27.11.06

Cesariny, um Cadáver-Esquisito:

(aqui)

Cesar inyciou a subida. Cesariny chegou hoje a Elsinore. Gostava de ter daquelas mortes boas, em que uma pessoa se deita para dormir e nunca mais acorda... Morreu esta madrugada um Homem completo, maior. Não há morte na morte de Mário Cesariny. 1923-2006. Uma vida inteira. Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada! Neste momento todas as palavras seriam excessivas. Ama como a estrada começa. A morte propriamente não existe. Se morreu, morreu... é o momento! O surrealismo foi ainda um modernismo. E esse modernismo está a morrer. Não sou um adepto confesso do surrealismo. Porque tu és o dia porque tu és. Se a morte de cesariny significa a morte simbólica do surrealismo português a partir de agora deve ser muito mais simples visitar uma qualquer repartição. Como acabar com um corpo corajoso e humílimo morto em pleno exercício da sua lira? Quando ouvi falar pela primeria vez de Mário Cesariny (na TSF, recitando poesia sua, há não muitos anos) o país cresceu, literalmente fiquei com a sensação de que se tinha acrescentado uma província ao pequeno Portugal que conhecia. Por que escrevi um poema? Cesariny foi pouco amado e muito rotulado. Pelos literatos, e pela polícia por quem foi perseguido e tratado como uma puta. Surrealista e homossexual foram os rotulos de que os sistemas literários e político-políciais se serviram para arrumar a sua obra. Da importância dos seus poetas os portugueses são informados na ocasião da sua morte. Hoje à noite, ao jantar, deixarei cair no chão a primeira gota do copo de vinho. E quando for anunciada a criação de um PRÉMIO CESARINY cá estarei para levantar a gola do peludo e rir de tudo. Aqui no Mal fizémos o que devíamos. Na rua deserta por detrás da Estação Nova, em manifestação convocada por sms a que todos faltaram, atirámos ao rio palavras que ele tinha desemparedado... Assim, sem ir à estante, aos títulos, às páginas, faço gotejar a memória, porventura com alguma palavra inexacta: O jovem mágico das mãos de ouro desaparecido nu de todos os sítios da Terra. Contudo e já agora penso que os gatos são os únicos burgueses com quem ainda é possível pactuar — vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista! Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a... Não digo como o outro: sei que não sei nada sei muito bem que soube sempre umas coisas... É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia... Talvez ele quisesse projectar mais uma vez essa trilogia fundamental do surrealismo: Amor, Liberdade e Poesia. Hoje, o surrealismo é "ce qu'il sera", mas o nosso mundo continua a precisar desse lema. O que mais o caracteriza é a provocação. Venha a estátua e o seu nome dado a um importante equipamento cultural da capital (Carmona Rodrigues) que a provocação ainda perdura. Durou 83 anos. Fez o que pôde e como pôde para exemplificar que as palavras que de facto contam passam pelos continentes da liberdade, do amor humano e do espírito sem algemas. Cesariny artista poeta já deixou de morrer. Eu acho que se se é surrealista, não é porque se pinta uma ave, ou um porco de pernas para o ar. É-se surrealista porque se é surrealista! Alegre triste meigo feroz bêbedo. E porque a morte biológica pode ser apenas mais uma semente... já tenho a agua, o leite e os cigarros. falta-me ainda o espaço no jazigo. quando tiver eu ligo-te. É apenas isto: assinalar os dias e as noites, as correntes que os juntam e os separam. Antes, dizia, aplaudiam-no muito, mas depois deixavam-no ir para casa sozinho. Sentia-se sozinho. Ainda mais sozinho desde que lhe morreu a irmã, Henriette, oito anos mais velha e companheira de uma vida inteira. Desde que os cafés passaram a ter televisão aos berros, impedindo-o de ir para lá escrever poemas e conversar com os amigos que apareciam. E desde que deixou de foder. Estar para aqui a debitar palavras bonitas na morte de Cesariny daria direito a que ele me mandasse tranquilamente para o caralho. Dele diz-se que a obra se confunde com a sua vida. Os poemas reunidos e definitivos de Mário Cesariny ficarão como um dos dez ou doze momentos excepcionais de um século excepcional na poesia portuguesa. Lembra-te que todos os momentos que nos coroaram todas as estradas radiosas que abrimos irão achando sem fim seu ansioso lugar... Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco... Mesmo, ou sobretudo, nestas ruas tao distantes, e que um dia ja foram percorridas pelos marinheiros do poema. Mais secos e áridos, todos nós, na morte de um dos últimos homens verdadeiramente livres que ainda andava por aqui. Solene é a poesia do rato, a morte uma paródia meta-narrativa. Lugar-comum verdadeiro: poetas e romancistas não morrem. Nós é que morremos um pouco, se não deixarmos que eles nos tornem vivos enquanto ainda podemos sê-lo. A morte de Cesariny foi anunciada hoje e já há perto de 150 referências a MCV nos blogues da blogspot. Ontem às onze fumaste um cigarro... Não irei ao funeral porque o Cesariny não merece essa maldade. Nunca estive tão só diz o meu corpo... cada qual procure com cada um o poente que lhe convém e vão todos para casa ler Cesariny, “que ainda há passeios ainda poetas cá no país!”

18 Comments:

At 8:50 da tarde, Blogger Carocha said...

Magnífico!

 
At 9:35 da tarde, Blogger margarete said...

tão bonito, Henrique

e quanto trabalho!

tenho mesmo de te dizer, parabéns.

 
At 12:58 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Como a flor e suas cores.
Ao modo da recordação e do adeus, ficou alegre, caro Henrique.

 
At 1:18 da manhã, Blogger MJLF said...

grande homenagem!
Maria João

 
At 1:48 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Henrique, sempre achei que escrever era uma espécie de corte e costura e o resultado uma colorida manta de retalhos.

Luís Ene

 
At 3:19 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Que dizer...
Lembro-me do Cesariny nos anos 80, na segunda metade, quando era um frequentador assiduo de um bar (no Bairro alto) que ficava logo abaixo do Luso, um bar que era completamente fora de moda. Mas nessa altura ele andava rodeado de assessores da cultura do Mário Soares, criaturas abomináveis. E era dificil chegar à fala com ele, pois ele só queria cabritos. Ainda tentei falar com ele do António Maria Lisboa, mas nada e com a agravanre de estar rodeado por uma espécie de polícias soaristas que se interpunham, vedavam o acesso ao poeta. Aliás, se repararem bem os poetas mais velhos e consagrados e que gostam ou gostavam de vadiar costumam andar com uma côrte de criaturas deploráveis. Quem conheça o Herberto e tenha convivido com ele nos cafés ali para a praça da alegria na segunda metade dos anos 90 assistia ao desfilar de uma fauna que ia de comunistas saidos não se sabe de onde e de outra gente megalitica e só por vezes aparecia um ou outro personagem gratificante, de um Barahona a um César Monteiro. Ainda me lembro de uma longa conversa com o César Monteiro em que me pus a "atacar" os seus filmes, aquele excesso onânico, etc, e no fim ele convida-me para assistente de filmagens, mas entretanto aparece uma loiraça que o envolve e se transforma de repente numa espécie de secretária, de intermediária entre nós. Alta comédia, em suma. Como curiosidade a ligação de César Monteiro a Herberto vem dessa figura para ambos central que fora Carlos de Oliveira. Mas de resto, nessas tertúlias, parava por ali uma fauna de bradar aos céus, que se postava, à espreita, em geral nas mesas que rodeavam a do mestre. O Herberto é um contador de histórias fabuloso, e as de Angola são quase lendárias. E isto tudo apenas para dizer que quando perguntava ao Herberto Helder pelo maior poeta vivo ele sem hesitar afirmava: Cesariny.
Mas na sombra de alguém que partiu depois de ter desfrutado tudo que tinha a desfrutar, bemaventurado, ficou esse outro que foi demasiado cedo e que quanto a mim foi a figura mais potente do nosso surrealismo: António Maria Lisboa. Quando uma tarde dessas perguntei ao Herberto se tinha conhecido António Maria Lisboa ele disse que não. Quando eu no fio da conversa lhe disse que se A. M.Lisboa não tivesse partido tão cedo, etc., etc., ele deu-me a entender que de algum modo ele entregara-se à tuberculose.
E tudo isto a propósito de Cesariny.

 
At 3:39 da manhã, Blogger Logros said...

Grande comentário!
Essa fauna, essas cacas de gente, que sempre rodeiam os artistas "consagrados", são uma verdadeira piolharia.
Uns bajuladores de trampa, as mais das vezes, muito ignorantes, que estão ali só porque a coisa está "in".
Claro que os "consagrados" gostam de ser adulados, pelo séquito. Raros fogem a essa tentação, ou forma de dissolver o vazio.
Tenho para mim e não me tenho dado nada mal com isso, que o melhor é conviver com eles pelos livros, pelos quadros, etc

 
At 10:16 da manhã, Anonymous Anónimo said...

J.U., grande comentário. Que posso eu dizer-te? Uma vez um amigo perguntou-me se eu gostava de conhecer o Cesariny, assim como quem pergunta se queres ir ao Museu de Arte Antiga. Disse-lhe que não. Sou um tipo envergonhado, da província. Deixo o papel de fauna para quem sabe. Saúde,

 
At 7:44 da tarde, Blogger Carlos said...

Uma bela homenagem.

 
At 9:26 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Se alguma vez tivesse que escolher um 'dia triunfal' na minha vida, não tenho dúvida que escolheria a conversa de uma hora que tive com Cesariny, há 10 anos, sentados a uma mesa de Brasileira. Precisava que ele me elucidasse sobre como eram certos estilos de vida na Lisboa de outras décadas. Não foi preciso perguntar muito para que me falasse abertamente de Leitão de Barros, Villaret, polícia de costumes, crimes de arrebenta, Cais do Sodré, calabouços do Governo Civil, do 'povo' de outrora, das novas classes médias, das múltiplas igualdades de hoje. A originalidade e a criatividade das suas palavras em nada abafou a clareza de pensamento e análise do que viu em tempos, e de como tanto havia mudado. Pelo contrário, as suas palavras deixariam desarmado qualquer teórico de sociologia urbana. O resultado foi um quadro cruel e profundo das mudanças sociais das últimas décadas. E tudo isto com gestos desenhados a rigor, apesar dos seus setenta e tal anos.
Na segunda-feira não resisti e, debaixo de forte chuva, foi aos Prazeres comemorar-lhe a vida. Mil vezes obrigado!

 
At 9:58 da tarde, Blogger Pedro Correia said...

Excelente, esta antologia. Parabéns!

 
At 11:13 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Carlos e Pedro, voltem sempre.

 
At 1:43 da tarde, Blogger Luís said...

Grande antologiador. Um abraço

 
At 5:42 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Porque tenho pena de nunca ter-lhe dito o meu nome.

santiago santos

http://www.bluedelay.blogspot.com/

 
At 7:04 da tarde, Anonymous Anónimo said...

... Cesariny, não o soube em vida neste plano terrestre, entretanto identifiquei-me avec toi através de vosso interlocutor.

Magnífica homenagem!

 
At 10:13 da tarde, Blogger SP said...

Muitooooooooooooo interessante!!!
Parabéns...

 
At 7:35 da manhã, Blogger isabel nascimento said...

Geente.... que texto colorido mais lindo tal qual colcha de retalhos...Conheci um Pouco de Mario Cesariny num.voo pra Ilha da Madeira em.2018. Vi o documentario ...comprei um livro apenas..hj, na "insonia literaria" me atraquei com Mario...♡ mas preciso dormir... vou reler tudo que li por aqui... o Brasil nem ouviu falar de Mario Cesariny... um abraço...

 
At 6:48 da manhã, Blogger José D. said...

Essa acumulação colorida de dizeres é uma beleza.
Falei uma vez ao telefone com o MC, em ordem a uma conversa pública.
Declinou o convite, mas agradeceu.
Disse que estava farto, que já tinha sido muito fodido na vida.

 

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