2.3.07

Some Loud Thunder


O meu médico aconselhou-me a andar sempre com uma pistola à mão. Também me desencorajou das escarpas, fez-me acreditar que não tenho asas. Eu para aqui convencido de que era um passarinho, e logo ali o diagnóstico chapado dos quatro pares de pernas. Agora vou a meio de um estranho romance com uma formiga que encontrei num barco perdido no areal da praia de São Martinho do Porto. Perguntei-lhe em que boas mãos tinha caído, ao que me respondeu estar sempre à coca dos morcegos. Não percebi. O que ela queria dizer, se calhar, é que não gostava de mensagens pela calada, esse sistema de comunicação dos vampiros que consiste em fazer chegar a mensagem sem se fazerem ouvir. Há muitos morcegos perigosos na vida das aranhas, alguns até bastante aliciantes, com um poder retórico impressionante, lamentosamente ocupados no prolongamento das jogadas. É preciso ter cuidado com esses bichos, principalmente quando se nos chegam com gestos muito delicados, comprazidos na eloquência das texturas aracnídeas. Uns atrás dos outros, os vampiros cardam em grupo o canto sagrado de tudo o que cheira a sangue. Ouço a formiga a falar, todo lisonjeado pela paciência, e aprendo a encarar esta coisa da vida como uma tragédia sem príncipes, o assunto eternamente inconclusivo e, de certa maneira, anacrónico logo à partida. Muito provavelmente não estarei a fazer-me entender, o que, diga-se, deve-se apenas ao caso de ser muito pequena a minha causa, tão pequena como a cabeça de um alfinete. Tenho uma certa propensão, reconheço, para o discurso verosimilhante, parecendo-me, porém, de bom-tom que também se me reconheça a honestidade das minhas confissões. Só não gosto que chamem lebres aos meus gatos. Principalmente desde que o meu médico me sugeriu que tivesse sempre uma pistola à mão. Como já não há mãos que semeiem, lembrei-me antes de trazer à mão uma caneta frívola e tagarela, uma caneta de espetar no peito das formigas armadas em morcegos, uma caneta de dizer, como quem não quer a coisa, vai ferrar o teu alfinete, ó escorpião duma figa, nos pulmões da censura. O que é engraçado é que a tinta dessa caneta cai sempre para o borrão, para a ignorância, para a bobagem mais aborrecida e deplorável. Só não gosto de me dar a importância que não mereço e, como tal, opto por mandar às favas os médicos que me prescrevem pistolas sempre à mão. Posso fazer-vos uma pergunta? Duas? Como já fiz duas, farei então uma terceira: quantos de vós trazem um ruído incrustado nos dentes? Notei nesta coisa do ruído incrustado nos dentes quando, ao beber um copo de vinho, me deu para começar a mastigar o copo, ficando com pedacinhos de vidro espetados na língua, na boca, na garganta, por aí abaixo até ao estômago. Depois cuspi-os todos contra os rostos dos meus inimigos desenhados em alvos que pintei em guardanapos desdobrados. Já vos disse, isto não é um belo texto hermético. Isto é apenas mais uma entrada de um estúpido diário que resolvi partilhar com a maravilhosa plebe burguesa do meu tempo, é uma encosta de trazer por casa, num PC ofegante, é um pouquinho do progresso a rir-se nas costuras da história. Dir-me-ão que não há paciência. Pá, é mesmo essa a ciência da coisa. Quando não há paciência enterre-se a ciência, de preferência à pazada.

Escrito sob o efeito alucinatório de Clap Your Hands Say Yeah, o que pode ser, em certa medida, considerado uma recensão ao álbum Some Loud Thunder.

2 Comments:

At 11:33 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Adoro efeitos alucinatórios.:) São do melhor que há.

 
At 8:15 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Ciência enterrada,pá.Às pazinhas.Como aquelas com que que brincava em S. Martinho do Porto. A sonhar-me cigarra, alucinada (sob o efeito de Libertango.

(continue a tirar o fôlego ao computador)

 

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