Fragmento #47 – Falar
O corredor ao fundo, sigo a fundo no corredor em direcção à porta da sala; troco palavras triviais com os colegas, entre passas de cigarros e passos apressados; a porta da sala aguardando, guardo a porta da sala. Hoje é a minha vez em vinte minutos, vou falar sobre o que as palavras não conseguem dizer, discorrer sobre música, também trago um CD e uma garrafa de água. Sei que não vale a pena falar sobre música pois ela faz-se, as palavras são sempre arrogantes perante o que é da ordem do inefável. Vejo como as palavras supõem distância e decisão separadora; em meu redor, todos estão a mexer os lábios em compartimentos autónomos e esse movimento aviva-lhes a consciência de si próprios: as palavras alinham-se de um modo ondulante em torno destes compartimentos que me são estranhos; são acções no tempo, o seu ondular vai decorrendo em várias e simultâneas direcções. A música, pelo contrário, lança-nos no instante e dilui-nos, entrando num todo da memória. Sthendal considerou que o império da música começa onde termina a fala; Matisse aconselhava a cortar a língua para se poder pintar e eu até comecei pela pintura, a arte do silêncio que fala. Sinto as palavras a boiarem no interior do cérebro e vejo a porta escura da sala a abrir. A música é a noite da filosofia e eu nem sei o que ando aqui a fazer; será pior uma sala às escuras ou uma sala cheia? Não entro. Entra a funcionária empurrando o carrinho das máquinas, o professor não pára de um lado para o outro, a pasta, os livros, as indicações; três pessoas já são uma multidão, agora estes todos. Chega o Mário com um ar de gozo de quem sabe que não gosto destas coisas:
- Maria João, é hoje que nos vais pôr às escuras?
Olho a porta aberta da sala e já clareou. Penso: que bela ideia! É isso mesmo, falar de música é como andar numa sala escura às apalpadelas, onde por vezes se esbarra com objectos que não reconhecemos de imediato; por isso a música faz-se melhor de noite. O professor sempre encalorado vai abrindo as janelas da sala. A empregada sai mais depressa do que entrou, lançando-nos um olhar estranho. Comento a rir com o Mário que ela também gosta de Kierkegaard. Sinto o silêncio de um conjunto de olhos na minha direcção, tenho a garrafa de água, dou um gole refrescante. Na minha primeira exposição de pintura estava um calor horrível, todos bebiam taças de vinho branco, ao primeiro gole fiquei com dor de dentes. Agora estou a pensar em alta velocidade: a música é a noite da filosofia ou a filosofia da noite? No escuro a música traz a sua força primordial, afastando as palavras e outras percepções sensoriais. Nietzsche considerou-a a arte da noite e da penumbra, porque o ouvido não é tão necessário na luz do dia, é o órgão do medo. Vou às apalpadelas de modo a que as palavras sejam clarificantes. A música é a voz do inconsciente, fala-nos do que temos de mais íntimo, é sempre da ordem da diferença, ao contrário da linguagem discursiva, que é da ordem do geral; as palavras são facas de dois gumes, enquanto que a música nos dá a tranquilidade da sabedoria, por ser um pensamento exacto que não mente, nem engana; é também a mais carnal de todas as artes, invade o nosso sistema nervoso podendo levar-nos à loucura. Bom, é melhor não enlouquecer agora, tenho de falar de um modo claro, pausado, não posso disparar, se não isto fica incomunicável. Tenho o texto em cima da mesa, leio, sinto aqueles olhinhos sobre mim em silêncio, como se estivesse numa aula de francês outra vez; era assim, ao lado do quadro, a mesa do professor olhava-me desconfiada, com a sua serviette semi-aberta. Espreitava e via um saco de leite no seu interior e ficava a pensar: serviette também é guardanapo. Serviette, serviette, serviette......o cérebro mastigava a palavra, não ouvia nada e os meus olhos continuavam pregados na serviette, não abria a boca de maneira nenhuma. Agora já não é assim, mas bolas, porque é que passados tantos anos a fazer estas coisas continuo a lembrar-me com horror das chamadas orais nas aulas e a detestar falar em público?
Maria João
6 Comments:
Talvez devas experimentar ficar em silêncio, deve ser ainda mais asssustador. excelente texto.
LUís Ene
Luís,
Não tenho medo do silêncio, pelo contrário, necessito dele para estar concentrada a desenhar, ou a escrever, ou apenas para pensar, meditar.
Maria João
Maria João ,Matisse tem rezão...
Belo texto
joaquim
Olá Joaquim,
Tenho acompanhado as tuas pinturas por cá com entusiasmo. É pá, Matisse tem razão, mas não se deve levar tudo à letra!
Maria João
Maria João, dizia ficar em silêncio em frente a um público, como alternativa a falar para um público. Exagerei na elipse :)
Luís
Tive essa experiencia muitas vezes no primeiro ciclo, num colégio em Évora onde detestei andar, faziam-me chamadas orais e eu em panico não respondia a nada. Saí desse colégio porque o director, professor de português que era padre, um dia numa dessas situações me pregou um estalo em frente de toda a turma - prática corrente naquele antro, havia outras, tais como fazer preguntas de carteira em carteira e dar com o apagador do giz na cabeça a quem não respondia - e depois eu fiz um chinfri enorme em casa com os meus pais e recusei-me a voltar para aquele sitio - fui para uma boa escola no ensino publico. Bom, na provincia ainda se praticavam estes metodos dos outros tempos, eu já não gostava de padres e desde aí...
Maria João
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