25.4.07

APRILIS

Vinha do tempo da minha infância a fábula em que os homens falavam. Agora as suas vozes estavam sepultadas num silêncio que tinha o nome ciciado de fascismo.
Minha mãe dizia: «Quando fores grande haverá um país...» E o país era onde estava a minha idade. E a minha idade era eu achar-me com toda a força dos ossos no centro da minha liberdade.
Dizendo-me isto, minha mãe pôs-me na voz luminosos objectos para espantar morcegos. Cantei quanto podiam meus pulmões carregar vendavais para sacudir as dormideiras dos tiranos. E onde as horas mordidas pelas algemas foram acre crescimento para a liberdade iluminaram-se as terras do sepulcro e era Abril e a fábula fez-se dia. Numa rubra fraternidade de cravos os homens saudaram a Revolução. Em golfadas de ouro cantei a Liberdade.

Apanhadas pelo tempo dos espantos, belíssimas eram as pessoas porque só viam a beleza. É nesse rapto dos olhos alumbrados que as hienas exercem o seu ofício de preparar cadáveres. Em seu implacável andamento, os animais necrófilos da Revolução foram devastando a fábula. Docemente diziam: o Povo. E nos espelhos desta sua mágica as massas enlouqueciam. E bebendo o vinagre dos novos opressores repetiam a viperina palavra do seu magistério liberticida: eis o mel da libertação. E correndo para os apriscos que a treva lhes tecia arrasavam os sítios onde da liberdade cresciam as tenras ervas.
«Acaso - perguntei-me - outra vez o morcego abre as suas asas terríveis para anoitecer meu canto?»
E pus-me atenta como uma dor no estômago que é sentida em poemas.

Quem sois vós ó sinistros arquitectos deste lugar sombrio onde os enganadores despejam seu saco de silício? Saístes dos livros onde está escrito o fim dos tempos? Nem mesmo para essa glória aterradora tendes ferocidade e estatura. Sois baixos. Enormes em baixeza. E tudo rebaixais ao vosso tamanho ridículo de profetas anões. Que fizestes da minha cidade?, aquela que numa manhã de Abril foi percorrida pelo archote da Boa Nova. Outra vez putrefacta se soergue a censura de língua carcomida pelos vossos vocábulos hipocritamente revolucionários. Induzistes o filho a denunciar o pai, o amigo a atraiçoar o amigo. Destes a beber uma mistela de ódio ao camponês e dissestes: «rouba os três palmos de terra ao mísero proprietário que não é do nosso partido». Porque aos que não eram do vosso bando infligíeis pavorosas intimidações e os que nele assustadamente ingressavam para defender seus bens de vós colhiam o rédito de escandalosos benefícios. E de novo se moveram perseguições. E o sadismo engendrou torturas que vexavam a imaginação perversa dos antigos verdugos. E pusestes o vosso veneno em multitudinários ruídos que perfuravam o esófago e em palavras que chamavam bom ao que nos homens é mau. E urinastes nas paredes enganos que prometiam a fartura e traziam a fome. E confundistes. E emaranhastes. E do medo e da ruína vosso trabalho ficou pronto. E, dando por terminado o ofício da besta, dissestes: esta sim, é a Revolução.
Ó minha alma avisada, fonte manante do canto vertical! Empluma-te, ó minha juba de poemas! A voz do espírito livre dilacera os matins hipócritas. Tal é o mister do leão.

Quem disse que eras fraco, ó Povo? Os que te chamam oprimido para mais te sugarem. Abriram-te as portas do Inferno mas teu instinto genésico segredou-te: aqui começa a morte. E num clarão da tua antiga clarividência viste que os que a ti se submetiam em peçonhenta piedade populista te queriam subjugar. E encrespas-te. E empunhando a tocha de um Abril que te haviam roubado queimaste as máscaras dos diligentes vampiros da Pátria.
Em ti eu louvo o guardião da Nave que perpetuamente carrega os tesouros da descoberta. Outrora em transparências dissolveste o breu do Mar Ignotus. Hoje teu aldebo é a flor azul que desponta nos confins da ansiedade com que te perscrutas. E é sempre o mesmo e único segredo. Os monstros entornaram o teu vinho? queimaram as tuas searas? salgaram as fontes onde cantavam os teus deuses? Estás triste, ó operário dessas coisas por ti criadas? Engolfa-te na dor já que és ourives do ouro atormentado. A tua tristeza está destinada a iluminar o mundo. Com ela nivelo o meu canto. E dissipo as nuvens. Por detrás delas embusca-se a besta.

Natália Correia
Epístola aos Iamitas
1976