odiar. Amor e ódio, extremos em permanente, constante consílio. A razão educa-nos antes para o equilíbrio entre os dois pólos, queremos todos ser o meio, o razoável, aquele que domina a sua própria natureza. É curioso como, pretendendo negar o amor, os homens aparentam sempre aquela moral equilibradinha e desprezível. Não sabem quão convencionais são, almejando um estatuto precisamente diverso. A arte é a recriação do excesso, do amor e do ódio, o tubo de escape. Às vezes odeio a arte, queria amar nas mãos como por vezes amo num poema. Por que nos impedimos amar nas mãos como amamos num poema? «I can’t believe that love has lost its glamour, / That passion is really passé.» Fazem-se novelas sobre corneação, filmam-se fodas como quem mostra culinária, exibem-se parceiros como quem exibe prémios, vulgariza-se o sexo como se o sexo não fosse já vulgar. Tempos terrivelmente antagónicos, aqueles em que vivemos. Serei o único a reparar que na exibição de uma pseudo-libertinagem sexual o que mais se evidencia é um aterrorizador preconceito moral? Que o sexo liberta-nos do amor, do ódio, dos extremos, esses grilhões de uma sociedade cada vez mais normalizada, educada, equilibrada, rendida à razoabilidade de tudo porque tudo aparenta ser tão… natural. I Am A Stranger Here Myself, redimindo-me pela voz de Ute Lemper e querendo acreditar num extremo que me permita, enfim, continuar a respirar.

5 Comments:

At 4:11 da tarde, Blogger Vítor Leal Barros said...

"Os heróis não têm filhos, não sabem o que é dar tudo o que for preciso por alguém a quem queremos mais do que a nós próprios."

??

depende daquilo que se entende poe herói

ps. a versão da dee dee bridgewater é bastante interessante tb

 
At 6:44 da tarde, Blogger Vítor Leal Barros said...

pois que afirmem... eu cá n lhes ou crédito

 
At 6:46 da tarde, Blogger Vítor Leal Barros said...

dou, desculpa...o teclado come-me as letras

 
At 7:01 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Doce tentação o amor; e, o ódio um almejar de vontades exacerbadas. Ambos derradeiramente fatais em prol de destinos, moiras e acasos controversos e altercados.
«Adaga de loucura» ou demência anavalhada, não será o amor uma mísera crença dos homens... para que lhes «permita, enfim, continuar a respirar»?
Encontrar-se-á no cume do excesso a virtuosa sabedoria?...
Digo-te humildemente que o amor não percebe nada de equilíbrio nem tampouco de razão. O amor, o absoluto, o infinito, a perfeição: diria eu, se fosse ateia, que tais essências não existem no mundo que nos rege. Há, sim, no âmago da espécie humana correspondências, analogias, afinidades, conexões, e não mais do que isso. Tudo o resto são cavalgadas de intrujices acerca de detritos paradoxais de humanidade...

P.S.: Os semideuses (e as heroínas) também têm filhos... E não serão estes os grandes amantes...(da arte que por vezes odeias)?


Saudações

 
At 11:26 da manhã, Blogger dama said...

"Por que nos impedimos amar nas mãos como amamos num poema?" Gostei.

 

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