25.4.07

Fragmento #48 – 25 de Abril


Não tenho nenhuma recordação do dia 25 de Abril de 1974, na altura tinha 4 anos; tenho apenas algumas imagens soltas anteriores a essa data e também posteriores. Sei que estava em Évora com os meus pais e irmãos e a partir do Verão de 1975 não foi fácil, as propriedades dos meus pais foram ocupadas, passámos por dificuldades várias e o que sempre ouvi em minha casa e aprendi com a clivagem que vivemos a partir desse período é que o oportunismo não tem cor, não se pode confiar nos políticos, são poucos os que são decentes e honestos neste país, não se pode ter ilusões – e não é só os políticos, mas os exemplos vêm de cima. Lembro-me de ter partido para Espanha com a minha mãe e cinco dos meus irmãos. O meu pai e irmão mais velho ficaram em Portugal. Lembro-me do inicial apartamento onde vivi em Badajoz, num primeiro andar, eu dormia com a minha irmã Ró num colchão no hall de entrada – uma aventura – os rapazes ficavam na sala numas cadeiras de praia, a minha irmã Ana num pequeno quarto junto à sala e a minha mãe no outro. A minha irmã Xum estava em Mérida e depois juntou-se a nós; via os desenhos animados da Heidi num café ao pé desta casa, onde jogava flippers com os meus irmãos. Depois mudámo-nos para um rés-do-chão maior, uma casa velha, dormia num quarto com a minha irmã Ró, ao lado do quarto da minha mãe. Lembro-me de ouvir a rádio portuguesa, o som da guitarra do Carlos Paredes remete-me sempre para os espaços desta casa; ia à escola, aprendi a escrever e a ler o castelhano, tinha uma cartilha com desenhos e de frases do tipo “ mi mama me mima” ou “mi padre fuma pipa”. Na escola estava sempre a fazer traquinices, tinha uma colega de carteira portuguesa, a Filipa e mais duas espanholas. Estava muitas vezes de castigo – por que seria? – Ia para o fundo da sala virada para a parede. Em casa, depois do jantar ia brincar com uma pandilha na rua, jogar ao elástico, aprendi a cantar e a dançar sevilhanas – a minha irmã Ró diz que fui eu que meti conversa com as miúdas na rua. No primeiro andar dessa casa viviam vários estudantes, era uma diversão. Quando se aproximou o Natal, fiquei cheia de medo de não ter prendas, a casa não tinha chaminé. Depois recebi uma cama de plástico cor-de-rosa para a minha boneca e a minha irmã Xum convenceu-me que ela entrou pelo buraco do vidro da janela da sala. Depois mudámo-nos para um apartamento num prédio moderno, onde também brincava na rua à noite, com outra pandilha. Uma vez cantei as sevilhanas que tenho na memória a uma catalana que se fartou de rir e dizia que só poderia ter aprendido isso na rua. Quando voltei para Évora não havia nada disto, não brincava na rua e compartilhávamos a casa com mais duas famílias de retornados. O meu pai dava aulas de matemática e a minha mãe trabalhava na escola onde eu ia com a Ró. A minha mãe diz que o único ministro da agricultura que houve como deve de ser neste pais foi o António Barreto e que se o encontrasse na rua, ia dar-lhe um aperto de mão e cumprimentá-lo. Apesar de tudo, o sentido de humor foi sempre mantido na minha casa em relação à política: lembro-me de num Carnaval os meus pais mascararem-se de pessoal da reforma agrária para pregarem uma partida a uns amigos; noutro, a minha mãe mascarou-se de Manuela Eanes, estava enlacada, pirosa e extraordinariamente pintada; estas talvez sejam exemplos de boas expressões para ultrapassar o sofrimento, a mágoa que eles sentiam em relação ao que foi destruído, as árvores cortadas que nunca mais se puderam recuperar. O que é para mim o 25 de Abril? O dia em que se comemora a liberdade no meu país e de imediato associo a data às noites em que brincava na rua em Espanha com as pandilhas, onde cantava e dançava sevilhanas. Esta memória para mim ficou como sinónimo de liberdade.

Maria João

11 Comments:

At 9:02 da tarde, Anonymous Anónimo said...

gostei tanto de ler

 
At 10:27 da tarde, Blogger MJLF said...

Obrigada Manuel, liberdade para ti também, Olé!
Maria João

 
At 3:37 da manhã, Blogger Unknown said...

Este comentário foi removido pelo autor.

 
At 4:24 da manhã, Blogger Unknown said...

Este comentário foi removido pelo autor.

 
At 4:32 da manhã, Blogger Unknown said...

que bela descrição de um 25 de abril de 74. li atentamente e vivi um pouco do que li. na terça-feira paguei 33€ para mudar a morada no livrete do meu carro, não senti liberdade absolutamente nenhuma nisso. tenho pena de o PREC ter-se tornado num pesadelo. mas como todas as coisas belas teria apenas que ter sido desencadeado por gente boa e infelizmente há sempre uns maus da fita a darem cabo de tudo. aconselho a leitura de 'a moral anarquista' de Piotr Alexeevich Kropotkine (edições sílabo). a minha mulher apareceu um dia com este livro cá em casa porque se tinha aborrecido comigo no dia anterior por eu ser adepto do anarquismo! :)

 
At 12:03 da tarde, Blogger MJLF said...

Loucomotiva: de momento não tenho dinheiro para comprar livros, mas assim que puder vou ler o que recomendas. Sou licenciada, tenho 37 anos, vou vivendo de uns bicaste que me dão para ter as contas quase em dia, mas não posso ter luxos desses, como comprar livros ou ter carro. A familia ainda me vai dando alojamento, por isso não durmo debaixo da ponte. No entanto, escrevo e vou mantendo o bom humor e alguma criatividade - são formas de libertação.
Maria João

 
At 3:05 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Gostei muito

 
At 3:50 da tarde, Blogger MJLF said...

Obrigada Sara, liberdade para ti também!
Maria João

 
At 1:30 da manhã, Anonymous Anónimo said...

puro, bom.

Rui Costa

 
At 10:57 da manhã, Blogger MJLF said...

Olé Costa, tu eras muito pequenito no 25 de Abril de 1974, onde é que estavas?
Maria João

 
At 2:54 da tarde, Anonymous Anónimo said...

no 25 de Abril estava em Angola, vivi lá dois anos durante a tropa do meu pai.espero voltar a áfrica em breve.

Rui Costa

 

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